O urbanismo contemporâneo e a cidade doente
A análise cuidadosa das características físicas dos assentamentos humanos e das condições da população, crucial na formação de uma ideia de higiene pública, foi a matriz do Urbanismo Moderno.
Periódicas ondas epidêmicas e seus efeitos originaram transformações importantes na forma urbana: dos leprosários para confinar as vítimas da peste, às grandes obras de infraestrutura, como sistemas de esgoto e aquedutos para o controle da cólera, às normas de higiene que desenharam bairros projetados disseminados pelas nossas cidades, como o de Higienópolis, ao combate à tuberculose a partir de leis de cubagem de ar aplicadas à construção de moradias.
Se, por um lado, é verdade que, devido à maior densidade populacional, as epidemias encontraram nas cidades uma área de maior propagação do que no campo, não se deve esquecer que o mundo rural é a área em que muitas dessas doenças foram desencadeadas, a partir de práticas agronômicas e zootécnicas inadequadas.
A análise cuidadosa das características físicas dos assentamentos humanos e das condições da população, crucial na formação de uma ideia de higiene pública, foi a matriz do Urbanismo Moderno. A nova ciência urbana nasce, portanto, de parâmetros que migraram da saúde pública e que foram interiorizados na forma de legislação como códigos de obras e planos urbanísticos, com o objetivo de regular o crescimento e as transformações urbanas. Todavia, das preocupações de ordem sanitária nasce também a consciência de que a forma urbis é importante para a saúde dos habitantes da cidade. A partir do final do século XVIII, e principalmente no início do século XX, se pensarmos na maioria das cidades do Centro-Oeste Paulista como Bauru, tais parâmetros já estavam explicitados em um aparato legal que previa a localização de cemitérios, prisões, hospitais e matadouros.
Ciência
Mas a cidade não é apenas um terreno fértil para doenças contagiosas: como matriz da civilização, é o lugar onde nasceu o conhecimento e o pensamento científico, que permitiram aos seres humanos manter sob controle o efeito devastador dos patógenos.
A longa relação entre cidade e doença eventualmente permitiu a criação de áreas disciplinares especializadas na investigação, diagnóstico e identificação das terapias. A partir do conjunto de conhecimentos e técnicas destinadas a “cuidar” da cidade, surgiu a disciplina que denominamos Urbanismo. A base instrumental teórico-técnica desse campo disciplinar, que foi inicialmente definido como engenharia sanitária, foi capaz de se formar dentro de um campo de experimentação interdisciplinar em que médicos e engenheiros deveriam curar o grande corpo doente que era a cidade – il male città (CALABI, 1979) .
Mas hoje, o urbanismo não é apenas técnica, mas uma disciplina que tem por base três aspectos da palavra cidade: urbs, a cidade como ambiente físico da atividade do homem; civitas, a sociedade que vive naquele ambiente; polis, a atividade de governo mediante a qual a sociedade organiza o próprio espaço. E hoje, a maneira como a cidade afeta seus habitantes está representada pelas más condições ambientais, não mais (ou não apenas) por contágio. A consciência do risco à saúde, que foi introjetada na condição urbana no momento em que as cidades possuíam limites precisos, já não é mais a mesma no momento em que se estimula uma alargada dispersão no território, que está levando à uma mutação morfológica e funcional do ambiente como um todo, alterando a própria noção de cidade.
Cidade moderna
As transformações atuais do espaço urbano na cidade contemporânea criam uma série de necessidades ao modo de fazer urbanismo, derivadas do reconhecimento do fenômeno em ação e que exigem o repensar de figuras e imagens recorrentes em nosso vocabulário. Entretanto, a realidade de nossas cidades mostra que os princípios básicos, como aqueles de saneamento, ainda são urgentes para que o processo de produção da cidade moderna seja efetivamente completado. E assim, a vocação inicial do Urbanismo, como disciplina capaz de promover o bem-estar social, uma disciplina que visava mitigar, ou melhor, reverter o modelo de vida em comum devastado por um desenvolvimento industrial impetuoso e feroz, ainda possui validade. Os métodos e as ferramentas a serem adotadas ainda são aquelas do planejamento urbanístico como saber constituído, no qual o Plano Diretor se coloca como principal dispositivo para assegurar o direito coletivo à cidade. E, “Mesmo sobrevindo encontros e desencontros é a participação popular que permite aos indivíduos serem sujeitos ativos na construção de uma sociedade nova, lugar do direito, da justiça e da fraternidade” (RETTO JR, DAIBEM, A.M.L, 2020).
Adalberto da Silva Retto Jr é professor da Universidade Estadual Paulista – UNESP. Doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e pelo Departamento de História da Arquitetura e Urbanismo do Instituto Universitario de Arquitetura de Veneza (2003). Professor-pesquisador Visitante no Master Erasmus Mundus TPTI (Techiniques, Patrimoine, Territoire de l Industrie: Histoire, Valorisation, Didactique) da Universitè Panthéon Sorbonne Paris I(2011-2013).