O sujeito moderno e o mal-ser na sociedade do desamparo
O capitalismo se radicalizou de tal modo que não se utiliza mais somente as potências do corpo, mas implica-se a subjetividade em ideais competitivos.
A construção da subjetividade humana é atravessada pelos valores éticos, morais, culturais e pela racionalidade política de cada época. E para diversos pensadores, como Michel Foucault, o sujeito moderno (nós em boa parte do Ocidente) vive e é atravessado pelos mecanismos específicos da racionalidade competitiva, individualista, de um ethos que ele procurou investigar nos seus últimos escritos.
Para Foucault, não se trata mais meramente de manter-se produtivo em termos econômicos de trabalho. O capitalismo se radicalizou de tal modo que não se utiliza mais somente as potências do corpo, mas implica-se a subjetividade em ideais competitivos. Assim, de acordo com este pensador, a subjetividade moderna está profundamente relacionada e se constitui num ethos social de competição, praticamente onipresente. A ideia de sermos não apenas profissionais competentes, mas sermos em todas as instâncias de nossas vidas empresas, empresários de nós mesmos, generaliza a obrigação da saúde, da felicidade e da eficácia.
Esses modos de relações modificam desde nossas constituições físicas, psíquicas e os modos como nos relacionamos em sociedade. Podemos inferir, de pronto, o quanto isto implica na rarefação do senso do que é coletivo, do bem comum e das ideias semelhantes ao sentimento de solidariedade ao próximo. Produz rarefação ainda da sensação de bem-estar, de amparo. O sujeito moderno é sobretudo, um sujeito solitário, abandonado, está em desamparo.
24 horas por dia
Tais modos de relações implicam na forma como percebemos o tempo, individual e o coletivo. Não basta estarmos ativos e disponíveis nos horários úteis, em dias de trabalho, a eficácia e a disponibilidade são os imperativos 24 horas por dia. E se antes entendíamos que o trabalhador, por exemplo, precisava se adaptar e procurar seguir ordens, o sujeito moderno, ou o neossujeito (o sujeito constituído na racionalidade neoliberal), empresa de si, é ao mesmo tempo o próprio chefe e empregado. Trata-se de um sujeito que tem liberdade para fazer seu próprio horário, mas mantém assim a disponibilidade total. Responde a e-mails de madrugada e a mensagens no celular nas férias, no fim de semana, etc.
Para Foucault a racionalidade política atual cria a ilusão da maximização das liberdades, para melhor geri-las. Desse modo o sujeito está em uma condição de solidão, porque livre, vê-se obrigado a maximizar seu desempenho em todas as áreas da vida: ser o mais bonito, o mais feliz, o que viaja mais, o mais culto, o mais bem-sucedido. Precisa colocar-se em vitrines de venda de si: o perfil mais badalado das redes sociais, o currículo lattes com mais produções, o perfil profissional mais competitivo. A modificação da relação com o tempo deixa a sensação de que não há motivo para descanso. A liberdade tornou-se uma obrigação de desempenho, uma vez que todos estão nessa racionalidade, dando o melhor de si e fortalecendo esse ideal. O sujeito moderno não pode reclamar de hetero-exploração, já que a ideia da livre iniciativa é o ethos vigente. Mas o neossujeito acaba por explorar a si mesmo, se rende, reage a demandas externas a si.
A subjetividade moderna é implicada nas reações disfarçadas de realização do desejo próprio. O sujeito reage e se adapta a demandas do meio e acredita que isso fortalece o gozo. A fantasia de realização produz sujeitos que podem e, portanto, devem, ser os melhores no trabalho, nas relações conjugais, serem o melhor pai, a melhor mãe, o mais inteligente, etc. É preciso viajar mais, gozar mais a vida. Tudo se passa como em um teatro social de felicidade e bem-estar, no qual não há espaço para dores, tristeza e fracasso.
Infância
Uma das ideias fundamentais da psicanálise gira em torno da importância da infância, dos acontecimentos e do suporte da criança, para a constituição psíquica saudável. Nesse sentido, o que cada vez mais observamos é a construção de miniempresas do que de futuros sujeitos integrados emocionalmente. Isso porque a competição se inicia cada vez mais cedo e de forma cada vez mais contundente.
A criança não possui espaço para ser e se integrar; vai sendo cada vez mais invadida por demandas do mundo antes mesmo de desenvolver capacidades mínimas para lidar com angústias. Vemos as crianças competindo como adultos, por notas, por atividades, por quem domina mais idiomas, quem tem mais aptidões etc. É como se os filhos antes de serem sujeitos em desenvolvimento, tenham que se torar “os futuros alguma coisa” baseado no investimento que se faz cada vez mais em currículos e menos em integração psíquica.
Nesse contexto, é claro que há implicações decorrentes desse modus operandi social, que produz subjetividades para a eficácia e não para a elaboração psíquica e manejo do desejo. A competição generalizada produz relações humanas violentas, individualistas. O indivíduo não é dado ao amparo do outro porque é preciso gastar seu próprio tempo investindo em ser melhor. Assim, os sujeitos tornam-se igualmente cansados, tristes e frustrados, pois fica evidente que em algum momento a conta da ilusão da satisfação irá chegar. É como se a racionalidade política moderna tivesse nos tomado a alma.
Mal-ser, mal-estar
A subjetividade do neossujeito é, podemos dizer, uma subjetividade construída no reagir e responder às demandas do mundo e não na constituição de si, seguida da transformação de si e do mundo. Uma subjetividade que em termos lacanianos (psicanalista francês, Jacques Lacan) não opera no mundo conforme o desejo individual, mas adapta o próprio desejo de forma tão incisiva que pode nem mesmo chegar a conhecer o próprio desejo.
Uma subjetividade que em termos winnicottianos (nos referimos a Donald Woods Winnicott, psicanalista inglês contemporâneo de Lacan) não se constrói para culminar num ser integrado e estruturado para a autenticidade, não chega a SER. O mal-ser é o eu que não chega mesmo a constituir-se e já desde cedo responde ao mal-estar social. A subjetividade moderna, entendo, se relaciona mais ao winnicottiano mal-ser, do que ao freudiano conhecido mal-estar.
O sujeito reage ao mundo cada vez mais cedo. E cada vez mais cedo as crianças deixam a infância suja de areia para a infância do tempo controlado por mil e uma atividades que estimulam a cognição, mas não contribuem para a elaboração e da constituição saudável do lúdico, do brincar, da criatividade, em suma, da psique. E é na adolescência que explodem as consequências do mal-ser infantil. O jovem é a representação da sociedade do desamparo. Frágil psiquicamente, impossibilitado de ser quem é, muitas vezes não chega mesmo a constituir-se no que é. Impossibilitado de recorrer a alguém para exteriorizar a angústia, já que o sujeito neoliberal não chora, apenas sorri, o jovem se vê quase obrigado a engolir sua tristeza ou a marcar o que não conhece na forma da imagem da própria pele cortada, mutilada. O sangue e a dor física tornam real a dor psíquica que não foram ensinados a lidar, não aprenderam a nomear.
O dano da fantasia de realização para a saúde mental é difícil de ser mensurado. Mas sem dúvida, uma sociedade que constitui subjetividades para a disputa pelo melhor sorriso e não abre espaço para a exteriorização do choro vai produzir sujeitos cada vez mais iletrados para o sofrimento. E quando se proíbe a expressão das emoções menos desejadas (como a tristeza, o medo e a angústia) se proíbe por consequência a aprendizagem, a capacidade para lidar com elas. A questão é que essas emoções não deixarão de existir mesmo que o sujeito moderno perca a capacidade para crítica em função do imperativo do gozo. Se há algo desobediente, esse algo é a tristeza. A construção de espaços para as angústias nesse contexto, é a construção de espaços para a reconstrução do coletivo, para a capacitação para a crítica e para posicionamentos no mundo que nos possibilitem nos enxergar em nós e no outro, sem precisar recorrer ao grito, ou aos extremos.
Flávia Andrade Almeida é psicóloga clínica e hospitalar, especialista em Psicologia da Saúde, Psico-oncologia e Prevenção do Suicídio. Mestre em Filosofia e estudiosa dos temas do suicídio e da subjetividade. Pesquisa suicídio a partir da perspectiva da psicanálise e dos escritos de Michel Foucault. É autora do blog e página Psicologia e Prevenção do Suicídio.