O subfinanciamento da C&T brasileira e a nova dinâmica orçamentária
A mistura entre uma legislação que impõe cortes indiscriminados no orçamento público e a prevalência da lógica política do dito “centrão” parlamentar tornou a sobrevivência da pesquisa científica no Brasil uma verdadeira via crucis
No dia 7 de outubro de 2021, a Comissão Mista de Planos, Orçamento Público e Fiscalização (CMO) do Congresso Nacional aprovou o relatório final referente ao Projeto de Lei do Congresso Nacional 16 de 2021 (PLN 16/2021), de autoria do Poder Executivo. Apresentado em 26 de agosto, a previsão inicial do projeto era de abertura de crédito suplementar no valor de R$ 690 milhões para o orçamento federal de 2021, atendendo especialmente ao Ministério da Ciência e Tecnologia, e, no âmbito deste, ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). O crédito seria usado para recompor o orçamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e, portanto, sua capacidade de conceder bolsas de pesquisa, seriamente comprometida pelos cortes orçamentários dos últimos anos. No entanto, por orientação do governo, a proposição foi emendada próxima de sua aprovação, desviando boa parte dos recursos para outros ministérios e programas, e deixando apenas R$ 55 milhões para a recomposição do FNDCT.
A aprovação da Lei Orçamentária Anual deste ano foi marcada por polêmicas e por um cabo de guerra entre o Ministério da Economia e o relator do orçamento na Câmara, Márcio Bittar (MDB-AC). No centro da disputa, a destinação das vultosas emendas de relator, usadas principalmente para municiar a base parlamentar do governo na Câmara. O temor do Ministério da Economia era não haver recursos suficientes para o cumprimento das despesas obrigatórias do orçamento. Desde então, no entanto, a arrecadação tem apresentado forte crescimento, enquanto as despesas obrigatórias foram menores do que originalmente previstas. Diante desse cenário, a expectativa era, primeiro, que o governo revogasse por decreto o bloqueio de R$ 9 bilhões do orçamento no momento de sua aprovação, o que efetivamente ocorreu e, em seguida, que abrisse novas linhas de crédito suplementar e adicional, para mitigar os cortes realizados já desde a primeira versão da Lei Orçamentária Anual (LOA) para 2021. Era o que se previa com o PLN 16.
Havendo folga fiscal, a legislação hoje vigente no Brasil permitiria o aumento da previsão de despesas, desde que não ultrapasse as despesas registradas em 2016, acrescidas de inflação. Segundo esse critério, haveria espaço de sobra para um orçamento menos danoso para a pesquisa científica. Afinal, o orçamento do CNPq vem sendo reduzido de modo sistemático nos últimos anos, após o pico registrado em 2013, quando a agência recebeu a dotação de R$ 3,14 bilhões. A queda se intensificou a partir de 2016, primeiro ano de governo Michel Temer (MDB) e em 2021 ficou apenas em R$ 1,21 bilhão – menos da metade do orçamento previsto em 2000. Duas mudanças institucionais ocorridas nos últimos anos ajudam a entender o que está por trás da atual e destrutiva dinâmica orçamentária.
A primeira é a instituição da emenda 95 de 2016 (EC 95/2016), a que estabelece o “teto de gastos” que limita as despesas da União aos valores de 2016, acrescidos da inflação. O principal dilema oriundo da regra de ouro que ela instituiu é como montar um orçamento em um cenário de crescimento real (ou seja, acima da inflação) das despesas obrigatórias, principalmente aquelas referentes a salários, gastos previdenciários e despesas vinculadas (como nas áreas de saúde e educação básica). Para contornar esse dilema, três caminhos têm sido mobilizados: o corte em despesas discricionárias, reformas fiscalistas apressadas para reduzir os gastos obrigatórios (como a Reforma da Previdência) e a criação de créditos extraordinários, exclusivos para situações de calamidade. Foi o caso, por exemplo, dos gastos com os incentivos fiscais e o auxílio de renda durante a pandemia de Covid-19.
Como era de se esperar em um cenário desses, os gastos discricionários – aqueles sem vinculação constitucional obrigatória, usados para investimentos e produção de políticas públicas, inclusive na área de ciência e tecnologia – são os mais atingidos e têm sido objeto de cortes e bloqueios sistemáticos desde 2016. No entanto, vale lembrar que, dentre os gastos discricionários, encontram-se também as emendas parlamentares. A despeito do fato de que podem atender municípios em suas demandas diversas, elas não financiam políticas públicas de caráter universalista, a exemplo das políticas estruturais de fomento à ciência. Contudo, essas emendas têm sido mantidas, ao passo que a Ciência e Tecnologia é fortemente penalizada.
Além disso, desde a aprovação das emendas constitucionais 86 de 2015 e 100 de 2019, o Congresso aumentou significativamente sua importância na alocação de recursos do bolo orçamentário. Essas medidas tornaram obrigatória a execução orçamentária das emendas parlamentares individuais e de bancada, que ao atenderem demandas particulares de municípios servem também às bases eleitorais e aos interesses de deputados e deputadas federais, razão pela qual constituem instrumento importante no manejo das coalizões governamentais. Apesar da obrigatoriedade do empenho, as emendas não estão vinculadas a uma despesa específica. Elas disputam espaço orçamentário com as despesas discricionárias, já fortemente pressionadas pelo teto de gastos.
O casamento entre essas duas mudanças gerou um ciclo vicioso, difícil de contornar, cujo resultado é a canibalização por emendas parlamentares de políticas públicas bancadas por despesas discricionárias, a exemplo dos programas de fomento à inovação científica e tecnológica.
Uma das saídas adotadas pelo Poder Executivo é a negociação com parlamentares para incluírem suas emendas em programas já previstos no planejamento ministerial. Esse é um mecanismo usado, principalmente, para mitigar o investimento fragmentado das emendas parlamentares e manter, ao mesmo tempo, programas considerados estratégicos pelo governo. Assim, por exemplo, um programa de investimentos em estradas previsto pelo Ministério da Infraestrutura poderia ser patrocinado por um parlamentar, por meio de uma emenda. Entretanto, novamente aqui a ciência perde. A principal destinação dos recursos está no âmbito de ministérios cujas despesas têm maior capacidade de retorno eleitoral, como, por exemplo, o Ministério do Desenvolvimento Regional. Em estudo do Observatório do Legislativo Brasileiro do início deste ano, em parceria com o projeto Ciências Sociais Articuladas (A4), verificamos que a ciência e a tecnologia estão longe de ser prioridade na agenda de investimentos dos parlamentares brasileiros.
A aprovação da versão modificada do PLN 16/21 deu nova mostra disso. O projeto não recebeu a devida atenção sequer dos parlamentares de partidos de esquerda, como os do PT, que, segundo esse mesmo relatório, apresentariam tendência maior a destinar recursos para a área.
Na Câmara dos Deputados, apenas o Psol orientou votação contrária ao PLN, enquanto o PSL foi favorável. Os demais partidos não se posicionaram a respeito da matéria, em que pese a atuação individual de alguns parlamentares. A mistura entre uma legislação que impõe cortes indiscriminados no orçamento público e a prevalência da lógica política do dito “centrão” parlamentar tornou a sobrevivência da pesquisa científica no Brasil uma verdadeira via crucis, à espera de dias melhores (se é que virão). Entrementes, o mínimo que se pode esperar para que ela sobreviva é ter a devida atenção de partidos e parlamentares que compreendam a importância da ciência para o bem-estar, presente e futuro, dos brasileiros.
Leonardo Martins Barbosa é doutor em Ciência Política pelo IESP/UERJ e pesquisador do Observatório do Legislativo Brasileiro (OLB) e do Núcleo de Estudos sobre o Congresso (NECON).
Debora Gershon, cientista política, é doutora (IESP/UERJ) e mestre em Ciência Política (IUPERJ), com pós doutorado pela University of California, San Diego (UCSD), e pesquisadora do OLB.
*Artigo produzido no âmbito do projeto Ciências Sociais Articuladas, que integra as iniciativas promovidas pela articulação entre a Associação Brasileira de Antropologia, Associação Brasileira de Ciência Política, Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais e Sociedade Brasileira de Sociologia em defesa das Ciências Sociais brasileiras, e é desenvolvido em parceria com o Observatório do Legislativo Brasileiro.