Onde as máfias, as transnacionais e os governos se encontram
A lavagem de dinheiro não é resultado das maldades de um ou outro governo corrupto. Tornou-se uma atividade essencial ao funcionamento do capitalismo moderno. Por isso, unem-se em torno dela, além dos mafiosos de carteirinha, transnacionais e políticos “respeitáveis”Chistian de Brie
Sistematicamente apresentada sob a forma de “escândalos” que colocam em xeque, num país e depois noutro, uma empresa ou um banco, um dirigente ou um partido político, um cartel ou uma máfia, a criminalidade financeira torna-se pouco compreensível. Esta massa de transações relativas a operações ilícitas — qualificadas de crimes e delitos aos olhos das leis nacionais ou acordos internacionais — se reduz a uma sucessão de “acidentes de percurso” da economia e da democracia liberal, que um “bom governo” seria capaz de resolver. Exatamente o contrário do que ela é na realidade: um sistema coerente, intimamente ligado à expansão do capitalismo moderno, e baseado na associação de três parceiros: governos, empresas transnacionais e máfias. Negócios são negócios: a criminalidade financeira é primeiramente um mercado, próspero e estruturado, onde se encontram a oferta e a procura — business as usual.
As grandes organizações criminosas não podem assegurar a lavagem e a reciclagem dos fabulosos lucros extraídos de suas atividades a não ser com a cumplicidade do mundo dos negócios e o “laisser-faire” do poder político. Para reforçar e aumentar suas posições e seus lucros, massacrar ou resistir à concorrência, arrancar os “contratos do século”, financiar suas operações ilícitas, as empresas transnacionais têm necessidade do suporte de seus governos e da neutralidade das instâncias reguladoras. Quanto ao pessoal político diretamente interessado, seu poder de intervenção depende dos apoios e dos financiamentos que garantirão sua sobrevivência. Este conluio de interesses constitui um componente essencial da economia mundial, o lubrificante indispensável ao “bom” funcionamento do capitalismo.
Este último avançou consideravelmente sob o efeito conjunto de três fatores. 1. A liberação completa dos movimentos de capitais que, desde fins dos anos 80, escapam a todo controle nacional ou internacional. 2. O inchaço e a desmaterialização das transações financeiras, aceleradas pela revolução tecnológica das comunicações. 3. Finalmente, a confiabilidade crescente de um arquipélago planetário de praças especializadas na gestão tolerada de uma criminalidade financeira: os paraísos fiscais.
A face cruel da concorrência
A Revolução não é um jantar de gala, justificava Mao Zedong, e a concorrência também não. Ela tem pouco a ver com estes torneios de bravos cavaleiros, narrados pelos trovadores da canção de gesta liberal, onde, tocado pela graça do Deus-mercado, o melhor vence — melhor produto, melhor serviço ao melhor preço. Como nos combates feudais, para ganhar na guerra econômica, todos os golpes valem, e de preferência os mais baixos. A casa de armas é bem guarnecida: acordos e cartéis, abusos de posição de liderança, dumping e vendas casadas, delitos de iniciados e especulação, absorção e desmembramento de concorrentes, balanços falsos, manipulações contábeis e de preços de transferências, fraude e evasão fiscal por filiais offshore e sociedades virtuais, desvio de créditos públicos e mercados fraudados, corrupção e comissões ocultas, enriquecimento sem causa e abuso de bens sociais, vigilância e espionagem, chantagem e delação, violação do direito do trabalho e da liberdade sindical, da higiene e da segurança, das cotizações sociais e do meio ambiente… [1] Acrescente-se as práticas em vigor nas zonas francas que se multiplicaram no mundo, inclusive na Europa e na França, e estão total ou parcialmente fora da lei comum, principalmente em matéria social, fiscal e financeira. [2]
Encontramos estas operações em todos os grandes setores de atividade e em todos os mercados: armamento, petróleo, trabalhos públicos, aviação civil, transporte aéreo, ferroviário e marítimo, telecomunicações, bancos e seguros, química, agro-indústria, etc. Elas permitem consideráveis desvios de fundos, saídos das contas lícitas das sociedades transnacionais para cair nos paraísos fiscais. Uma fantástica pilhagem onde nunca uma contabilidade global será feita. Para realizá-las, seus autores têm necessidade do poder do Estado e o das organizações internacionais e regionais, em particular de sua capacidade de editar um mínimo de regulamentações constrangedoras, para suprimir as que existem ou torná-las inaplicáveis, retardando indefinidamente e paralisando as investigações e instruções e aliviando ou anistiando as eventuais sanções. Em troca, eles se oferecem para “financiar a democracia” e se esmeram: campanhas eleitorais dos partidos, promoção de personalidades políticas e altos funcionários mais promissores, seguidos e perseguidos pelos exércitos de traficantes de influência, lobbies encarregados de ajudar a fazer as “boas escolhas” e de corrompê-los, e presentes em todas as instâncias de decisão. [3]
Uma pitada de crime
Finalmente, não repugna às transnacionais recorrer, no momento certo, aos serviços das organizações criminosas profissionais. Contra os trabalhadores, sindicatos pelegos, furadores de greves, polícias privadas e esquadrões da morte, usados na maior parte das suas filiais e fornecedores localizadas nos países do Sul. Contra os acionistas indóceis, a vigilância, no Japão, dos yakuzas, por ocasião das assembléias gerais. Ou mesmo a execução de “contratos” contra intermediários que incomodam muito ou investigadores muito curiosos. Já se perdeu a conta dos inúmeros homens de negócios, banqueiros, políticos, juízes, advogados ou jornalistas “suicidados” bebendo capuccino ou cianureto, enforcando-se ou caindo do décimo andar com as mãos amarradas nas costas, dando dois tiros na própria cabeça, afogando-se vestidos numa poça d’água ou na banheira, escorregando debaixo de um ônibus, numa cuba de cimento ou de ácido, caindo nus no mar, a partir de um iate cheio de guarda costas, evaporados em vôo ou de carro…
Além de tudo, bancos e grandes empresas são ávidas em captar, depois de feita a lavagem, os lucros dos negócios do crime organizado. ..Ao lado das atividades tradicionais — droga, extorsão, seqüestros, jogos, proxenetismo (de mulheres e crianças), contrabando (álcool, tabaco, medicamentos…) roubos à mão armada, dinheiro e faturas falsas, fraude fiscal e desvio de créditos públicos — prosperam novos mercados: tráfico de mão de obra clandestina e êxodo de refugiados, pirataria informática, tráfico de objetos de arte e antigüidades, carros roubados e peças avulsas, espécies protegidas e órgãos humanos, falsificações, tráfico de armas, de resíduos tóxicos e de produtos nucleares…
Cada país acoberta seus meios criminosos. As principais organizações e as mais antigas em atividade encontram-se nos pólos do capitalismo: nos Estados Unidos (Cosa Nostra), na Europa (Máfia siciliana) na Ásia (tríade chinesa e yakuzas japonesas). Outras se desenvolveram nas últimas décadas, como os cartéis colombianos ou as máfias russas. Centenas de grupos rivais dividem os mercados nacionais e internacionais do crime, fazemalianças e acordos de terceirização, com uma tendência a se multiplicarem em pequenas unidades flexíveis e móveis, especializadas em um segmento específico de mercado.
Máfias: 20% do comércio mundial
Os lucros tirados do tráfico de droga (maconha, cocaína, heroína) são avaliados entre 300 e 500 bilhões de dólares ( sem contar as drogas sintéticas, em desenvolvimento explosivo), ou seja 8% a 10% do comércio mundial. [4] A cifra de negócios da pirataria informática ultrapassa os 200 bilhões de dólares, o da falsificação, os 100 bilhões, as fraudes no o orçamento comunitário europeu, entre 10 e 15 bilhões, o tráfico de animais, 20 bilhões, etc. No total, considerando apenas as atividades que têm uma dimensão transacional — inclusive o “tráfico de brancas” —, o produto mundial bruto do crime ultrapassa largamente 1 trilhão de dólares anuais — perto de 20% do comércio mundial.
Admitindo-se que os custos (produção e fornecedores, intermediários e corrupção, despesas de investimento, gastos de gestão, perdas sobre os aproveitamentos e repressão…) representam, no geral, 50% da cifra de negócios, restam 500 bilhões de dólares de lucros anuais. Ou seja, em dez anos, 500 bilhões de dólares, mais de três vezes o montante das reservas em divisas de todos os bancos centrais, [5] um quarto da capitalização das cinco primeiras praças de bolsas mundiais, dez vezes a de Paris. [6]
Ainda é preciso administrar esta gigantesca fonte de riquezas, impossível de escoar em pequenas parcelas. [7] Dá para imaginar que todos os banqueiros do mundo têm motivo para se interessar… Ora as organizações criminosas têm absoluta necessidade da ajuda deles para lavar este dinheiro e reciclá-lo no circuito legal. Elas estão prontas a pagar o preço, e o fazem. Custo da operação: cerca de um terço, ou seja 150 bilhões de dólares divididos entre redes bancárias e intermediários: advogados, corretores, gerentes de trustes e fiduciárias. No final, são lavados e reinvestidos anualmente mais de 350 bilhões de dólares, ou seja 1 bilhão de dólares por dia.
A Cosa Nostra vai a Wall Street
Nenhum outro setor de atividade se aproxima destas cifras, e nenhum tem a força de representar entre metade e dois terços dos investimentos diretos estrangeiros (IDE). [8] As organizações criminosas multinacionais, adeptas do mercado e da globalização, cuja lógica dominam perfeitamente, não lotam as filas dos bancos. Elas buscam as taxas de lucro mais elevadas: aplicações de risco (hedge funds) e especulação financeira, cuja bolha encarregam-se de encher, mercados emergentes, imobiliários, novas tecnologias. Asseguram assim rendas sólidas nos pólos principais da indústria e do comércio. Elas são o lubrificante da prodigiosa expansão do capitalismo moderno, em sociedade permanente com as transnacionais, nas quais investiram, e com os bancos, que fazem suas aplicações. Sobra-lhes o dinheiro suficiente para sustentar seu ritmo de vida e participar do financiamento e da corrupção dos melhores partidos e dirigentes políticos em condições de manter vivo um sistema que lhes é favorável.
É precisamente o que pode oferecer o último parceiro, o integrante do poder político-burocrático, em troca de uma ajuda financeira que lhe permita manter-se à tona, e certamente enriquecer. Cabe a ele dar a ilusão de uma luta permanente, continuamente reforçada e internacionalmente coordenada (governos, polícias, juízes) contra a criminalidade financeira (corrupção, tráficos, lavagem) sem afetar o funcionamento do sistema. Mudar tudo, para que tudo permaneça igual. O fracasso de mais de 30 anos de guerra internacional contra o tráfico de drogas testemunha o “sucesso” da fórmula. Pode-se prever o mesmo destino da luta contra a lavagem de dinheiro sujo e a corrupção, enganosamente relançada pelo G7 quando da cúpula de Arche, em Paris, em 1989, e que mobilizou além dos países membros, a Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco de Compensações Internacionais (BIS), a União Européia, etc.
Foram criados organismos especializados, [9] e assinadas e ratificadas convenções internacionais sobre a repressão à corrupção nos mercados internacionais, [10] a cooperação policial e cooperação judiciária. [11] Multiplicaram-se colóquios e estudos, comissões de investigações e relatórios. Tudo acompanhado das mais vigorosas declarações e engajamentos dos dirigentes, sem que o sistema de criminalidade financeira seja de alguma forma abalado. Ele está próximo de ganhar, pelo cansaço, o combate que os melhores se esmeram em levar contra ele, como testemunham o esgotamento que atinge, na Itália, juízes e policiais engajados na exemplar operação “Mãos Limpas”. Ou o grito de alerta lançado em fins de 1996 por sete juizes europeus especializados — “o apelo de Genebra” —, que ficou sem resposta. [12]
O papel dos “paraísos”
Nada de desmantelar os paraísos fiscais, paraísos do crime e bases indispensáveis da receptação da delinqüência financeira. Seria preciso apenas incitá-los a adotar códigos de boa conduta. Uma medida tão eficaz quanto confiar os transportes de fundos à máfia, com a desculpa moral de submeter seus veículos a controle técnico. Nada de por em prática uma cooperação internacional permanente, nem mesmo um espaço judiciário europeu, mas somente querer falar dele, enquanto são necessários dezoito meses de prazo para que um pedido de cooperação judiciária vá e volte entre Paris e Genebra.
Melhor que isso: desenvolve-se, sob a égide dos Estados Unidos, primeiro parceiro da criminalidade financeira internacional, uma operação de racionalização, isto é de americanização, das técnicas de corrupção, visando substituir as práticas um pouco arcaicas de propinas e comissões clandestinas (ou declaradas) pelas atividades de lobby, mais eficazes e apresentáveis. Um ramo do setor de serviços no qual os norte-americanos se beneficiam de um avanço considerável sobre seus concorrentes, não somente por seu savoir-faire, mas também por colocarem à disposição de suas multinacionais os enormes meios de intervenção financeiras e logísticas que organizaram, aí incluindo a mobilização dos serviços secretos do mais possante aparelho de Estado mundial, passados da guerra fria à guerra econômica. Como testemunha disso temos o sucesso conseguido junto às mídias para a publicação de um índice anual de cotação dos países corruptores e corrompidos estabelecido pela Transparency Internacional Association, correspondente da CIA e financiada pelos governos e empresas, principalmente americanas, especializadas na matéria, como a Lockeed, Boeing, IBM, General Motors, Exxon, General Eletric ou Texaco. [13] As campanhas anti-corrupção, desencadeadas em revezamento pelas organizações internacionais (Banco Mundial, FMI, OCDE), só têm como objetivo o “bom governo” de uma criminalidade financeira a pa