O trigo e o joio
Por seu potencial futuro, a transgenia deve ser cada vez mais praticada em laboratório. Mas não há sentido em cultivar plantas modificadas agora – quando nenhum risco foi afastado, nenhuma conquista relevante alcançada e o único interesse que prevalece é o das transnacionaisJacques Testart, Arnaud Apoteker
Sob o nome de organismos geneticamente modificados (OGM), reunimos plantas, animais ou seres unicelulares cujo genoma foi enriquecido com um ou vários genes estranhos à espécie modificada. O objetivo é dar a esta última qualidades inéditas que nem a evolução, nem as técnicas clássicas, permitiriam. É improvável, por exemplo, que um gene de peixe venha naturalmente a integrar o genoma do morango… Podemos distinguir três famílias de OGM, cujos riscos e vantagens respectivos não se podem comparar.
Primeiro os OGM unicelulares, cultivados em fermentador, a maior parte dos quais fabrica substâncias de uso medicinal (vacinas, hormônios, etc). Ninguém os questiona, porque o sistema funciona (vantagem demonstrada), e é controlado (risco tolerado). Entre os OGM comerciais, são os mais “apresentáveis”. É por isso que a propaganda para plantas transgênicas os põe sempre à frente, para semear a confusão. Depois, vêm as plantas ou animais que foram modificados geneticamente para se tornarem instrumentos vivos para a pesquisa. Esses OGM de uso científico estão confinados em vivários especializados e sob regulamentação estrita. Como os precedentes, os OGM de pesquisa são relativamente bem aceitos pela sociedade (exceto pelos opositores à experimentação com animais).
Enfim, há dez anos, coloca-se a questão das plantas geneticamente modificadas (PGM), de interesse agro-alimentar ou industrial. Elas são produzidas no campo e depois, em sua maior parte, consumidas por animais de corte ou seres humanos. Essas PGM apresentam vários problemas, inexistentes no caso de outros OGM: segurança ambiental, biodiversidade, saúde, economia rural. Problemas análogos surgirão com os animais geneticamente modificados (peixes, mamíferos) logo que forem entregues à própria sorte. Na controvérsia que já dura uma década e que, na França, vai culminar com o projeto de lei apresentado ao Parlamento (ler o artigo de Robert Ali Braic de la Perrière e Frederic Pratt, nesta edição), só estas PGM são questionadas.
As PGM mais citadas por seus defensores – tomate de longa conservação, arroz golden rice, plantas capazes de crescer em desertos e “plantas-medicamentos”não existem, na realidade
A transgênese, apresentada abusivamente como prova do “domínio” humano sobre o ser vivo, constitui uma experimentação aleatória, uma tecnologia aproximada [1]. A terapia gênica nem sempre consegue curar os doentes e os animais transgênicos apresentam com freqüência problemas (esterilidade, diabetes, deformidades) sem relação aparente com o gene introduzido em seu genoma. O que, apesar de todos os discursos pretensiosos, revela a inconsistência do nosso saber. A grande farsa e os maiores riscos das supostas iniciativas de “controle” moram precisamente na ausência de controle das ações empreendidas.
A vontade demiúrgica de criar espécies quiméricas [2] por misturas de genomas, estimulada pela esperança de lucros enormes para a indústria da biotecnologia, repousa no reducionismo genético: o genoma seria o “livro da vida”, o “programa do ser vivo”: cada gene corresponderia mecanicamente a uma proteína, etc. Todas essas noções simplistas foram contraditas pela pesquisa fundamental, mas também pelas surpresas das inovações: vários genes podem concorrer para a síntese de uma proteína; a natureza de uma proteína depende de fatores externos ao genoma; qualquer OGM pode desenvolver caracteres imprevistos pela interação do transgene com o genoma do hospedeiro.
Os riscos não eliminados
Todos esses fenômenos foram constatados [3], mas continuam bastante incompreendidos e absolutamente não controlados. O transgene presente em uma PGM é, freqüentemente, diferente do que se queria nela introduzir, donde a falsa segurança das autorizações para a cultura. Aliás, recentes trabalhos australianos [4] mostraram que o gene introduzido em uma planta (a ervilha) pode nela produzir substâncias alergênicas [5] que não produzia na planta original (o feijão). Ora, esta ervilha transformada em planta tóxica teria satisfeito perfeitamente os procedimentos de autorização europeus. É preciso saber muito, antes de proceder à disseminação imediata, maciça e irreversível das plantas transgênicas. E esta pesquisa não deveria ser conduzida na plantação, a menos que se tratasse o espaço natural como um imenso laboratório!
Em 1965, o professor Girassol [6] anunciava: “Acho que não é muita ousadia dizer que daqui a dez anos, faremos crescer na areia não apenas laranjas azuis (…), mas todas as grandes culturas indispensáveis à vida humana (…) o trigo (…) a batata [7]…” Quarenta anos depois, os professores Girassol não somente continuam a espalhar as mesmas utopias, mas passaram a agir. No entanto, as PGM mais citadas por seus defensores não existem na realidade: o tomate de longa conservação, primeira PGM comercializada em 1994, foi logo abandonado: seu gosto repugnava os consumidores dos Estados Unidos e haviam sido cometidas irregularidades para obter sua autorização [8]; o arroz golden rice, que produzia a provitamina A, é um fracasso: seria preciso comer vários quilos para obter a dose quotidiana necessária da vitamina; as plantas capazes de crescer em terrenos muito ricos em sal ou em terrenos desérticos estão ainda no estágio de promessas; quanto às “plantas-medicamentos”, supostamente capazes de suprir a indústria farmacêutica de diversas substâncias, jamais – tanto quanto animais geneticamente modificados – produziram essas moléculas em quantidades suficientes para chegar ao estágio da comercialização.
As plantas que produzem inseticidas o fazem continuamente, e por todas as partes. Liberam muito mais toxinas que os tratamentos convencionais, com efeitos potencialmente devastadores, particularmente para insetos e pássaros
Que são as PGM realmente cultivadas, em cerca de 100 milhões de hectares, essencialmente no continente americano? Trata-se, em 98% dos casos, de plantas capazes ou de produzir elas mesmas um inseticida ou de tolerar as aplicações de herbicidas. Nas duas situações, o efeito benéfico inicial corre o risco de se atenuar em alguns anos, pois as pragas combatidas se adaptam. Insetos parasitas mutantes poderão resistir ao inseticida; plantas adventícias [9] podem tornar-se resistentes, porque auto-selecionadas ou elas mesmas tornadas portadoras do transgene. Existe o risco (como para os antibióticos) de ficar sem defesa diante de novas configurações parasitárias.
Economizar trabalho, exterminar a vida
Já existem plantas silvestres resistentes a todos os herbicidas comuns. As PGM que produzem inseticidas o fazem continuamente, e por todas as partes da planta. Elas liberam muito mais toxinas do que os tratamentos convencionais, com efeitos potencialmente devastadores sobre o ambiente, particularmente para insetos e pássaros. Nas PGM tolerantes a um herbicida, este costuma ser aplicado de uma só vez (para economizar mão-de-obra) e maciçamente (em dose dupla ou mais), com consequências esterilizantes para a biologia do solo (micro-organismos, vermes, etc.).
O excesso de pesticidas presentes nas PGM, seja por geração autônoma (inseticidas), seja por impregnação (herbicida) pode apresentar riscos específicos para a alimentação dos animais ou dos seres humanos que os consomem [10]. Enquanto os produtos alimentares que contenham mais de 0,9% de OGM são etiquetados, o projeto de lei do governo francês recusa esta medida para os produtos derivados de animais (carne, ovos, leite) que consumiram as PGM. Nem sequer menciona a obrigação de informar o público dos resultados dos testes de toxicidade das PGM – isso apesar das recomendações européias.
É possível também indagar sobre a eventual transmissão, às bactérias que povoam nosso tubo digestivo, de propriedades novas induzidas pelos transgênicos ingeridos – entre as quais, a resistência aos antibióticos. Apesar de muitas e antigas advertências, o projeto de lei aceita, até 2009, a presença, nos transgênicos, de genes de resistência a antibióticos.
Nenhum desses riscos foi seriamente estudado, sob o pretexto de que as plantas transgênicas apenas continuam o projeto clássico de melhoramento das espécies, que já provou sua inocuidade… É confundir a seleção varietal ou os cruzamentos tradicionais com a produção de quimeras que misturam espécies muito diferentes – inclusive animais com vegetais. Esse amálgama justifica em parte a hipótese ousada da “equivalência em substância”, que postula que a planta GM é idêntica, em sua composição, à planta-mãe não modificada, enquanto que a própria introdução de um gene estranho é suscetível de perturbar outras funções.
No paradigma da agricultura intensiva, produtivista e química, a missão, utópica, dessas PGM é a erradicação das ervas daninhas e dos insetos parasitas. Elas rompem com a atitude tradicional do camponês, resolvido a preservar sua colheita por uma espécie de “pacto armado” com a natureza – ao invés vez da erradicação. Pois o camponês sabe que o conglomerado vivo ao qual pertence é muito mais complexo, e que o que se conhece bem é insuficiente para se autorizar ações radicais sem correr o risco de uma catástrofe. Se agricultores embarcam no cultivo de PGM, é porque contam com a economia de mão-de-obra: supressão das aplicações de inseticidas, diminuição das aplicações de herbicidas (por isso, as doses maciças) – o que é altamente discutível nos países onde o desemprego de agricultores é dramático, como a China. É também porque os industriais concedem vantagens iniciais a estes “pioneiros do progresso”, para melhor levá-los a práticas dificilmente reversíveis e os fazem contemplar milagres, como se viu na Argentina e no Brasil para impor a soja GM [11].
A transgenia rompe com a atitude tradicional do camponês, resolvido a preservar sua colheita por uma espécie de “pacto armado” com a natureza – ao invés vez da erradicação
Um enorme blefe tecnológico
Em seu conjunto, as PGM são, como se sabe hoje, um enorme blefe tecnológico do qual participam instituições e alguns pesquisadores. É que um vasto mercado está em jogo: o das sementes patenteadas [12], que os agricultores terão de comprar caro e renovar todo ano, pois é proibido semeá-las de novo… Para as multinacionais das biotecnologias, que acrescentaram a seu campo original (a química) o dos recursos vegetais (pela compra das sementeiras), a questão é criar um mercado cativo no qual apenas seus interesses vão-se impor em todos os aspectos da alimentação mundial: variedades utilizadas, tratamentos fito-sanitários, modos de cultivo, comercialização. Além do mais, esses químicos vendedores de PGM garantem vendas maciças de pesticidas, associados obrigatoriamente a suas quimeras genéticas.
Recentemente, sugeriu-se o “cultivo molecular” para PGM não alimentares: plantas-medicamento ou plantas produtoras de carburantes, ou ainda plantas de uso industrial. Estas PGM “simpáticas”, mas ainda ineficientes, parecem, antes de mais nada, servir de cavalos de Tróia para avalizar uma tecnologia que não apresenta vantagem alguma para os consumidores. De fato, a produção desses medicamentos é ainda possível graças a células GM cultivadas em ambiente fechado.
Mesmo se as PGM conseguissem, no futuro, realizar as proezas prometidas, a Terra teria sido transformada num imenso campo de experimentação, antes que resultados incontestáveis tivessem sido obtidos. Tanta leviandade é o preço a ser pago por pretensas urgências impostas por uma visão do progresso ao mesmo tempo liberal (a exigência da “competitividade”) e arcaica (o cientificismo), e não parece ter tido equivalente na história das tecnociências, pois os temores nascidos com a eletricidade não impediram as lâmpadas de iluminar. Embora preocupasse, a máquina a vapor fazia os trens andarem. Se bilhões de dólares são investidos ao ano numa tecnologia cuja exeqüibilidade não foi demonstrada, é porque os interesses agro-industriais se nutrem de uma utopia que favorece suas estratégias de concentração e de dominação da alimentação mundial, do grão ao supermercado, passando pela servidão dos agricultores.
Devido às múltiplas facetas dos riscos introduzidos – consumo animal e humano de poluentes e causadores de alergias; resistência aos antibióticos; disseminação do transgene a outras espécies; redução varietal; hegemonia de algumas multinacionais na agricultura e na alimentação; industrialização das práticas dos camponeses (ler o artigo de Roger Gaillard, nesta edição), etc. – uma conclusão se impõe: as PGM não dependem apenas de perícias científicas que possamos realizar. Em tais situações, não parece haver aí outro recurso senão a perícia coletiva, do tipo “conferência de c