Oportunidade perdida para os cipriotas
Os cipriotas gregos rejeitaram em plebiscito o plano de reunificação proposto pelas Nações Unidas e perderam, assim, a grande chance de ver a ilha unificada e boa parte dos refugiados de volta. E põem em cheque o futuro, que só pode existir com o norte o sul vivendo em pazNiels Kadritzke
Na noite do último 7 de abril, o presidente cipriota grego emociona-se: “Meu povo cipriota grego, eu lhe peço que recuse o plano Annan. Eu lhe peço que diga bem alto “não” em 24 de abril. Eu lhe peço que defenda seu direito, sua dignidade e sua história. Só um “não”, um “ochi” poderia impedir a dissolução da República” Tassos Papadopoulos tira então os óculos, para que se vejam suas lágrimas e diz: “Boa Páscoa!”
Esse melodrama televisivo tinha como objetivo fazer com que os cipriotas gregos acreditassem que o plano das Nações Unidas representava uma armadilha mortal: cinqüenta e cinco minutos para seus defeitos, cinco segundos para suas vantagens. Depois disso, a televisão estatal RYK dividiu a tela em dois: de um lado a multidão nacionalista festejando ruidosamente seu herói diante do palácio presidencial; do outro, os representantes dos partidos pesando os prós e os contras. Convocados a votar, cerca de 90% dos telespectadores se pronunciaram a favor do “ochi veemente” esperado1.
Os artifícios da comunicação2 não bastam, no entanto, para explicar que a grande maioria dos cipriotas gregos tenha rejeitado o plano Annan, quando do plebiscito de 24 de abril. Evidentemente, Papadopoulos e seus conselheiros recorreram aos símbolos da luta contra a potência colonial britânica nos anos 1950, depois, contra a invasão turca de 1974. Mas a recusa estava profundamente enraizada nas mentes, e por três razões: uma necessidade de segurança, o medo de qualquer risco político e a imagem de cipriotas turcos concorrentes, e não parceiros, do bem comum de uma ilha reunificada.
Um plano de vencedores
A proposta de Annan só previa vencedores – beneficiava tanto cipriotas turcos como gregos
É por isso que estavam incapacitados de mensurar os trunfos mais importantes de um plano da ONU que, no entanto, só prevê vencedores. Aos cipriotas turcos, oferecia um Estado reconhecido no interior de uma federação, fora da tutela de Ancara, assim como uma perspectiva européia de desenvolvimento econômico. Aos cipriotas gregos, garantia a restituição de um território para o qual, teoricamente, os dois terços dos refugiados de 1974 poderiam retornar – e a possibilidade de recuperar um terço das propriedades perdidas e de explorá-las, ou de serem indenizados.
Em seguida, sempre por causa da adesão, a futura República unida suprimiria progressivamente as revogações temporárias ao acerto comunitário. Em vez de oficializar uma escapatória permanente nesse setor, os representantes de Bruxelas foram cautelosos, por ocasião das negociações, para que a União continuasse – tanto quanto a Turquia quiser aderir – a pesar a favor de uma evolução harmoniosa da ilha e em conformidade com os acertos.
Sobre esse papel da União nas negociações, Papadopoulos nada disse, fiel a seu compromisso, não de europeu, mas de nacionalista grego preso ao passado. E com razão: é o último homem político ainda na ativa da geração que organizou a guerrilha dos anos 1950 contra os britânicos. E a Organização Nacional dos Combatentes Cipriotas (EOKA) estabelecia como objetivo não a independência da ilha, mas sua união (enosis) com a Grécia. Depois da independência, em 1963, ela se envolveu numa guerra civil sangrenta para atingir essa união. Papadopoulos desempenhou mesmo um papel decisivo no plano secreto Akritas, programando importações de armas com o chefe dos serviços secretos gregos Giorgos Papadoulos – o organizador, em 21 de abril de 1967, do golpe de Estado dos militares em Atenas.
Divisão histórica
A separação deu-se em 1974, quando Ancara aproveitou o golpe militar contra o governo Makarios para invadir o norte da ilha
Traidores da República de Chipre, esses conspiradores tinham seus equivalentes entre os cipriotas turcos. Sob a direção de Rauf Denktash e seus associados em Ancara, aspiravam à divisão (taksim) da ilha, excluída, como o enosis, pela Constituição de 1960. Para eles, a guerra civil veio, portanto, em 1963, na hora certa. Os ataques gregos contra bairros turcos permitiram-lhes transferir os turcos do sul da ilha: na primavera de 1964, 60% dos cipriotas turcos moram em encraves controlados por oficiais turcos.
A separação concretizou-se durante o verão de 1974, quando Ancara aproveitou o golpe militar da junta de Atenas contra o governo Makarios para invadir o norte da ilha. Os cipriotas gregos do norte fugiram para o sul, e o resto dos cipriotas turcos do sul foram se refugiar no norte. Iniciado em 1963-1964, esse “remanejamento étnico” teve como organizadores esses mesmos homens políticos que, quarenta anos depois, comandaram, dos dois lados, o campo do “não”.
Seus argumentos se assemelham estranhamente. Enquanto Denktash denuncia o modelo federal como uma ameaça de “extermínio” dos cipriotas turcos, Papadopoulos vê aí o fim da República de Chipre com predominância grega. Há mais de vinte anos que a cada expectativa de solução política, eles repetem a mesma coisa.
Condições para unificação
Em Bruxelas, um consenso se estabeleceu para fazer da solução do problema cipriota a condição da adesão da Turquia
O atual presidente cipriota grego deve seu poder à coalizão mais estranha da história. Em fevereiro de 2003, o presidente do Diko, terceira força política do país, com 15% dos votos, chega ao poder graças ao ex-Partido Comunista (Akel). Primeiro partido, com 35% do eleitorado, este último oferece a Papadopoulos uma maioria diante de seu predecessor, o conservador liberal Glafkos Klerides. Mas os dirigentes comunistas prometeram a seus militantes que o novo presidente se empenharia em fazer com que Chipre reunificado entrasse na União Européia.
Essa possibilidade tomou corpo com o plano da ONU, apresentado em novembro de 2002
por Kofi Annan, num contexto três vezes favorável:
em Bruxelas, um consenso se estabeleceu para fazer da solução do problema cipriota a condição da adesão da Turquia, adesão estimulada por Washington, em busca de um modelo de compatibilidade entre cultura marcada pelo Islã e princípios democráticos;
na Turquia, o Partido para a Justiça e o Desenvolvimento (AKP), do islamita moderado Recep Tayyip Erdogan, que venceu as eleições de 3 de novembro de 2002, empenha-se, quanto à questão cipriota, no bloqueio do exército turco e do establishment kemalista;
no norte de Chipre, o presidente Denktash perde o apoio da população, que aposta na adesão à União para sair do isolamento e da miséria.
Reviravolta na negociação
O chefe do governo turco sugeriu a Kofi Annan arbitrar as divergências e submeter seu plano a plebiscito
Este último fator fortaleceu-se por ocasião das eleições de dezembro de 2003, com a vitória dos partidos de oposição, que, no entanto, não dispõem de uma maioria estável no Parlamento. Chefe do primeiro partido de oposição e novo primeiro ministro, Mehmet Ali Talat teve de formar uma coalizão com o partido de Serdar Denktash, filho do presidente. Ancara pode, entretanto, contribuir para neutralizar o clã Denktash.
Ora, Erdogan explica sem subterfúgios: a atitude obstinada do exército, dos kemalistas e do Partido Republicano do Povo (CHP, oposição) bloqueia qualquer perspectiva européia para a Turquia. É em dezembro de 2004 que deve ser tomada a decisão de se iniciarem – ou não – as negociações de adesão. Em 26 de janeiro de 2004, o governo do AKP, portanto, pediu a retomada das negociações sobre o plano da ONU, bloqueadas por Denktash. Caso os partidos cipriotas se mostrassem incapazes de encontrar um compromisso, o chefe do governo turco sugeria a Kofi Annan arbitrar as divergências e submeter seu plano a plebiscito, tanto no norte como no sul.
Essa reviravolta pôs em xeque tanto Papadopoulos quanto Denktash. Enquanto o presidente cipriota turco invalidava qualquer negociação, seu homólogo grego podia aceitar o plano só como “base de negociações”. Mas a retomada do diálogo, em Nova York, colocou-os contra a parede. Terminava o tempo de blefar. Evidentemente, os “senhores do não e do nunca” – como foram batizados pelo oponente cipriota turco Mustafa Akinici – apegaram-se a questões de forma para evitar a negociação de fundo. Para obrigá-los, foi preciso todo o peso da Grécia e da Turquia, estando os dois países sob pressão européia e norte-americana, e as modalidades fixadas pelo ONU foram: em caso de insucesso, Kofi Annan proporia diretamente um último plano aos eleitores cipriotas, em 24 de abril.
Falsa propaganda
A propaganda de Papadopoulos mascara, para os cipriotas gregos, as melhorias não desprezíveis obtidas
Papadopoulos não podia se opor a essa decisão, a não ser que desafiasse a ONU, e também a União Européia, desejosa de acolher Chipre unificada em 1o de maio. E ainda mais porque, em Atenas, o governo conservador de Kostas Karamanlis, eleito em 7 de março, também incitava ao compromisso.
Depois de semanas de impasse em Nicósia, as negociações transferiram-se para Burgenstock, perto de Lucerna (Suíça). Apesar da ausência de Denktash, que não quer assinar uma “capitulação”, e sua substituição pelo primeiro-ministro cipriota turco Mehmet Ali Talat, pronto – bem como a delegação de Ancara – para assinar o último plano Annan, nada acontece: Papadopoulos mostra sua verdadeira face3 . Com obstrução sistemática, ele hostiliza não somente os representantes das Nações Unidas e Gunther Verheugen, comissário europeu encarregado da ampliação, mas também a delegação de Atenas. Por outro lado, Karamanlis não quer tornar públicas suas divergências com o presidente de Chipre.
Quando Kofi Annan propõe seu próprio plano (chamado Annan V) com a aprovação dos cipriotas turcos e dos turcos, Papadopoulos manda dizer por um porta-voz que se trata de uma catástrofe: satisfaria quase todas as reivindicações turcas, mas muito pouco das reivindicações gregas. Essa propaganda mascara, para os cipriotas gregos, as melhorias não desprezíveis que obtiveram graças à pressão de Bruxelas.
Povo desinformado
O povo só foi informado com os argumentos do “não” que Papadopoulos falou, em seu discurso televisionado
Essa primeira impressão negativa continuará a predominar. Poderia ter sido corrigida, se os partidários de Annan V tivessem passado para a ofensiva. Mas o Akel e o partido de oposição Disy, cujos dirigentes inclinavam-se preferencialmente para o “sim”, adiaram sua decisão para congressos organizados pouco antes do plebiscito. Em suma, foi a um povo informado só com os argumentos do “não” que Papadopoulos falou, em seu discurso televisionado. A isso pode ser acrescentada a mensagem de Páscoa do sínodo ortodoxo, advertindo os fiéis contra o “caminho do Gólgota” e a “humilhação” 4.
Dessa forma criou-se um clima quase que irreversível a favor do “não”. Ao tomar consciência de que um terço de seus eleitores tinha mudado de posição5, a maioria do comitê central do Akel não é mais favorável ao plano Annan. Alguns opositores falaram até de cisão. A ponto de o chefe do partido, Dimitris Christofias, pedir o adiamento do plebiscito! Em outras palavras, para proteger-se do perigo de uma divisão do partido, o ex-PC abandonou a luta contra a divisão do país. Enquanto partido dos trabalhadores, o Akel sempre pregou, contra o nacionalismo, o entendimento dos cipriotas gregos e turcos. Seu apoio a Papadopoulos, portanto, consternou, ao norte, seus aliados do Partido Republicano Turco (CTP). O plebiscito sobre o plano Annan V era sua última chance. Mas a direção não ousou defender o “sim” – seu jornal Haravghi até comentou de forma negativa o plano da ONU. Por falta de coragem e de tempo, o Akel deixou a iniciativa ao presidente Papadopoulos…
Tudo ou nada
Ao dizer “não” ao plano Annan, 76% dos cipriotas gregos renunciaram à solidariedade com os cipriotas turcos
Três argumentos, no entanto, seriam suficientes para demonstrar à população o que estava em jogo em seu voto:
nenhuma solução pode satisfazer a todos, e sobretudo a todos os refugiados. Se não pode reparar uma injustiça histórica, o plano Annan cria melhores condições para o futuro. E vai demorar muito para que haja melhores condições;
o plano da ONU, além de tudo, é muito flexível. Mesmo as restrições à volta dos refugiados (dos dois lados) podem ser abrandadas ou abolidas, se uma maioria o decidir, no norte como
no sul. O futuro depende da vontade de ambos de vivem conjuntamente e em paz;
seria preciso, por fim, perguntar aos partidários do “não” como, concretamente, eles irão atingir os objetivos que o plano Annan não contemplou. Lamentam que todos os refugiados não possam voltar a suas ex-cidades, mas impedem, com seu “não”, a volta de 100 mil dentre eles. Maldizem a presença prevista de 950 soldados turcos, mas permitem que 35 mil permaneçam no território de Chipre. Criticam a decisão de naturalizar 45 mil colonos turcos no norte, mas vão provocar a emigração de ainda mais cipriotas turcos, deixando dessa forma o espaço para novos colonos6.
Ninguém sabe como as coisas vão evoluir. Os europeus deverão se habituar com esse “mundo perverso” em que os cipriotas turcos conseguem expulsar o velho Denktash, enquanto o velho Papadopoulos consegue mobilizar os cipriotas gregos. Ao dizer “não” ao plano Annan, 76% dos cipriotas gregos renunciaram a essa solidariedade tão freqüentemente – gratuitamente – proclamada com seus compatriotas turcos. Por outro lado, no norte, 65% não somente votaram a favor de um futuro do qual seus compatriotas do sul os privaram, mas eles assumiram riscos, quando se manifestaram contra Denktash e em favor da Europa, vigiados e perseguidos pelos serviços secretos turcos, sempre controlados pelo exército. Esses verdadeiros europeus de Chipre não mereciam ser punidos.
(Trad.: Regina Salgado Campos)
1 – Para os gregos, o termo ochi evoca a resistência à agressão. Em outubro de 1940, com seu ochi, o ditador Yiannis Metaxas mobilizou o povo contra o ultimato de Mussolini, que precedeu a invasão italiana.
2 – Segundo o instituto para os meios de comunicação de massa do Intercollege de Nicósia, a RYK e os três canais de televisão privados comentaram negativamente o plano Annan como uma “derrota” do campo grego. Cf. Cyprus Mail, 10 de fevereiro de 2004.
3 – Uma análise detalhada das negociações de Burgenstock foi publicada pelo diário ateniense Ta Nea, em 9 de abril de 2004. Papadopoulos até se recusou a propor a Alvaro de Soto, delegado de Kofi Annan, uma lista dos pontos essenciais, segundo ele, para uma solução do conflito.
4 – Cf. Cyprus Mail, 11
Niels Kadritzke é jornalista.