Onde está o povo?
As noções de “povo”, “interesse geral” e “sociedade civil” se diluem, enquanto as eleições se aproximam de uma formalidade destinada a rubricar “democracia” em escolhas feitas a priori por uma elite. A democracia representativa aprofunda sua criseAnne-Cécile Robert
Tanto à esquerda, quanto à direita, o desprezo pelos eleitores, consciente ou não, tornou-se o tema recorrente de uma classe dirigente com problemas de legitimidade. Assim sendo, com uma estranha repreensão – “Foi por culpa dos eleitores…” – Sylvianne Agacinski-Jospin comentou a derrota de seu marido Lionel, no primeiro turno da eleição presidencial francesa, em 21 de abril de 20021. Por culpa dos eleitores: portanto por culpa da democracia, do povo que não sabe mais distinguir os “bons” representantes dos maus. Esse desprezo é flexionado em vários registros, mais ou menos como a “seqüência do nariz” de Cyrano de Bergerac.
Altivo: “Os eleitores não compreenderam nossa política”. É uma outra maneira de dizer que são idiotas por não terem percebido os benefícios das privatizações, da moeda européia ou do desmantelamento da seguridade social.
Falsamente modesto: “Comunicamos mal”. Conclusão: nossas escolhas eram boas para eles, mas não soubemos explicar-lhes. O fato de os eleitores não terem vivenciado essa política como melhoria de suas condições de vida fica reduzida a um simples problema retórico.
Messiânico: “A história nos dará razão”. É o discurso da “esquerda plural” desde 21 de abril de 2002, ou de Anthony Blair a propósito das polêmicas sobre a guerra do Iraque2. Evidentemente, não se poderia ter razão contra a própria história. Porém o povo, desde 14 de julho de 1789, acreditava que era exatamente o ator da história.
Compassivo: “O mundo tornou-se complexo”. Conclusão: deixemos a decisão aos que não se incomodam com essa complexidade, ou seja, os mercados ou os especialistas que, in fine, sabem melhor o que é bom para todos.
Aristocrático: “Os eleitores são versáteis, não se pode confiar neles”. Por pouco, (r)estabeleceríamos o sufrágio segundo a capacidade, utilizado nos estados do sul dos Estados Unidos até 1964, que consistia em testar os cidadãos antes de admiti-los como eleitores. Os testes eram concebidos de tal maneira que a maioria dos negros nunca conseguia ser aprovada!
Filosófico: “De toda forma, o povo não existe” Ele é “inincontrável”, escreveu Pierre Rosanvallon3. Se não há povo, a questão do sufrágio universal torna-se uma questão aberta e outras formas de legitimação da decisão pública são possíveis: perícia ou pesquisas de opinião, por exemplo.
Eleições: uma formalidade
Desvalorizadas, as eleições não se tornariam mais do que uma formalidade destinada a rubricar “democracia” em escolhas efetuadas a priori por uma elite
Essas diversas melodias, complacentemente transmitidas pela mídia dócil, contribuem para o mesmo concerto: trata-se de desacreditar o próprio sufrágio universal e desqualificar as reivindicações formuladas pelas classes desfavorecidas, em proveito das escolhas políticas de uma elite auto proclamada. Desvalorizadas, as eleições não se tornariam mais do que uma formalidade destinada a rubricar “democracia” em escolhas efetuadas a priori.
Uma opção contrária ao cenário previsto perturba o pequeno mundo político-midiático de maneira insuportável. Quando da eleição presidencial de novembro de 2000, nos Estados Unidos, os partidários de Ralph Nader foram acusados de terem impedido a vitória de seu “verdadeiro” candidato, Albert Gore. Na França, Jacques Chirac, vitorioso sobre Edouard Balladur, o preferido da mídia, em 1995, provocou surpresas4 ; Jean-Marie Le Pen mergulhou o país na estupefação ao substituir Jospin, novo predileto, diante de um Chirac desacreditado pelas “negociatas”, em 2002. Ainda mais grave, nas consultas européias, não se hesita em recomeçar os escrutínios, se o resultado desejado não foi obtido – como os dinamarqueses, a propósito do tratado de Maastricht, em 1993, ou os irlandeses sobre o de Nice, em 2001.
Coragem política
Essas pressões traduzem a distância crescente entre os cidadãos e seus representantes. A realidade do corpo social não é mais expressa por instâncias intermediárias (partidos, sindicatos) e as instituições com poder de decisão. No referendo de julho de 2003, na Córsega, os eleitores votaram “não” e, no entanto, era quase certo que a Assembléia Nacional aprovaria, por ampla maioria, a reforma do estatuto da ilha. A abstenção alta, próxima dos 40%, ilustra a recusa da “oferta política”; o crescimento dos votos brancos e a fragmentação dos votos5 manifestam, ao mesmo tempo, a busca de uma representação mais justa da sociedade e uma simpatia pelo sufrágio universal.
A coragem política não consiste mais, segundo a grande mídia, na oposição às forças dominantes, mas em ceder a estas, opondo-se a seus próprios eleitores. Inúmeros comentaristas se extasiaram diante da “coragem” de Anthony Blair que, apesar da oposição de milhões de manifestantes, associou seu país aos Estados Unidos na guerra do Iraque, em março de 2003. Ele poderia, é claro, aliar legitimamente seu país. No entanto, diante de uma tal crise política, não teria sido desejável discutir sua responsabilidade diante do povo?
Meios de seleção extra-eleitorais
O desprezo do eleitor põe em questão o ideal democrático, insinuando que a expressão eleitoral é apenas um dos modos de seleção dos representantes
O fosso entre os eleitores e seus representantes não será preenchido subvertendo-se a lógica com um simples “o povo tem sempre razão”. A mística do povo não tem mais sentido do que a mística elitista. Essa distância poderia, ao contrário, ser combatida com o retorno aos fundamentos do ideal democrático, ou seja, a idéia de comunidade política em que todos os membros são iguais. É exatamente esse princípio que o desprezo dos eleitores vem pôr em questão, ao insinuar que a expressão eleitoral é apenas um dos modos de seleção dos representantes e de legitimação da decisão pública.
A competência, a perícia, o reconhecimento pelos setores econômicos ou a cooptação pelos pares tornaram-se meios de seleção concorrentes. Assim sendo, em 1995, depois de ter feito campanha sobre o tema da “fratura social”, Jacques Chirac nomeou primeiro ministro Alain Juppé. Uma das ações principais desse tecnocrata, foi criticar a seguridade social… Do mesmo modo, Bernard Kouchner, eterno derrotado em eleições, mas onipresente nos programas de televisão, ocupa regularmente funções ministeriais. Assim como Pascal Lamy que não venceu nas eleições legislativas da primavera de 1995, mas foi nomeado, apesar de tudo, comissário europeu (e representa a Europa na Organização Mundial do Comércio).
Inconseqüência social
Embora a competência constitua, evidentemente, um elemento essencial de escolha, ela não poderia substituir a capacidade do eleito em “representar” seus mandatários. Ora, a característica da crise que as democracias ocidentais vivem é que as elites políticas não agem mais como emanações do corpo eleitoral. Para elas, o povo são sempre os outros. Em nome de sua competência, elas acreditam saber guiá-lo para longe dos “erros fatais das reivindicações impossíveis”.
Esse é o caso especialmente dos economistas proeminentes e dos principais partidos quando eles asseguram: “Há apenas uma política possível”. E não importa se as desigualdades sociais explodem! E, no entanto, com igual competência, outros economistas podem formular apreciações opostas sobre a reforma das aposentadorias ou o financiamento da seguridade social. As elites científicas adotam um distanciamento social semelhante, como mostra a ausência de debate sobre os organismos geneticamente modificados. Se muitos cientistas reivindicam, com razão, sua liberdade de pesquisadores, eles esquecem de refletir sobre as conseqüências sociais de seus trabalhos6 .
Debate público e “verdade social”
A decisão pública só é legítima quando resulta de um confronto aberto de opiniões. Do encontro de todos os pontos de vista pode surgir uma “verdade social”
O papel do especialista, tal como é concebido, consiste em apenas validar escolhas ideológicas ou a ponderar sobre as opções políticas em nome de interesses privados: interesses do lobby nuclear, interesses financeiros de grandes empresas, interesses mercantis de grupos agroalimentares.
A decisão pública só é verdadeiramente legítima quando resulta de um confronto aberto de opiniões. O dirigente faz uma arbitragem em função das escolhas políticas que são as suas e para as quais os eleitores lhe confiaram o poder. Isso demanda, segundo a fórmula de Condorcet, um debate público “livre e racional”, ou seja, o confronto do conjunto das visões que atravessam uma sociedade, sem que nenhuma categoria social tenha razão a priori. Do encontro de todos os pontos de vista pode surgir uma forma de “verdade social”. O que leva tempo, em uma época em que a urgência, decretada não se sabe por quem, destrói o espaço público.
O fim do mundo comum
A noção de povo, que encontramos na definição constitucional da democracia – governo do povo pelo povo para o povo – encarnava essa idéia de espaço público de cidadãos iguais que organizam seu destino comum. É esse “querer viver junto” que legitima, além das divergências de opinião, a autoridade dos dirigentes. Isso constitui um amálgama essencial da democracia que instituições e procedimentos não podem preencher.
A noção de interesse geral é fortemente atacada pelo consenso e pelo autismo da classe dirigente, e também, de forma dissimulada, por idéias aparentemente progressistas. Dessa maneira, o conceito de paridade – cujo objetivo … e como ele é legítimo! é pôr, finalmente, um termo às discriminações de que são vítimas as mulheres – acaba por legitimar uma divisão jurídica do corpo político. É a idéia de um mundo comum a todos que se quebra.
Democracia em crise
Há uma versão perversa da consulta à “sociedade civil” – sem uma definição precisa de “sociedade civil”, esta prática se torna fonte de manipulação
Paralelamente, a União Européia mostra-se, no momento, incapaz de constituir, para além das fronteiras, uma verdadeira comunidade política “substituta”, o que torna cada vez mais problemática a legitimidade das decisões adotadas, por suas instituições, em campos muito importantes. É por isso que se tornou imperativo um referendo sobre o projeto do tratado constitucional, sob pena de fazer entrar na ilegalidade o sonho dos pais fundadores da Europa.
A crise da democracia representativa corre o risco de aprofundar-se, na medida em que se multiplicam os contornos do sufrágio universal, às vezes sob a capa de aproximar o poder dos cidadãos. Há uma versão perversa da consulta à “sociedade civil” por instâncias dirigentes, particularmente da União Européia. Com aparência democrática, essa prática torna-se fonte de manipulação, por falta de uma definição oficial de “sociedade civil”. Por esse motivo, grupos alter mundialistas, ou de defesa dos direitos humanos, associações anti-aborto ou lobbies econômicos de grande peso podem ser consultados, sem distinção.
Novo espaço público
Esse sistema está baseado em uma lógica de correlações de forças na qual os grupos patronais têm mais condições do que os sindicatos ou as associações. Ele deixa às instâncias de decisão um amplo poder discricionário: são elas que, in fine, sintetizam o que lhes foi dito, em função de suas próprias opções políticas ou, mais simplesmente, submetendo-se aos interesses dominantes. É por isso que tanto a Carta européia dos direitos fundamentais, como o projeto de tratado constitucional, adotados após consulta de um “fórum da sociedade civil7 ” confirmam o primado das escolhas monetaristas sobre as preocupações sociais.
O fosso que se cava entre os corpos representativos e o corpo social abre uma zona de incertezas para as liberdades já fragilizadas pela ofensiva dos mercados
A sociedade civil, compreendida como um meio associativo, preenche uma função democrática, quando faz emergir uma reivindicação ou um problema da sociedade, que os eleitos não perceberam. Ela se revela “ideal típico”, como dizia Max Weber, de uma preocupação social. Desse modo, nos anos 1970, o “manifesto dos 343” favoreceu a adoção da lei sobre a interrupção voluntária da gravidez (IVG). A associação Attac, da mesma forma, trouxe para o espaço público o debate sobre a taxação das transações financeiras. Porém, ainda é necessário que essas expressões sejam concluídas por uma ratificação democrática.
Liberdade frágil e incerta
Aqueles que buscam impor sua verdade, como em muitos textos europeus, sem se preocuparem de forma alguma com as reações que elas acarretam ou acarretarão, infligem duros golpes à democracia. Eles participam do risco totalitário cuja ameaça exclusiva imputam à extrema direita. Mas esse risco poderia também vir de “baixo”: o impasse da democracia representativa havia sido previsto pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1793, redigida por Condorcet e Robespierre, ao enunciar o “direito à insurreição, quando os direitos do povo forem violados”…
É urgente atrelar-se ao restabelecimento da democracia – papel central do sufrágio universal direto, debate público livre e racional. O fosso que se cava, sob nossos olhos, em todo o mundo ocidental, entre os corpos representativos e o corpo social abre uma zona de incertezas para as liberdades já fragilizadas pela ofensiva dos mercados.
(Trad. Teresa Van Acker)
1 – “Foi por culpa dos eleitores que, despreocupados, foram votar com os olhos vendados”, Sylvianne Agacinski, Journal interrompu, Seuil, Paris, 2002.
2 – “Eu confio, a História nos perdoará”, discurso no Congresso dos Estados Unidos, 17 de julho de 2003. No Congresso do Partido Socialista em abril de 2003, Elisabeth Guigou retomou o tema por sua conta.
3 – Pierre Rosanvallon, Le Peuple introuvable, Gallimard, Paris, 1999.
4 – Ler Christian de Brie, “En avant vers le radieux parti unique !”, Le Monde diplomatique, juin 1995.
5 – Ler, de André Bellon e de Anne-Cécile Robert, Le Peuple inattendu
Anne-Cécile Robert é jornalista e autora, com Jean Christophe Servant, de Afriques, années zéro (Nantes, L’Atlante, 2008).