O trunfo da liberdade
Liberdade econômica e liberdade política não se opõem: incentivam a ação individual — principalmente a das mulheres, cuja luta pela emancipação pode constituir-se num fator decisivo para o progresso e o desenvolvimentoAmartya Sen
A Vindication of the Rights of Women, a obra clássica de Mary Wollstonecraft publicada em 1792, distinguia diversas categorias de reivindicações no interior de um programa geral de “defesa” das mulheres. Além dos direitos referentes ao seu bem-estar, estabelecia a importância dos direitos destinados a facilitar suas iniciativas. Em outros termos, conferia-lhes um papel de agente de transformação.
Os movimentos feministas contemporâneos retomaram as duas vertentes deste programa, mas parece-me indiscutível que o “lado ativo” somente hoje começa a atrair a atenção que merece, depois de se haver focalizado de modo quase exclusivo o lado do bem-estar. Há pouco tempo, os objetivos prioritários das feministas diziam respeito à melhoria da condição da mulher, à aquisição de um estatuto de igualdade. Estas correções eram necessárias. Entretanto nota-se uma evolução e um alargamento das preocupações: das reivindicações “welfaristas” passou-se à posição de levar em conta o papel ativo das mulheres. A mudança de percepção é notável: elas não são mais as destinatárias passivas de uma reforma que afeta sua condição, mas as atrizes da transformação, as iniciadoras dinâmicas de mudanças sociais visando modificar a existência dos homens, tanto quanto a delas.
A mulher ganha visibilidade
Existe uma relação de reciprocidade entre os preconceitos e o estatuto social — ou o lugar econômico — das mulheres. A posição dominante dos homens está assentada em um certo número de fatores, particularmente na sua função de “ganha-pão”, chave do seu poder econômico e suposta razão do respeito que lhe é devido, mesmo entre a família. Na outra ponta desta questão, tudo demonstra que as mulheres que conseguem ter acesso a uma renda exterior tendem a melhorar sua posição relativa no que se refere à distribuição no interior do lar.
Devido ao fato de não ser remunerado, o trabalho cotidiano das mulheres em casa é freqüentemente negligenciado na avaliação das contribuições respectivas de cada um para a prosperidade familiar. Na medida em que passa a trabalhar fora e trazem um salário, a participação da mulher ganha visibilidade. E porque elas ganham em independência, suas vozes tornam-se mais audíveis. A evolução de seu estatuto parece também modificar as idéias pré-estabelecidas sobre sua função de genitora. Assim, a liberdade de procurar e de ocupar um emprego fora do lar pode contribuir para a redução das privações — relativas ou absolutas — sofridas pelas mulheres. A liberdade adquirida em certo terreno — trabalhar fora — beneficia outras em relação à fome, à doença e a outras privações.
O respeito pelo papel de agente
Também se verifica que a taxa de fertilidade diminui à medida que evolui a condição das mulheres. Isto nada tem de surpreendente: sendo as jovens as mais prejudicadas por sucessivas gestações e pelos cuidados que são obrigadas a dar às crianças, tudo aquilo que implica na sua autonomia, sua capacidade de expressão e de decisão tende a espaçar os nascimentos. Um estudo comparativo, executado em trezentos distritos indianos, mostrou, por exemplo, que a redução da taxa de fertilidade dependia, em primeiro lugar, de dois fatores: a educação e o emprego das mulheres. Além disso, todos os elementos que têm uma incidência sobre a emancipação das mulheres contribuem para a redução da taxa de fertilidade (todos os prejuízos ao meio-ambiente, ligados à pressão demográfica, que afetam a vida tanto dos homens quanto das mulheres, têm uma estreita relação com a questão específica da liberdade das mulheres enquanto genitoras, num contexto em que — deve ser lembrado — a gravidez repetida prejudica inúmeras jovens nos países em desenvolvimento).
Sabe-se que a alfabetização e a educação das mulheres também têm uma incidência positiva sobre a mortalidade infantil. A relação de causa e efeito expõe diversos fatores, mas o raciocínio mais elementar leva, evidentemente, à importância que as mães atribuem ao bem-estar de suas crianças e às possibilidades que lhes são oferecidas — desde que seu papel de agente seja respeitado e desenvolvido — de influenciar nesse sentido as decisões familiares. Foi também demonstrado que o reconhecimento desse papel reduz a desvantagem relativa das mulheres em relação à expectativa de vida (particularmente das meninas).
Preconceitos e mortalidade
Os países em que os preconceitos anti-femininos estão mais enraizados — a Índia, o Paquistão, o Bangladesh, a China, o Irã, os Estados da África do Norte etc. — enfrentam uma situação de ampla mortalidade feminina entre meninas de idade mais jovem, ao contrário da Europa, da América e da África sub-sahariana, regiões nas quais as meninas gozam de uma vantagem significativa em termos de expectativa de vida. Na Índia, na faixa de 0 a 4 anos, a taxa de mortalidade é hoje equivalente entre meninos e meninas, na média nacional, mas as meninas sofrem ainda de uma desvantagem notável nas regiões marcadas por fortes desigualdades sexuais, principalmente nos estados do Norte.
Um dos estudos mais convincentes sobre esta questão — incluído num considerável trabalho estatístico realizado por Mamta Murthi, Anne-Catherine Guio e Jean Drèze — toma por base os dados de 296 distritos indianos, coletados no recenseamento de 1981. Mamta Murthi e Jean Drèze continuaram esse trabalho explorando os dados do recenseamento de 1991 e obtiveram a confirmação de suas principais conclusões. Submeteram as conclusões a um conjunto de relações de causa e efeito, diferentes mas interdependentes. As variáveis estudadas, na comparação entre os distritos, incluem a taxa de fertilidade, a taxa de mortalidade infantil e a desvantagem por sexo referente à expectativa de vida em pequena idade (refletindo a ampla mortalidade feminina na faixa de 0 a 4 anos). Os dados obtidos foram comparados com um conjunto de outras variáveis suscetíveis de esclarecê-los, tais como a taxa de alfabetização das mulheres, a sua inserção no emprego, a incidência de pobreza (e os níveis de renda), o grau de urbanização do distrito, as estruturas de saúde e a localização dos grupos sociais mais deserdados (os intocáveis e os grupos tribais) no conjunto da população considerada.
Como tudo indicava, o estudo constatou uma forte correlação entre a expectativa de vida infantil e a mortalidade, de um lado, e de outro, as variáveis que refletem mais a função de agente das mulheres — particularmente seu lugar no mercado de trabalho e sua taxa de alfabetização.
Convém notar, todavia — no que se refere à sua inserção no mercado de trabalho — que as análises econômicas e sociais negligenciam muitas vezes fatores cujos efeitos são, no entanto, contraditórios. Em primeiro lugar, o envolvimento numa atividade profissional tem efeitos positivos quanto à função de agente das mulheres e é acompanhado, muitas vezes, por uma maior preocupação com a educação das crianças e maior capacidade de priorizar esta questão nas decisões familiares. Mas, além disso, devido às reticências dos homens em dividir as tarefas domésticas, a prioridade concedida às crianças não é sempre fácil de ser executada por uma mulher que deve assumir uma dupla jornada de trabalho — profissional e familiar. É portanto difícil determinar de que lado pesa o resultado claro. No estudo citado, a análise de dados por distrito não traz nenhuma conclusão definitiva e certa sobre a relação entre o emprego das mulheres e a expectativa de vida das crianças.
Discriminação sexual na expectativa de vida
Por outro lado, o impacto da alfabetização das mulheres sobre a redução estatística da mortalidade das menores de 5 anos não dá margem a qualquer ambigüidade — mesmo levando-se em conta a alfabetização masculina. O resultado confirma outros trabalhos que puseram em evidência a relação estreita existente entre a alfabetização de mulheres e a expectativa de vida infantil, seja no caso de estudos por país ou por comparação entre países. Neste campo, o desenvolvimento da função de agente das mulheres não é mais entravado pela atitude inflexível dos homens em relação às tarefas domésticas ou ao cuidado das crianças.
Resta agora examinar as conseqüências da discriminação sexual na expectativa de vida infantil (em comparação à expectativa de vida infantil total). Com relação a esta questão, conclui-se do estudo que a taxa de participação das mulheres na força de trabalho, tanto quanto a taxa de alfabetização, têm efeitos positivos que contrabalançam a desvantagem feminina. Os dados mostram uma relação inversamente proporcional entre o crescimento das taxas de alfabetização e o emprego, de um lado, e a redução da desvantagem feminina, de outro. Na linha inversa, as variáveis que expressam o nível geral de desenvolvimento e de modernização, ou não têm efeitos estatísticos significativos, ou ainda sugerem que a modernização (quando não se faz acompanhar pelo desenvolvimento do papel de agente das mulheres) tende a reforçar — e não a enfraquecer — a desvantagem relativa das mulheres em matéria de expectativa de vida infantil.
Conseqüências da intervenção da mulher
Esta conclusão reflete a observação de dados como a urbanização, a alfabetização masculina, a disponibilidade de serviços médicos e o nível de pobreza (os níveis mais elevados de pobreza são associados a uma relação mulheres/homens mais elevada). Na Índia, apesar de existir uma relação positiva entre o nível de desenvolvimento e a redução da desvantagem comparativa das mulheres em termos de expectativa de vida, parece necessário atribui-la somente às variáveis refletindo diretamente o papel de agente das mulheres, tais como a alfabetização e entrada no mercado de trabalho.
O desenvolvimento do papel de agente das mulheres graças à educação merece ainda um comentário. As análises estatísticas de Mamta Murthi, Anne-Catherine Guio e Jean Drèze mostram a amplitude das conseqüências, em termos quantitativos, da alfabetização feminina. Este fator prevalece absolutamente sobre as variações da mortalidade infantil. Por exemplo, no caso de um aumento da taxa de alfabetização das mulheres de 22% (índice registrado na Índia pelo censo de 1981) para 75%, a taxa de mortalidade previsível para os menores de 5 anos (tanto meninos quanto meninas) cairia de 156 por mil (dados do censo de 1981) para 110 por mil.
Prejuízo às liberdades femininas
A eficácia deste único fator na redução da mortalidade infantil contrasta nitidamente com o papel difuso que o estudo atribui à alfabetização masculina ou à redução da pobreza. Um aumento equivalente de alfabetização masculina (de 22% a 75%) reduziria, na mesma faixa de idade, de 169 por mil a 141 por mil. Uma redução de 50% de incidência da pobreza (a partir do nível de 1981) deveria reduzir o valor previsível da mortalidade infantil de 156 por mil para 153 por mil.
O papel de agente das mulheres intervém também, de maneira preponderante, na redução da taxa de fertilidade. Quando essa taxa se mantém em nível elevado, verifica-se entre os seus efeitos negativos um prejuízo às liberdades substantivas femininas, devido à gravidez freqüente e à sua dedicação quase exclusiva aos cuidados com seus filhos. Este estado de coisas é evidente em inúmeras regiões, principalmente na Ásia e na África. Neste campo, também, as evoluções acarretam uma interconexão entre o bem-estar e a função de agente das mulheres, e constata-se, além disso, que a redução da taxa de fertilidade — onde ela é concreta — é conseqüência do estatuto das mulheres e de seus direitos.
A exceção de Kerala
Voltando ao estudo de Mamta Murthi, Anne-Catherine Guio e Jean Drèze, que analisa, no caso da Índia, as variações da taxa de fertilidade por distrito. De todas as variáveis observadas, duas apenas têm uma incidência significativa, de um ponto de vista estatístico, sobre a fertilidade: trata-se da alfabetização e da inserção no mercado de trabalho. Aqui, ainda, a importância da função de agente das mulheres aparece com peso, principalmente considerando as poucas conseqüências das variáveis que refletem o progresso econômico geral. Mas, acima de tudo, o estudo confirma, em termos de números, o vínculo estreito entre elevação do nível de alfabetização e baixa da fertilidade, constatado em outros países por ocasião de pesquisas de campo. É evidente que a relação de causa e efeito está ligada à recusa, expressa pelas mulheres beneficiadas de uma forma ou de outra pela educação, de se verem reduzidas ao papel de genitoras. A instrução alarga seu horizonte, põe-nas em contacto com ao menos algumas noções de planejamento familiar e dota-as de uma visão mais ampla para exercer seu papel de agente nas decisões familiares, inclusive em termos de fertilidade e de nascimentos.
É importante avaliar por um instante a situação na região de Kerala. O Estado indiano mais avançado socialmente é também o que registra mais forte redução de fertilidade, ligada ao reconhecimento da função de agente das mulheres. Enquanto a taxa de fertilidade permanece superior a 3 para o conjunto da Índia, ela situa-se em 1,7 em Kerala, número inferior ao “limiar de substituição” (que se situa a 2 e que corresponde, em termos simples, a duas crianças por casal), inferior também à taxa de 1,9, que tem a China. O acesso generalizado das mulheres à educação, até um nível alto, explica em boa parte esta baixa, que tem acontecido num ritmo progressivo. Assinalemos ainda que a função de agente das mulheres e sua alfabetização, tendo também efeitos sobre a taxa de mortalidade, constitui uma outra via de explicação — menos direta, é verdade — para a baixa de natalidade, na medida