O tamanho das identidades
A divisão entre países grandes e pequenos na União Européia não pode ser negada. Mas as grandes diferenças passam por outros critérios, como grau de desenvolvimento, tradições culturais ou conquistas sociais e ambientaisJean-Claude Boyer
A Europa deve aos acasos da história o fato de ser constituída por Estados de dimensões demográficas muito distintas: dos 15 membros da União Européia, dez países têm entre 0,4 e 16 milhões de habitantes; cinco, entre 41 e 82 milhões. Tradicionalmente, as instituições comunitárias assinalavam essa diferença pelo número de comissários atribuído a cada país: um para os pequenos, dois para os grandes. Se, na Europa ocidental, as fronteiras se estabilizaram após o fim da Segunda Guerra Mundial, a queda do comunismo aumentou o desmembramento político da Europa central e oriental, com a fragmentação da ex-URSS e da ex-Iugoslávia e com a cisão da Tchecoslováquia. A Polônia (perto de 40 milhões de habitantes) é, então, o único Estado grande a integrar a União Européia (UE) no dia 1° de maio de 2004, ao lado de nove pequenos, cuja população varia de 0,4 a 10 milhões.
A regra da maioria acha-se dividida entre duas lógicas – a da representação dos cidadãos e a da representação dos Estados
As instituições criadas pelo Tratado de Roma (1957) e implantadas em 1° de janeiro de 1958 concederam grandes vantagens aos pequenos Estados fundadores, aqueles do Benelux (Bélgica, Holanda e Luxemburgo). Mas eram, então, apenas três num total de seis, e não ameaçavam impor sua dominação. As ampliações sucessivas romperam esse equilíbrio para desembocar numa Europa dos 25 que conta com 19 Estados pequenos e seis grandes, os quais, entretanto, reúnem três quartos da população. A União Européia encontra-se, pois, diante do dilema de toda construção supranacional: a regra da unanimidade leva a uma quase paralisia quando o número de membros aumenta, mas a regra da maioria acha-se dividida entre duas lógicas – a da representação dos cidadãos e a da representação dos Estados.
Em teoria, são as estruturas intergovernamentais (Conselho Europeu, Conselho dos Ministros) e a regra da unanimidade que parecem ter melhores condições de proteger os Estados pequenos. Na realidade, estes se afastaram habilmente das instituições em que, ao menos parcialmente, o pertencimento nacional tende a perder importância: Parlamento e Comissão. Ainda que seus membros sejam designados pelos governos, a Comissão é uma instância colegiada que trata os Estados membros de maneira principalmente igualitária, não hesitando em criticar esse ou aquele grande quando desrespeita as regras européias. Em contrapartida, as negociações intergovernamentais são menos atentas aos interesses dos pequenos do que aos dos grandes, sendo que uma regra não escrita é a de não denunciar um dos últimos, e menos ainda dois! O não respeito ao Pacto de Estabilidade e de Crescimento por parte da França e da Alemanha foi um exemplo recente disso. Tem-se aí, no fundo, apenas a transcrição em escala européia de uma prática das relações internacionais, a qual continua amplamente baseada em relações de poder.
Unanimidade enganosa
Existe uma versão européia da prática das relações internacionais, que continua baseada em relações de poder
Os austríacos chamaram a atenção, não sem um fundo de verdade, para o fato de que as medidas de boicote de que foram alvo em certo momento, logo após a entrada da extrema-direita no governo, provavelmente não teriam sido aplicadas a um Estado grande, como a França, por exemplo. Nas relações intracomunitárias, até a unanimidade é enganosa. Quando só um Estado impede a adoção de uma medida, exerce-se sobre ele uma pressão considerável que é mais forte à medida que ele “pesa” pouco sobre a população e sobre o Produto Interno Bruto (PIB) da União. Se o Reino Unido multiplicar as obstruções, acordos serão tentados pacientemente; se o Luxemburgo fizer o mesmo, farão com que compreenda que sua posição não é oportuna e que, no máximo, será tolerada uma recusa sobre um ou dois assuntos de seu interesse, mas para os quais será importante que ele encontre aliados – sobre a fiscalização, por exemplo. Em geral, mesmo em relação aos Estados pequenos, a Comissão e o Conselho procuram, entretanto, evitar a ruptura.
As recentes negociações com os Estados que vão aderir à União mostram isso: se, na elaboração do projeto de tratado constitucional1 , a mídia destacou principalmente a intransigência da Polônia, único Estado grande da lista, quanto ao modo de cálculo da maioria relativa, desenrolou-se uma quantidade enorme de discussões discretas que beneficiaram amplamente os novos membros. Até a pequena Malta (400 mil habitantes) obteve garantias, prazos, derrogações e vantagens financeiras não desprezíveis: confirmação de sua neutralidade, proteção de sua legislação em matéria de aborto (esclarecer na edição impressa), manutenção das restrições à compra de residências secundárias (esclarecer na edição impressa), medidas financeiras específicas (no âmbito dos fundos estruturais) para a ilha de Gozo, isenção de TVA (imposto de valor agregado) sobre alguns produtos até o fim de 2009? E as negociações continuam sobre dois assuntos delicados: a nacionalidade fictícia dada aos armadores por alguns Estados que oferecem condições vantajosas (fiscalização, legislação social etc.) e as “facilidades” bancárias.
A tática dos pequenos
Quando só um Estado impede a adoção de uma medida, exerce-se sobre ele uma pressão considerável
Essa possibilidade de defender diretamente interesses nacionais explica as razões pelas quais os Estados pequenos nunca constituíram uma coalizão, nem mesmo um lobby propriamente dito. Agrupamentos parciais existem há muito tempo, como o Benelux ou o Conselho Nórdico (este é, em parte, exterior à União, pois a Islândia e a Noruega fazem parte dele). Mas nunca conseguiram chegar, mesmo no caso do Benelux, a uma harmonização das atitudes em relação às políticas européias. De fato, as estratégias dos Estados pequenos sempre foram muito variadas: alguns preferiram atuar sozinhos, buscando o apoio de um grande com o qual tivessem afinidades culturais ou econômicas; outros, em especial a Holanda (o mais populoso e o mais poderoso economicamente dentre os pequenos), tentaram, às vezes, federar a oposição à dominação dos grandes, e principalmente da “dupla” franco-alemã. Só conseguiram parecer constituir um bloco por ocasião de muito raras controvérsias institucionais. Mesmo durante a preparação do Tratado de Nice (dezembro de 2000), a ponderação dos votos no Conselho dos Ministros deu lugar a uma discussão confusa, em que os interesses particulares de cada um dos pequenos freqüentemente prevaleceram sobre uma defesa coletiva: foi o que ocorreu com a Bélgica, que tentava obter tantos votos quanto a Holanda!
Resta, finalmente, uma única questão para a qual a frente dos pequenos se mostrou quase sem falhas: a composição da Comissão. Como a manutenção das regras anteriores (um comissário para os pequenos, dois para os grandes) resultava num executivo muito numeroso e os pequenos queriam, absolutamente, conservar “sua” vaga, os grandes aceitaram, na Cúpula de Nice, abrir mão de seu segundo comissário. Mas não se tratava senão de uma fórmula transitória, antes de um remanejamento geral das instituições. A Convenção para o Futuro da Europa propôs a distinção entre comissários de exercício pleno e comissários sem direito a voto, o que suscitou uma indignação generalizada entre os pequenos Estados que, sem dificuldade, imaginaram as conseqüências da operação. Na realidade, conheciam o precedente do Banco Central Europeu, onde a preponderância dos Estados grandes foi institucionalizada pela reforma aprovada em abril de 2003 (status particular atribuído aos cinco países com o maior Produto Interno Bruto – PIB).
As razões das divisões
A possibilidade de defender interesses nacionais explica por que os Estados pequenos nunca constituíram uma coalizão
Mas não se deve deter-se nas questões institucionais que dominaram o cenário ao longo do ano passado e ocultaram os outros interesses em jogo na construção européia. Ora, qualquer que seja a área que se examine – finanças, economia, política social, cultura, relações exteriores, defesa – é quase impossível detectar uma divisão que passe entre Estados grandes e pequenos. Desse modo, na Europa dos 15, o Reino Unido e a Irlanda não pertencem ao espaço Schengen, ao passo que o Reino Unido, a Suécia e a Dinamarca recusaram-se a adotar o euro. Da mesma forma, o desejo de fixar o teto do orçamento comunitário em 1% do PIB foi expresso em dezembro de 2003 por três Estados grandes (França, Alemanha, Reino Unido), mas também por três pequenos (Holanda, Suécia, Áustria). Quanto à atitude em relação aos Estados Unidos por ocasião da guerra no Iraque, encontraram-se no campo norte-americano o Reino Unido, a Holanda, a Polônia e a Hungria.
As divisões são estabelecidas segundo outros critérios: grau de desenvolvimento, tradições culturais, conquistas sociais e ambientais, neutralidade ou necessidade de proteção etc. Traços comuns poderão ser encontrados entre os Estados mediterrâneos, entre os ex-países comunistas, entre os partidários de uma Europa reduzida a uma zona de livre-comércio, entre os defensores do Estado de bem-estar social (por mais reduzido que esteja), entre os atlantistas, mas sem que isso isole unicamente grandes ou pequenos países. Talvez a questão do Pacto de Estabilidade e de Crescimento, o qual a França e a Alemanha foram autorizadas a não respeitar, tenha esboçado tal linha divisória, sendo que os partidários de uma estrita obediência às regras encontram-se sobretudo entre os Estados pequenos, escandalizados pelo fato de que possam existir dois pesos e duas medidas, conforme a condição de cada um: “poderoso ou miserável”. Mas apenas a Holanda, a Áustria e a Finlândia votaram, finalmente (com a Espanha), pelo respeito ao pacto.
Interesses e identidade
Em qualquer área, é quase impossível detectar uma divisão que passe entre Estados grandes e pequenos
Mais que de posições comuns, seria necessário falar de um comportamento próprio aos Estados pequenos (ou a muitos dentre eles), e que seria regido por fatores específicos2 . O primeiro é a dependência externa, necessariamente mais forte – supondo-se que todos os dados da situação permaneçam inalterados – do que para um Estado grande que dispõe de recursos e de produções variadas, bem como de um mercado interno extenso. Os Estados grandes (em primeiro lugar a Alemanha) são os principais clientes e fornecedores dos pequenos, o que cria vínculos e uma comunidade de interesses incontestáveis. Os investimentos estrangeiros têm aí, com freqüência, um peso importante, num contexto de correlação de forças que favorece as multinacionais. O pertencimento à União Européia, e eventualmente à zona do euro, é um meio de minimizar os riscos e de se fazer ouvir no cenário internacional – na hipótese de que a União Européia adote uma atitude voluntarista.
Os Estados pequenos têm, sem dúvida, mais necessidade da construção européia do que os grandes, mas, ao mesmo tempo, também têm mais a perder em termos de autonomia e de identidade. Realmente, é preciso não esquecer que a maior parte dentre eles tem sua própria língua – a União Européia conta com vinte línguas oficiais desde 1° de maio de 2004! – e sua própria cultura, que eles valorizam muito sua independência, amiúde recente e, às vezes, conquistada com muita luta, que o sentimento nacional não é menos forte (ao contrário, talvez) do que nos Estados mais poderosos. Evidentemente, vários deles mantêm relações privilegiadas com um ou vários grandes, mas num jogo sutil de atração-repulsão, como ilustra a atitude da Áustria em relação à Alemanha ou, mais ainda, a da Irlanda diante do Reino Unido. Também têm laços estreitos com outros Estados pequenos, mas não apreciam muito o fato de serem dissolvidos nesses agrupamentos regionais: o Benelux, os países nórdicos ou escandinavos, os países bálticos. São realidades mais tangíveis em Paris do que entre os habitantes dos Estados que deles fazem parte!
Atitude diante do gigante
O pertencimento à UE é um meio de minimizar os riscos e de se fazer ouvir no cenário internacional
Donde reações aparentemente contraditórias, ora conciliadoras, ora tensas, quanto aos princípios: a firmeza em relação a algumas questões simbólicas permite mostrar à opinião pública do respectivo país que se continua capaz de defender sua identidade diante do “gigante” europeu. Os eleitores, menos sensíveis que os governantes ao “realismo” econômico e político, pressionam nesse sentido, como demonstra o fracasso de vários plebiscitos no decorrer dos últimos anos (Dinamarca, Irlanda, Suécia). O tamanho de um Estado tem conseqüências qualitativas sobre seu funcionamento interno, sobre as relações entre os cidadãos e sobre a maneira de reagir às mudanças. A entrada na União Européia acarreta, pois, uma modificação de escala muito mais acentuada para os pequenos do que para os grandes, donde uma dificuldade para viver as relações internas à União, mesmo para os muito experientes do Mercado Comum, como são os países do Benelux.
A divisão por tamanho não é, portanto, puramente artificial. Mas não é a única que perpassa a União, nem a mais importante. Por outro lado, enfatizando a oposição entre Estados grandes e pequenos, privilegia-se uma ab