Obama volta atrás
Com a decisão de manter no Pentágono o atual secretário de Defesa, Robert Gates, o presidente eleito dos Estados Unidos abriu mão do controle efetivo sobre a situação no Iraque. Seu plano inicial de retirar as tropas em até 16 meses parece apenas uma promessa distante
Após o impressionante triunfo eleitoral de Barack Obama, uma das grandes questões a rondar o presidente eleito dos Estados Unidos era se ele manteria a promessa, feita durante a campanha, de retirar as tropas americanas do Iraque em até 16 meses.
Para muitos analistas, o rumo dado a esse plano de remoção seria um indicativo consistente da política externa do novo governo, assim como do papel que ele exerceria nas áreas de segurança nacional e internacional.
O tema, polêmico, causou um problema sério entre o presidente eleito e a liderança militar dos EUA, reconhecidamente contrária à sua política de retirada. Obama demonstrava ter convicções firmes sobre o assunto. Contudo, seus eleitores se questionavam se ele lutaria pela política de sua preferência ou se renderia às pressões militares. Nesse embate, havia somente duas escolhas possíveis: a retirada estratégica do Iraque ou o prolongamento da presença das tropas americanas para além de 2011.
I
O plano inicial de Obama, longe de ser uma singela migalha para a base democrática antiguerra, refletia uma análise estratégica pessoal cuidadosamente preparada. A declaração mais clara do democrata a respeito das bases lógicas para a rápida retirada do Iraque veio em um discurso de 15 de julho de 2008, no qual ele dizia que o envolvimento do exército dos EUA no Iraque “nos distrai de todas as ameaças que temos adiante e de muitas oportunidades que poderíamos aproveitar”. Essa guerra, argumentava, “compromete nossa segurança, nossa reputação pelo mundo, nosso exército, nossa economia e os recursos dos quais precisamos para enfrentar os desafios do século XXI”.
Em um texto opinativo publicado no The New York Times em14 de julho de 2008, Obama disse que seu plano envolveria “ajustes táticos” e prometeu “se aconselhar com os comandantes encarregados e o governo iraquiano para garantir que as tropas fossem deslocadas seguramente”. Em uma coletiva de imprensa dois dias depois, reiterou que essas consultas não teriam o efeito de alargar o prazo de 16 meses para a retirada, mas significariam apenas uma precaução.
Obama insistiu que não alteraria sua programação para seguir as recomendações do mais alto comandante no Iraque. “O trabalho do presidente é dizer aos generais qual é a missão deles”, disse. Quando, finalmente, o democrata encontrou o general Petraeus em Bagdá naquele mesmo mês, rejeitou o elaborado argumento do comandante em defesa de uma retirada “condicionada”, de acordo com o relato de Joe Klein na revista Time, e persistiu em tomar essa decisão baseado em sua própria avaliação a respeito dos custos de prolongamento da presença americana.
Havia uma ambiguidade em seu plano. Ele sugeriu que se mantivesse uma “força residual no Iraque” para realizar “missões limitadas”, definidas como algo que incluiria não só as tropas de proteção e treinamento para os militares iraquianos, mas “perseguiria o restante da Al-Qaeda na Mesopotâmia”. Antes, porém, ele mesmo havia deixado claro que as forças voltadas para essa tarefa estariam baseadas em outros lugares do Oriente Médio e da Ásia Central.
Como todo mundo em Washington, Obama estava na expectativa do Status of Forces Agreement (Acordo sobre Status das Forças) entre EUA e Iraque, então em negociação. O texto definiria melhor as bases da presença militar americana a longo prazo. Ainda em meados de agosto do ano passado, a administração George W. Bush insistia que as datas para a retirada dos combatentes fossem somente “previsões” e, portanto, dependentes de certas “condições”. Inesperadamente, porém, o primeiro-ministro iraquiano Nouri al-Maliki forçou Bush a aceitar não só a saída completa de todas as tropas até o fim de 2011, como a de todos os soldados não-combatentes. Ele pediu ainda que os militares americanos se retirassem das cidades e aldeias até junho de 2009 e se reagrupassem em locais a serem discutidos com o Iraque.
O texto final do acordo, assinado pelo governo Bush em novembro, demanda de Washington a entrega de uma programação detalhada para a retirada completa, bem como para a criação de “mecanismos e maneiras para reduzir o número de efetivos americanos dentro do prazo especificado”. Isso proíbe as tropas americanas de operar sem a inteira aprovação do governo daquele país e de deter cidadãos iraquianos sem uma ordem judicial local. Da mesma forma, fica absolutamente proibido o uso do território ou do espaço aéreo do Iraque para “lançar ataques contra outros países”.
II
Dessa forma, quando Obama foi eleito, seu plano de retirada em 16 meses se alinhava bem com as intenções do acordo entre EUA e Iraque. Mas a cúpula militar americana estava longe de se submeter a esse pacto. Com efeito, logo veio à tona que a burocracia militar e o Pentágono tinham a intenção trazer o acordo de volta ao estágio anterior.
Três dias após a eleição de Obama, a revista Time noticiou que o comandante das forças dos EUA no Iraque, general Raymond Odierno, acreditava numa retirada “lenta, de modo cuidadoso, para que não percamos os ganhos que já tivemos”. Segundo a Time, “os militares dos EUA gostariam de aconselhar Obama ‘a ajustar sua promessa de campanha de retirar as tropas americanas em combate no Iraque até meados de 2010’”.
Pouco depois o Washington Post relatou que o almirante Michael Mullen, integrante da Junta de Chefes do Estado-Maior americano, se opunha ao prazo de Obama para a retirada por considerá-lo “perigoso”. Mullen repetiu o bordão dos militares, segundo o qual “reduções devem depender das condições do lugar”. Citando especialistas em defesa, o jornal concluiu que o conflito entre Obama e esses líderes militares seria “inevitável” se o presidente pressionasse pela retirada de duas brigadas por mês, conforme afirmava em sua própria página na internet depois da eleição.
Falando a repórteres em 16 de novembro, Mullen declarou publicamente sua intenção de recomendar que Obama estabelecesse o ritmo da retirada a partir das condições locais. Sem dúvida, esse pronunciamento representou uma provocação ao presidente eleito.
Em 18 de novembro, os oficiais d
o Pentágono disseram ao Washington Post que o prazo previsto pelo acordo lhes dá o tempo adequado para remover com segurança todo o equipamento e cerca de 150 mil combatentes do Iraque, mas “reiteraram que tal retirada deveria se dar somente com a garantia de certas condições”. Esses oficiais, que entenderam que o acerto com o governo iraquiano havia rejeitado o enfoque nas condições do terreno em proveito de um termo mais rígido, afirmavam então que os EUA não deveriam se comprometer com os limites de tempo que tinham acabado de subscrever.
E logo se tornou evidente que a insistência contínua dos militares nas circunstâncias de ação no Iraque fazia parte de um plano mais amplo da administração Bush e dos oficiais para esvaziar o Acordo sobre Status das Forças. O jornal McClatchy relatou, em 25 de novembro, que militares pró-republicanos tinham secretamente elaborado novas “interpretações” sobre as proibições presentes no texto final, o que permitiria aos EUA “se esquivarem” daquelas restrições legais. Estava nos planos usar o “direito de legítima defesa” do acordo para justificar qualquer ataque contra alvos na Síria e Irã e argumentar que somente teriam de informar os oficiais iraquianos a respeito dos planos de operações em uma determinada província, em um determinado mês.
De fato, não eram “interpretações” do acordo, mas propostas para subvertê-lo. A cautela que deveria orientar as operações militares dos Estados Unidos pressupõe não somente notificação, mas “a aprovação do governo iraquiano” e “total coordenação com as autoridades locais”. A proibição a “ataques contra outros países” no acordo é absoluta e incondicional.
Uma jogada ainda mais suja, arquitetada no Pentágono para subverter a finalidade do acordo, foi revelada pelo The New York Times em reportagem do dia 4 de dezembro. O artigo afirmava que os “arquitetos do Pentágono” estavam propondo “renomear algumas unidades, de tal modo que aquelas tropas atualmente contabilizadas como em combate pudessem receber ‘novas missões’ com seus esforços redefinidos como treinamento ou suporte aos iraquianos”. Com isso, eles calculavam que seria possível manter algo como 70 mil combatentes americanos no Iraque “por um longo tempo, mesmo depois de 2011”. O jornal sugeriu ainda, de maneira descarada, que com esse método “o objetivo de Obama poderia ser parcialmente atingido”.
Assim, o plano de manter combatentes indefinidamente no Iraque à guisa de tropas de “treinamento e suporte”, a insistência por parte do almirante Mullen e de outros líderes por uma “retirada condicionada” e a trama de justificativas para ignorar as limitações às operações dos EUA tinham em comum a intenção, por parte do exército americano e de seus aliados civis, de reverter o plano de Obama e o acordo com o Iraque.
III
De repente, Obama foi confrontado com uma burocracia do Pentágono que assinalava sua determinação em prosseguir no Iraque, algo que entrava em contradição direta com sua própria política e os anseios do governo iraquiano. A pressão quase insuportável para manter o secretário de Defesa Robert Gates no Pentágono deve ser entendida à luz desse desafio aberto à liderança de Obama, tema tão espinhoso e cuja importância é capital.
A movimentação em prol de Gates começou 24 horas após a eleição de Obama, quando o jornal The New York Times relatou que havia um pedido “feito publicamente por colunistas e comentadores e silenciosamente por lideranças do Congresso e do partido democrata” para que ele continuasse no Pentágono.
As bases lógicas para tal indicação sem precedentes eram a continuidade e a estabilidade na Secretaria de Defesa em um momento que os americanos estavam envolvidos em duas guerras. Na verdade, de acordo com uma fonte próxima à equipe de transição de Obama, o raciocínio era francamente político: os democratas, como sempre, estavam preocupados com sua suposta vulnerabilidade na área da segurança e queriam que Gates, como republicano, comandasse a situação no Iraque para dar-lhes cobertura estratégica.
E foi esse o posicionamento vitorioso. A implicação disso é clara: Gates era reconhecidamente contrário, junto com a liderança militar, ao plano de retirada de Obama. E é inconcebível que não estivesse completamente envolvido no projeto político do Pentágono para reverter o acordo assinado com o Iraque e prolongar a presença militar americana indefinidamente. Na verdade, dado o alcance e o caráter do plano relevado pelo The New York Times, é bem provável que ele estivesse no centro disso tudo.
Embora Obama possa continuar dando declarações sobre sua posição a respeito do Iraque, a nomeação de Gates indicou que o controle da questão já saiu das mãos da Casa Branca e foi entregue à burocracia do Pentágono. Agora, se estiver insatisfeito com o que Gates faz no Iraque, Obama não terá a opção de demiti-lo. Com base nas evidências, pode-se esperar que o Pentágono continue a usar todos os meios disponíveis para subverter não só o acordo, mas o regime iraquiano, tentando estabelecer uma presença militar de longo prazo.
A história de como Obama abriu mão do controle efetivo sobre a situação no Iraque nos ensina uma lição profunda a respeito da natureza do poder no tocante a uma questão de particular interesse para a liderança militar e seus aliados civis: ela mostrou quão fraco e raso é o sistema de defesa democrático contra a influência dominante do exército dos Estados Unidos e seus aliados quando estão unidos e determinados a obter as coisas à sua maneira.
*Gareth Porter é historiador, analista político e jornalista investigativo sobre a política externa e militar americana.