O Sul e o ordinário etnocentrismo do desenvolvimento
Em 2003, o Monde diplomatique publicou o artigo “Por uma sociedade de decrescimento”. Desde então, o tema tornou-se objeto de debate dentro do movimento alterglobalista e está longe de se esgotar. Este artigo apresenta o que “partidários do decrescimento” propõem aos países que sonham ser como o “Primeiro Mundo”Serge Latouche
No rastro dos publicitários, os homens de mídia denominam “conceito” qualquer projeto que se limite ao lançamento de um novo produto aí incluído o cultural. Não é de espantar, nessas condições, que tenha sido colocada a questão do conteúdo desse “novo conceito” que é o decrescimento. Com o risco de decepcionar, repetimos que o decrescimento não é um conceito, no sentido tradicional do termo, e que não seria o caso de falar propriamente de “teoria do decrescimento” como os economistas souberam elaborar as teorias do crescimento. O decrescimento é simplesmente um slogan, lançado por aqueles que procedem a uma crítica radical do desenvolvimento a fim de quebrar a rigidez economicista e de desenhar um projeto de reserva para uma política de pós-desenvolvimento1.
Enquanto tal, o decrescimento não constitui realmente uma alternativa concreta, é muito mais a matriz que autoriza uma abundância de alternativas2. Trata-se então de uma proposta necessária para reabrir os espaços da inventividade e da criatividade bloqueados pelo totalitarismo economicista, desenvolvimentista e progressista. Atribuir àqueles que defendem essa proposta o projeto de um “decrescimento cego”, ou seja, de um crescimento negativo sem questionamento do sistema, e desconfiar, como o fazem certos “altereconomistas”, que eles querem impedir os países do Sul de resolver seus problemas, é uma forma de surdez, para não dizer de má fé.
Um “a-crescimento”
Os altereconomistas defendem Sul deveria ter direito a um “tempo” desse maldito crescimento, por não ter conhecido o desenvolvimento
O projeto de construção, tanto no Norte como no Sul, de sociedades conviviais autônomas e ecônomas implica, rigorosamente falando, muito mais um “a-crescimento”, da mesma forma como nos referimos a um a-teísmo, do que um de-crescimento. Aliás, trata-se muito precisamente do abandono de uma fé e de uma religião: a da economia. Em conseqüência, é preciso desconstruir de maneira incansável a hipóstase do desenvolvimento.
Apesar de todos os seus fracassos, o apego ao conceito fetiche de “desenvolvimento”, esvaziado de todo seu conteúdo e re-qualificado de mil maneiras, traduz essa impossibilidade de romper com o economicismo e, finalmente, com o próprio crescimento. O paradoxo é que, pressionados em suas trincheiras, os “altereconomistas” acabam por reconhecer todos os malefícios do crescimento, sempre continuando a querer “beneficiar” com ele os países do Sul. E se limitam, no Norte, à sua “desaceleração”. Um número crescente de militantes “alterglobalistas” admitem a partir de agora que o crescimento que antes conhecemos não é nem sustentável, nem desejável, nem durável tanto social quanto ecologicamente. No entanto, o decrescimento não seria uma palavra de ordem e o Sul deveria ter direito a um “tempo” desse maldito crescimento, por não ter conhecido o desenvolvimento.
Bloqueados no impasse de um “nem crescimento nem decrescimento”, nos resignamos a uma problemática “desaceleração de crescimento”, que deveria, segundo a prática comprovada dos concílios, colocar todo mundo de acordo quanto a um mal-entendido. No entanto, um crescimento “desacelerado” nos condena a ficarmos proibidos de desfrutar os benefícios de uma sociedade convivial, autônoma e ecônoma, fora de crescimento, sem por isso preservar a única vantagem de um crescimento vigoroso injusto e destrutivo do ambiente, ou seja, o emprego.
Questionar a sociedade de crescimento
Enquanto engordamos nosso rebanho com os fardos de soja feitos sobre as queimadas da floresta amazônica, asfixiamos a autonomia do Sul
Se questionar a sociedade de crescimento deixa Billancourt desesperado, como sustentam alguns, então não é uma requalificação de um desenvolvimento esvaziado de sua substância econômica (“um desenvolvimento sem crescimento”) que devolverá a esperança e a alegria de viver aos drogados de um crescimento mortífero.
Para compreender por que a construção de uma sociedade fora de crescimento é também necessária e desejável tanto no Sul como no Norte, é preciso retornar pelo itinerário dos que “fazem objeção ao crescimento”. O projeto de uma sociedade autônoma e ecônoma não nasceu ontem, ele se formou no fio da crítica ao desenvolvimento. Há mais de quarenta anos, uma pequena “internacional” anti ou pós-desenvolvimentista analisa e denuncia os defeitos do desenvolvimento, no Sul precisamente3. E esse desenvolvimento, da Argélia de Houari Boumediene à Tanzânia de Julius Nyerere, não apenas é capitalista ou ultraliberal, como também oficialmente “socialista”, “participativo”, “endógeno”, “autoconfiante/autocentrado”, “popular e solidário”. Ele era com freqüência praticado ou apoiado por organizações não governamentais (ONGs) humanistas. Apesar de algumas microrrealizações notáveis, sua falência foi maciça e a empreitada daquilo que deveria culminar no “desenvolvimento de todo ser humano e de todos os seres humanos” mergulhou na corrupção, na incoerência e nos planos de ajuste estrutural, que transformaram a pobreza em miséria.
Um problema do Sul
Está claro que o decrescimento no Norte é uma condição do desenvolvimento de toda forma de alternativa no Sul
Esse problema diz respeito às sociedades do Sul na medida em que elas estão engajadas na construção de economias de crescimento, a fim de evitar se afundar ainda mais no impasse ao qual esse aventura os condena. Seria o caso, para elas, se ainda houver tempo, de se “des-desenvolver”, ou seja, de retirar os obstáculos do caminho para se desenvolver de uma outra forma. Não se trata de maneira alguma de fazer o elogio irrestrito da economia informal. De início, porque está claro que o decrescimento no Norte é uma condição do desenvolvimento de toda forma de alternativa no Sul. A Etiópia e a Somália estão condenadas, na mais extrema penúria, a exportar alimentos para nossos animais domésticos. Enquanto engordamos nosso rebanho com os fardos de soja feitos sobre as queimadas da floresta amazônica, asfixiamos nossa tentativa de verdadeira autonomia para o Sul.
Ousar fazer o decrescimento no Sul é tentar acionar um movimento em espiral para se colocar na órbita do círculo virtuoso dos “8 Rs”: Reavaliar, Reconceitualizar, Reestruturar, Relocalizar, Redistribuir, Reduzir, Reutilizar, Reciclar. Essa espiral introdutiva poderia se organizar com outros “Rs”, ao mesmo tempo alternativos e complementares, como Romper, Reatar, Reencontrar, Reintroduzir, Recuperar etc. Romper com a dependência econômica e cultural em relação ao Norte. Reatar o fio de uma história interrompida pela colonização, o desenvolvimento e a globalização. Reencontrar e uma identidade cultural própria e se reapropriar dela. Reintroduzir os produtos específicos esquecidos ou abandonados e os valores “antieconômicos” ligados à sua história. Recuperar as técnicas e o know-how tradicionais.
A restituição
Antes de ser massivamente poluída pelos dejetos industriais, a água, com ou sem torneira, era potável na África
Se quisermos, no Norte, manifestar uma preocupação de justiça mais estimulante que a simples e necessária redução do efeito ecológico, talvez seja preciso resgatar uma outra dívida cujo reembolso é por vezes reclamado pelos povos indígenas: Restituir. A restituição da honra perdida (a do patrimônio pilhado é muito mais problemática) poderia consistir em entrar em parceria de decrescimento com o Sul.
Ao contrário, manter ou, pior ainda, introduzir a lógica do crescimento no Sul sob pretexto de fazê-lo sair da miséria criada por esse mesmo crescimento só pode ocidentalizá-lo um pouco mais. Existe, nessa proposta, que se origina de um bom sentimento – o de querer “construir escolas, centros de cuidados, redes de água potável e reencontrar uma autonomia alimentar4” -, um etnocentrismo ordinário que é precisamente o do desenvolvimento. De duas, uma: ou se pergunta aos países interessados o que eles querem, por meio de seus governos ou de pesquisas de uma opinião manipulada pelos meios de comunicação, e a resposta não deixa dúvidas; antes dessas “necessidades fundamentais” que o paternalismo ocidental lhes atribui, estão os aparelhos de ar-condicionado, celulares, freezers e sobretudo os carros (a Volkswagen e a General Motors prevêem que irão fabricar três milhões de veículos por ano na China nos próximos anos, e a Peugeot, para não ficar para trás, está fazendo investimentos gigantescos…); acrescentemos, é claro, para alegria de seus responsáveis, as centrais nucleares…
Ou então escutamos o grito daquele líder camponês guatemalteco: “Deixem os pobres tranqüilos e não lhes falem de desenvolvimento5“. Todos os animadores dos movimentos populares, de Vandana Shiva, na Índia, a Emmanuel Ndione, no Senegal, o dizem à sua maneira. Porque, enfim, se incontestavelmente importa aos países do Sul “reencontrar a autonomia alimentar”, é porque esta foi perdida. Na África, até os anos 1960, antes da grande ofensiva do desenvolvimento, ela ainda existia. Não foi o imperialismo da colonização, do desenvolvimento e da globalização que destruiu essa auto-suficiência e que agrava um pouco mais a cada dia a dependência? Antes de ser massivamente poluída pelos dejetos industriais, a água, com ou sem torneira, era potável ali. Quanto às escolas e aos centros de cuidados, são eles as boas instituições para introduzir e defender a cultura e a saúde? Ivan Illich manifestou outrora sérias dúvidas sobre sua pertinência, mesmo para o Norte6. “O que continuamos a chamar de ajuda”, sublinha justamente o economista iraniano Majid Rahnema, “não passa de uma despensa destinada a reforçar as estruturas geradoras da miséria. Em contrapartida, as vítimas espoliadas de seus verdadeiros bens nunca são ajudadas, já que elas buscam se desvencilhar do sistema produtivo globalizado para encontrar alternativas adequadas a suas próprias aspirações7“.
Síntese entre tradição e modernidade
Para os náufragos do desenvolvimento, só se pode falar de uma espécie de síntese entre a tradição perdida e a modernidade inacessível
Para tanto, a alternativa ao desenvolvimento, tanto no Sul como no Norte, não poderia ser um impossível retorno ao passado, nem a imposição de um modelo uniforme de “a-crescimento”. Para os excluídos, para os náufragos do desenvolvimento, só se pode falar de uma espécie de síntese entre a tradição perdida e a modernidade inacessível. Fórmula paradoxal que resume bem o duplo desafio. Pode-se apostar em toda a riqueza da invenção social para destacar dele a um só tempo a criatividade e a engenhosidade liberadas do jugo economicista e desenvolvimentista. O pós-desenvolvimento, por outro lado, é necessariamente plural. Trata-se da pesquisa de modos de desenvolvimento coletivo nos quais não seria um privilégio um bem-estar material destruidor do meio ambiente e do laço social.
O objetivo de uma boa vida decorre de múltiplas maneiras segundo os contextos. Em outras palavras, trata-se de reconstruir/reencontrar novas culturas. Se for absolutamente necessário lhe dar um nome, esse objetivo pode se chamar umran (desenvolvimento) como em Ibn Kaldun8, Swadeshi-sarvodaya (melhora das condições sociais de todos) como em Gandhi, bamtaare (estar bem em conjunto) como nos Toucouleurs, ou Fidnaa/Gabbina (a irradiação de uma pessoa bem alimentada e liberada de qualquer preocupação) como nos Borana da Etiópia9. O importante é significar a ruptura com a empreitada de destruição que se perpetua sob a bandeira do desenvolvimento ou da globalização. Essas criações originais, das quais podemos encontrar aqui ou ali começos de realização, trazem a esperança de um pós-desenvolvimento.
Sem dúvida nenhuma, para colocar em prática essas políticas de “decrescimento”, é preciso, de início, no Sul como no Norte, uma verdadeira cura de desintoxicação coletiva. O crescimento, com efeito, foi ao mesmo tempo um vírus perverso e uma droga. Como escreveu Majid Rahnema: “Para se infiltrar nos espaços vernaculares, o primeiro Homo economicus tinha adotado dois métodos que não se pode deixar de lembrar, um deles a ação do retrovírus HIV e o outro os meios empregados pelos traficantes de drogas10“. Trata-se da destruição das defesas humanitárias e da criação de novas necessidades. A ruptura das cadeias da droga é difícil já que é do interesse dos traficantes (na espécie a nebulosa das empresas transnacionais) nos manter na escravidão. No entanto, há todas as chances para que sejamos incitados a isso pelo choque salutar da necessidade.
(Trad.: Frank de Oliveira)
1 – Ver “En finir une fois pour toute avec le développement”, Le Monde diplomatique, maio de 2001. Ler também, La décroissance. Le journal de la joie de vivre, Casseurs de pub, 11 place Croix-Pâquet, 69001 Lyon.
2 – Ver “Brouillons pour l’avenir: contributions au débat sur les alternatives”, Les nouveaux Cahiers de l’IUED, n. 14, PUF, Paris/Genebra, 2003.
3 – Esse grupo publicou The development dictionary, Zed Books, Londres 1992. Tradução francesa a ser brevemente lançada pela Parangon com o título de Dictionnaire des mots toxiques.
4 – Jean-Marie Harribey, “Développement durable: le grand écart”, L’Humanité, 15 de junho de 2004.
5 – Citado por Alain Gras, Fragilité de la puissance, Fayard, Paris, 2003. p. 249.
6 – O lançamento do primeiro volume de suas obras completas (Fayard, Paris, 2004) é a ocasião para reler “Némésis médicale”, que permanece absolutamente atual.
7 – Majid Rahnema, Quand la misère chasse la pauvreté, Fayard/Actes Sud, Paris-A