O urânio na raiz do conflito
Apesar de ser o terceiro produtor mundial do minério, o Níger continua entre os países mais pobres do mundo, segundo a ONU. O conflito entre tuaregues e governos sobre a exploração das jazidas prossegue, assolando o norte do país. Por enquanto, um terceiro ator está vencendo a disputa: as multinacionais
“Se a luta é a única voz ouvida, nós optamos por ela.” Com essa firme e assustadora declaração, o Movimento dos Nigerinos para a Justiça (MNJ)1 selou a volta da guerrilha no Níger, após 12 anos de paz. O acordo firmado em 24 de abril de 1995 entre governo e rebeldes, majoritariamente tuaregues, chegava ao fim.
Os combates recomeçaram em fevereiro de 2007 na região de Agadez, no norte, e se estenderam até a zona do lago Chade, no sudeste do país. Antigos militantes, desertores do exército regular e alguns novatos compuseram as tropas insurgentes. Em pouco tempo, eles multiplicaram os ataques a instalações militares e aos símbolos do Estado. Além da aplicação efetiva do tratado de 1995, que previa, entre outros pontos, a descentralização econômico-regional, o MNJ reivindica a transferência de 50% da renda da mineração às coletividades locais e a contratação prioritária das populações autóctones nesse setor, assim como o fim do “tráfico” de licenças de exploração de matérias-primas e das atividades de pesquisa nas regiões de pecuária.
O Níger é o terceiro exportador mundial de urânio. A produção anual, avaliada em 3.300 toneladas, representa 48% de suas receitas de exportação e pode crescer ainda mais. Isso porque, desde 2003, após 20 anos de queda, o preço do produto está subindo.
Mas, apesar disso, ainda é um dos países mais pobres do mundo (ocupa a posição 174 entre 177 no Índice de Desenvolvimento Humano fixado pelas Nações Unidas) e enfrenta, regularmente, graves crises alimentares. Justamente por isso o governo, instalado na capital Niamey, encara o interesse renovado pelo combustível nuclear como uma vantagem sem precedentes na “batalha pelo desenvolvimento econômico e social”3.
Fim do Monopólio Francês
Para aumentar as receitas mineradoras da ex-colônia francesa, o presidente Mamadu Tandja tratou de diversificar os parceiros. Até então, o urânio era explorado por duas empresas franco-nigerinas, das quais a Areva NC, número um em energia nuclear civil, é a acionista majoritária2: a Société des Mines de l’Aïr (Somair) e a Compagnie Minière d’Akouta (Cominak). A situação tranqüila vivenciada pela gigante francesa mudou radicalmente em 26 de junho e 25 de julho de 2007. Nessas datas, o coronel Gilles de Namur, responsável pela segurança da Areva NC, e Dominique Pin, o diretor local do grupo, foram expulsos do país, acusados de apoiar o MNJ3. As relações entre Paris e Niamey voltaram a se normalizar somente em janeiro de 2008, quando o governo nigerino confirmou os direitos de exploração da Areva nas enormes jazidas de Imuraren, destinadas a serem uma das maiores minas de urânio do mundo. Em compensação, o preço do urânio pago pela Areva elevou-se 50%.
Assim, em novembro do ano passado, a China Nuclear International Uranium Corporation (Sino-Uranium), filial da estatal chinesa China National Nuclear Corporation (CNNC), que explora a importante concessão de Tegguida desde 2006, obteve licença de exploração da jazida de Azelik. Além disso, autorizações de pesquisa foram concedidas a 20 empresas “juniores” canadenses, australianas, sul-africanas, indianas e britânicas.
As concessões de mineração, já autorizadas ou em negociação, se estendem por quase 90 mil km2 a partir do limite ocidental do maciço do Air (região de Agadez), situado entre a fronteira argelina e o penedo de Tiguidit. Não se cogitou consultar as populações do norte – pelo menos 300 mil pessoas, principalmente tuaregues –, cujos territórios ancestrais foram concedidos às empresas. Os habitantes da região de Tegguida-n-Tessum (a oeste de Agadez) simplesmente receberam uma ordem de evacuar o perímetro, de cerca de 2.500 km2, cedido para a Sino-Uranium. A Niger Uranium Limited, por sua vez, iniciou a prospecção em In Gall e Ighazer e proibiu os criadores de gado de usarem os poços pastoris. Já em torno de Imuraren, as atividades de exploração empreendidas pela Areva provocaram a fuga do rebanho bovino local e inviabilizaram qualquer atividade pecuária.
Ademais, o início do funcionamento de novas minas, previsto para 2010 e 2012, em Azelik e Imuraren, respectivamente, só redobra os temores suscitados pelo primeiro relatório da situação radiológica e sanitária nas duas cidades mineradoras, Arlit e Akokan. O estudo, feito entre 2003 e 2005 pela Comissão de Pesquisa e Informação Independente sobre a Radioatividade (Criirad) e por uma organização não-governamental de juristas chamada Sherpa, revelou que a água distribuída à população de mais de 86 mil habitantes apresentava níveis de radioatividade superiores às normas de potabilidade internacionais. Além disso, a ferragem saída das usinas era vendida nos mercados, recuperada pela população e utilizada em construções ou como utensílios de cozinha.
Em maio de 2007, a Criirad detectou na sede da Areva e no Centro Nacional de Radioproteção do Níger a presença de estéreis (resíduos da extração) em local público, assim como níveis de radiação gama até cem vezes acima do normal. Na ausência de uma perícia científica séria, os riscos à saúde são difíceis de avaliar em longo prazo4. Entretanto, a Sherpa sublinha a multiplicação de casos de doenças respiratórias e pulmonares graves, que seriam sistematicamente escondidas dos pacientes pelos dois hospitais construídos e administrados pela Somair e pela Cominak.
As duas sociedades mineradoras são o segundo empregador do país, depois do Estado, e suas necessidades enormes de abastecimento beneficiam um grande número de empresas. Contudo, são essencialmente os nativos do sul (hauçás e djermas), mais instruídos e bem representados nas esferas administrativas e políticas, que ocupam os postos-chave e ficam com os melhores contratos. A população local tuaregue, pouco escolarizada e de estilo de vida tradicional, está à margem da economia das cidades mineiras.
Entre 1973 e 1974, logo depois do início da exploração da mina de Arlit, quando a seca dizimou mais de 75% de seu rebanho animal, muitos tuaregues tomaram o caminho do exílio nas grandes cidades ou mesmo na Argélia e na Líbia. Aproximadamente 20 mil retornaram ao país no fim da década de 1980, incentivados pelo discurso de “distensão” do coronel Ali Saibu, que pôs fim a 13 anos de “regime de exceção” do general Seyni Kuntche. O Níger passou então por uma crise econômica e nada foi feito para absorver esse retorno maciço. A ilusão de abertura do regime dissipou-se rapidamente, quando um confronto entre os tuaregues e as forças da orde
m, em Tchin-Tabaraden (maio de 1990), foi seguido de uma repressão violenta5.
A ausência de sanções somou-se às frustrações dos tuaregues, e o sentimento de marginalização traduziu-se, em outubro de 1991, na eclosão da primeira rebelião.
Deslocamentos maciços de populações
Em agosto de 2007, decretou-se estado de “vigilância” – uma forma de estado de exceção – na região de Agadez. A seguir, organizações de defesa dos direitos humanos denunciaram mais de cem prisões e detenções arbitrárias, assim como cerca de 70 execuções sumárias de civis perpetradas pelas Forças Armadas Nigerinas (FAN) em represália aos ataques do MNJ. Falou-se em torturas, estupros, pilhagens e massacres de rebanhos, via de regra a única fonte de renda dos habitantes da região. Em seus deslocamentos, as FAN usam os civis como “escudos humanos”, principalmente para se proteger das minas.
Tais abusos provocam deslocamentos maciços de populações. “Em Iferuane, só sobrou o exército, todos os habitantes fugiram”, testemunhou o responsável por uma pequena associação que foi obrigado a abandonar suas atividades na região. O medo das represálias e das minas nas estradas tornou o abastecimento cada vez mais difícil. Os preços dispararam e a temporada o turismo, antes fonte de renda, não acabou.
O presidente Mamadu Tandja se recusa a negociar com os rebeldes, que qualifica como “bandoleiros e traficantes de droga”. A zona afetada pelo conflito é proibida aos jornalistas6. Niamey se arroga o direito de dispor livremente dos recursos naturais e convida os nigerinos a enxergar a origem da crise na importância estratégica do país. Em meados de abril, porém, a Assembléia Nacional exigiu que o governo “tomasse todas as medidas para uma solução pacífica e duradoura do conflito”, que considerou uma “grave ameaça à estabilidade do Níger”. Por ora, a exigência não teve efeito.
*Anna Bednik é jornalista.