O teatro bolsonarista
Por qual motivo, porém, retomar Shakespeare no Brasil atual? Talvez seja essa uma pergunta desnecessária, uma vez que a posteridade comprovou que Shakespeare é atemporal. Ou seja, em qualquer momento ele pode ser utilizado para pensar os nossos dias. Shakespeare foi um mestre da linguagem e por meio dela dominou a eternidade. Soube adentrar na alma humana profundamente, nos deixando um legado permanente para errar, mesmo com seus já antigos avisos.
Um dos maiores críticos de William Shakespeare (1564-1616), o professor de Universidade de Yale, Harold Bloom (1930-2019), dizia que o Bardo de Avon era o centro do cânone ocidental em uma perspectiva secular, isto é, o ponto de referência da literatura não-bíblica na tradição ocidental. A onipresença shakespeariana se justificaria na medida em que ele teria nos inventado, pois não teria se contentado apenas em mimetizar as experiências humanas indo ao ponto de torná-las possíveis nos termos que o escritor inglês estabeleceu. Mesmo fora da língua inglesa há expressões quotidianas que devemos ao intelecto deste autor, “quebrar o gelo” (to break the ice), “desapareceu no nada” (vanish into thin air), “há método em minha loucura” (there is method in my madness) etc.
A última expressão vem de sua notória obra, Hamlet, que faz parte do repertório cultural universal como poucas outras referências podem invocar. Nesta peça teatral, o príncipe da Dinamarca é um cético e carismático, como nenhuma outra personagem do autor. Um crente cristão que começa em um ambiente altamente religioso (um fantasma o visita e o destino infernal dos suicidas o impede de encurtar o drama) e termina no humanismo de um cético intelectual (a existência colocada à prova pela razão). O carisma, no entanto, é aquilo que nos convida a nos percebermos cativados em sua busca pela verdade, levando-o a ser autor de sua própria trama e vingança. Carisma é um atributo inato, ceticismo é um atributo cultivado.
Entre as passagens famosas da peça há a cena (Ato I, Cena IV) em que Marcelo, Horácio e Hamlet se deparam com o fantasma. A despeito da advertência de Marcelo (o guarda) e de Horácio (amigo de Hamlet), o príncipe segue o fantasma em seu convite, quando logo depois Marcelo lança a famosa frase “Há algo de podre no Reino da Dinamarca”. Com isso uma pessoa que não pertence à elite reinol sugere que há algo de corrupto no reino cuja situação política era delicada não apenas pelo casamento da Rainha viúva com o irmão do falecido Rei, mas por conta da conquista recente da Noruega. Mais uma vez Shakespeare colore os tons que descrevem o sentimento humano para a posteridade.
Brasil
Por qual motivo, porém, retomar Shakespeare no Brasil atual? Talvez seja essa uma pergunta desnecessária, uma vez que a posteridade comprovou que Shakespeare é atemporal. Ou seja, em qualquer momento ele pode ser utilizado para pensar os nossos dias. Shakespeare foi um mestre da linguagem e por meio dela dominou a eternidade. Soube adentrar na alma humana profundamente, nos deixando um legado permanente para errar, mesmo com seus já antigos avisos.
A linguagem é fundamental para se compreender o que está acontecendo hoje no Brasil que luta contra a Covid-19. Assim como todos os países do mundo o Brasil também tem experimentado a dura realidade que este vírus impõe. Todavia, parece que o Brasil resolveu adotar caminho diverso.
Enquanto diariamente morrem pessoas por todo país, o governo federal tenta tirar o foco de cada morte por meio dos atos erráticos e irracionais do Presidente da República. Caso Jair Bolsonaro fosse apenas um louco, bastaria que sua sanidade fosse colocada à prova para que não comandasse mais a Nação. Todavia, parece que Bolsonaro tem uma linguagem, uma narrativa que o protege de perder o poder. A sua linguagem, na realidade, já se descolou de sua figura. Afinal, conseguiu uma proeza histórica: construiu um “ismo”.
O bolsonarismo não é idêntico a Bolsonaro. O bolsonarismo ganhou vida própria porque conseguiu construir uma narrativa. Conseguiu galvanizar os anseios de setores sociais ferozes, irritados e que há muito estavam insatisfeitos com a ausência de crescimento econômico. O atual presidente percebeu que poderia se utilizar do ódio como um propulsor emotivo para arregimentar seguidores, que aos poucos foram vestindo a camisa de seu líder idealizado, independentemente de qualquer juízo crítico. Bolsonaro tornou-se mais do que o líder carismático, tornou-se a personificação de uma ideologia.
Bolsonarismo
A ideologia bolsonarista, portanto, fundamentou-se numa linguagem capaz de arregimentar pessoas por meio do discurso simples, heróico e binário, em torno de uma figura que, se vista de perto, chega a ser patética em relação aos seus atributos intelectuais. Bolsonaro, como figura singular, comete erros de português, fala mal, tem limitado raciocínio. Os seus vícios, no entanto, ou desaparecem ou se tornam virtudes para o seu séquito de entusiastas.
O bolsonarismo fez com que Bolsonaro se tornasse alguém não passível de crítica. A narrativa dicotômica, que dividiu o mundo em duas partes, a favor e contra, fez com fosse mais fácil aos seus adeptos sentirem-se seguros de tomar lugar no debate político. A facilidade de argumentação bolsonarista acoplada à lógica igualitária das redes sociais capacitaram qualquer pessoa a se tornar uma debatedora de (quaisquer) ideias em nível de (sempre) excelência. Ignorantes políticos se tornaram da noite para o dia grandes cientistas políticos. Pessoas que não compreendem a lógica da economia, se tornaram grandes pensadores econômicos. Cidadãos que desconhecem o desenho institucional e jurídico do País, se tornaram juristas muito seguros de si.
O bolsonarismo é fácil e sedutor, pois ele não quer informação e conhecimento, ele quer repetição e engajamento. É fácil ser bolsonarista: se você se torna bolsonarista, você é a favor do Brasil, se você não é bolsonarista, então, você automaticamente é corrupto, socialista, comunista, amante de bandidos, vagabundo, assecla, partidário de ideologia de gênero, gayzista, feminazi e anticristão. Um ex-aliado se torna vítima de todos os adjetivos já utilizados para os costumeiros inimigos, não importando qualquer coerência com a realidade. Afinal, a coerência está na narrativa, na linguagem bolsonarista, que é perfeitamente coerente para o seu adepto. Não importa a realidade, importa a coêrencia interna da narrativa.
Assim, o bolsonarismo conseguiu, com sua narrativa construída, engolir o debate sobre o coronavírus no Brasil. Infelizmente, ele foi capaz de colocar pessoas nas ruas para defender o objeto de adoração ideológico, apesar do vírus que assusta o planeta inteiro e que mata. A linguagem projetada no palco das redes sociais é tão poderosa, que transporta o bolsonarista a um mundo ilusório no qual o vírus não opera. Deste modo, para bolsonaristas o número de mortos não deve ser levado a sério. É tudo fabricado para derrubar o presidente. Não passa de fake news estratégica de governadores e prefeitos oposicionistas para derrubar o objeto de adoração. Até os números perderam para o bolsonarismo. Números que são pessoas! Que são vidas! Essa forma nociva de pensar e fazer a política já tomou muitos brasileiros. A lógica de potência e de violência tomou o lugar da cooperação e do diálogo.
O bolsonarismo tornou-se maior do que Jair Bolsonaro. Já não importa mais a pessoa, o que importa é a ideologia. Assim, é necessário perceber que a peça teatral à qual o País assiste que retrata o bolsonarismo, não se limitará em suas alegorias. A pestilência saiu dos palcos e se projetou para todo o teatro nacional. Esse algo de podre não é Jair Bolsonaro, mas é o bolsonarismo. Mais do que o presidente e seu desgoverno, é necessário desconstruir o bolsonarismo. E mesmo assim, alguns chamarão, ainda, Shakespeare de…comunista.
Guilherme Antonio Fernandes é doutor em Direito pela USP, é professor, advogado em São Paulo e pesquisador do Gebrics–USP. Luís Fernando Baracho é professor de Direito Internacional e Constitucional da USJT.