Ordem americana custe o que custar
Depois de demitir assessor que declarou que o custo do conflito poderia chegar a
200 bilhões de dólares, governo Bush mantém a crença de que o esforço de guerra e diminuição de impostos são os melhores remédios para a economia norte-americanaIbrahim Warde
Quando declarou que o custo de uma guerra contra o Iraque poderia chegar a 200 bilhões de dólares, Lawrence Lindsay, assessor para assuntos econômicos da Casa Branca, acabava de violar um tabu. Até então, o discurso oficial limitava-se a evocar a vitória do Bem contra o Mal, a libertação do povo iraquiano e o vento de democracia, o qual iria transformar o mundo árabe. Todo o resto – vítimas civis, destruição etc. – seriam apenas “perdas colaterais”. Não se deveria, sobretudo, sugerir que a guerra custaria alguma coisa ao contribuinte norte-americano. Desse modo, enquanto o envio maciço de tropas havia criado uma situação de não retorno, o orçamento federal para o ano de 2003 não levava em conta qualquer despesa de guerra…
O assessor foi imediatamente despedido, mas o “fora” teve como conseqüência a introdução tardia de duas questões no debate político: quanto custará a guerra e quem a financiará? O secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, continuava, entretanto, a afastar essas questões. Apaixonado pela exatidão, pensava ser inútil “especular a respeito do montante das despesas”, dado que não era possível defini-lo com precisão: “Há seis ou oito variáveis que devem ser levadas em conta e não sou inteligente e esperto o bastante para fazê-lo1“. Mas garantia que, mesmo na pior das hipóteses, o custo total de uma guerra não poderia ultrapassar os 50 bilhões de dólares. E seu adjunto, Paul Wolfowitz, teórico do belicismo em todos os sentidos, considerava, no final de fevereiro, que “seria preciso esperar estar no local para avaliar nossas necessidades”.
Promessas e presentes caros
Contrariamente à primeira guerra do Golfo (1990-1991), os Estados Unidos não poderão mais contar com a generosidade de seus aliados.
Os analistas do Pentágono citavam, no entanto, uma variação de 60 a 95 bilhões de dólares para os seis primeiros meses de uma expedição iraquiana. Outros estudos levavam em conta as múltiplas despesas induzidas por uma operação armada2. Uma delas, publicada pela Academia de Arte e Ciência norte-americana, listava três tipos de despesas: despesas militares propriamente ditas – que iriam de 50 a 150 bilhões de dólares; despesas do pós-guerra – isto é, aquelas ligadas à ocupação ou à “manutenção da paz”, à reconstrução e aos deslocamentos de população, as quais representariam de 100 a 600 bilhões de dólares; e, finalmente, despesas com as conseqüências da guerra – como, por exemplo, o impacto de uma disparada dos preços do petróleo sobre a economia norte-americana em caso de conflito prolongado, e que poderia chegar a 1,2 trilhão de dólares3…
Contrariamente à primeira guerra do Golfo (1990-1991), os Estados Unidos não poderão mais contar com a generosidade de seus aliados. O custo dessa operação (62 bilhões de dólares) foi, na realidade, pago pela Arábia Saudita, o Kuait e, em menor proporção, o Japão e a Alemanha4. A situação atual é diferente: só para juntar aliados e obter apoios logísticos, os Estados Unidos tiveram que multiplicar promessas e presentes caros.
Vários países conseguiram lucrar com sua participação (ou, no caso de Israel, com sua não participação…) no esforço de guerra. Quanto maior a hostilidade da opinião pública ao conflito, mais importantes deveriam ser as compensações. A Turquia, por exemplo, que deveria servir de retaguarda para as tropas norte-americanas, quase conseguiu, depois de muito regatear, obter a bela soma de 14,5 bilhões de dólares (recebendo, por acréscimo, carta branca norte-americana para manter afastados os curdos iraquianos5. Da mesma forma, Israel reclamou 4 bilhões de dólares como ajuda militar suplementar e garantia para um empréstimo de 8 bilhões de dólares6*. Durante a vã batalha diplomática no Conselho de Segurança da ONU, atrativos dessa natureza eram moeda corrente. Porém, no caso de vários países latino-americanos e africanos membros do Conselho de Segurança, aparentemente isso não foi suficiente.
O marasmo da economia
Os gastos militares norte-americanos serão, então, superiores aos de todos os outros 191 países do planeta
O barulho das botas intervém num contexto econômico que não pára de se deteriorar. O desemprego (6% da população economicamente ativa norte-americana) atingiu seu nível mais alto depois de 9 anos. O crescimento caiu por volta de 1% no último trimestre de 2002, ao passo que o marasmo da Bolsa se prolonga. Desde a eleição do presidente Bush, o dólar perdeu 15% de seu valor diante do euro, e o montante dos investimentos estrangeiros nos Estados Unidos caiu 85%. A retração das despesas familiares, o desmoronamento da confiança dos consumidores e a contração do setor industrial deixam a paisagem mais sombria.
Na perspectiva da campanha presidencial de 2004, esse quadro só pode preocupar o inquilino da Casa Branca. Porque, se existe uma lição que Bush aprendeu com a experiência de seu pai, é que se pode ganhar uma guerra e perder uma eleição. Bush pai parecia ignorar os problemas econômicos do país profundo para se dedicar à política externa. Os democratas que tentam obter a indicação de seu partido o esperam num outro terreno. Alguns, como os senadores John Edwards (Carolina do Norte) e Joseph Lieberman (Connecticut), já o acusam de financiar aventuras externas e agir com avareza no que se refere à proteção do território nacional (homeland security7).
Keynesianismo de guerra
Ora, a estratégia econômica do governo Bush tem dois componentes – o keynesianismo de guerra e uma diminuição maciça dos impostos – capazes de acentuar a deriva dos déficits públicos. Há apenas dois anos, a Casa Branca previa para 2004 um excedente orçamentário de 262 bilhões de dólares. Um ano depois, esse número caiu, conseqüência de um primeiro conjunto de medidas de redução de impostos conjugado com a desaceleração econômica. O excedente abundante tornava-se um déficit modesto (14 bilhões de dólares). Desde então, fala-se de um déficit de 307 bilhões de dólares, e isto antes mesmo de se levar em consideração a aventura iraquiana, as conseqüências de uma diminuição dos impostos de 637 bilhões de dólares ao longo de dez anos e o novo aumento do orçamento relativo à defesa (o presidente pediu 47 bilhões de dólares suplementares só para o exercício de 2003). Os gastos militares norte-americanos serão, então, superiores aos de todos os outros 191 países do planeta8…
O barulho das botas intervém num contexto econômico que não pára de se deteriorar. O desemprego (6% da população) atingiu seu nível mais alto depois de 9 anos
O presidente Bush se lançou para fazer melhor que Lyndon Johnson no momento da guerra do Vietnã. Na época, ao invés de aumentar os impostos para financiar um conflito relativamente impopular, o presidente democrata se recusou a optar entre “a manteiga” e “os canhões”. É freqüente imputar as disfunções econômicas das últimas décadas – inflação, crises monetárias, recessão – a essa decisão. Bush não se preocupa com isso. Como observou o jornalista Lewis Lapham, o presidente assume falsos ares de Urbano II (que, no ano de 1095, abençoava a partida dos cruzados para a terra santa9). Em seus discursos, tende mais a invocar a ajuda do céu que a evocar preocupações terrenas, tarefa que deixa para seus assessores.
Visão idílica
O ativista republicano Grover Norquist, por exemplo, muito próximo da Casa Branca, garante que uma diminuição dos impostos é perfeitamente compatível com uma ofensiva no Iraque. Para o presidente da associação Americans for Tax Reforms, o argumento reaganiano da década de 80 é sempre conveniente: o crescimento será muito mais forte à medida que o sistema fiscal for mais leve.
O grupo neoconservador que cerca o presidente tem uma visão mais idílica ainda: a queda de Saddam Hussein marcará o início da democratização; graças a um efeito de contágio, toda a região conhecerá a democracia, a liberdade, a paz e a prosperidade10. Mais ainda: as conseqüências econômicas serão favoráveis aos norte-americanos, que poderão fortalecer seu controle sobre o mercado do petróleo (leia, nesta edição, o artigo de Yahya Sadowski) e obter o essencial dos contratos de armamento e de reconstrução (quando Seymour Hersh revelou, no dia 17 de março último, no The New Yorker, que Richard Perle, presidente do Defense Policy Board, pretende beneficiar-se pessoalmente de vendas de armas ao Oriente Médio, o interessado contentou-se em chamar o famoso jornalista de “terrorista”). Vitória, democracia, paz, prosperidade: a reeleição de Bush estaria, então, garantida.
Irã na mira
A estratégia econômica de Bush tem dois componentes – o keynesianismo de guerra e uma diminuição maciça dos impostos – capazes de acentuar a deriva dos déficits públicos
Paradoxalmente, o cenário de uma guerra “rápida e vitoriosa” prometida pelos falcões (e desejada pelas pombas que se resignaram à idéia de uma operação militar) pode revelar-se desastroso. Assim como os atentados do 11 de setembro de 2001 forneceram a oportunidade de pôr em execução um projeto amadurecido há muito tempo, uma guerra-relâmpago poderia confortar a posição daqueles que querem lutar contra um “eixo do Mal” de contorno impreciso. Em seu livro quase hagiográfico sobre a guerra de Bush, o jornalista Bob Woodward lembra que, desde 15 de setembro de 2001, Wolfowitz aconselhava o presidente dos Estados Unidos a atacar o Iraque: “Não se tem certeza de uma vitória contra o Afeganistão. Em compensação, o regime iraquiano é frágil e tirânico. Ele se desmoronará rapidamente. É viável11.” Compreende-se melhor o ardor em “produzir as provas” de uma ligação entre o Iraque e a rede Al-Qaida.
Em novembro de 2002, o primeiro-ministro israelense Ariel Sharon, muito ouvido pelos neoconservadores, afirmou que, já no dia seguinte à vitória no Iraque, os Estados Unidos deveriam atacar o Irã12. Mas a lista (não exaustiva) dos países que estão na mira dos incendiários do Pentágono e da Casa Branca inclui também, num primeiro momento, a Síria, a Líbia e a Arábia Saudita13.
“Destruição criadora”
O primeiro-ministro israelense Ariel Sharon, muito ouvido pelos neoconservadores, afirmou que, já no dia seguinte à vitória no Iraque, os EUA deveriam atacar o Irã
Para Michael Ledeen, até aqui conhecido principalmente por sua implicação no Irãgate14, o objetivo não é estabilizar esses países: “A busca da estabilidade seria indigna dos Estados Unidos. Nosso país é o país da destruição criadora. Não queremos estabilidade no Irã, no Iraque, na Síria, no Líbano, nem mesmo na Arábia Saudita… A questão é saber como desestabilizar estes países. Nós devemos destruí-los para realizar nossa missão histórica.” Como no tempo da guerra do Vietnã, em que era necessário destruir as aldeias para salvá-las…
Outros cenários de ampliação da guerra são freqüentemente evocados pelos estrategistas neoconservadores. Assim, por exemplo, no dia 10 de julho de 2002, Laurent Murawiec, analista (francês) na Rand Corporation, fizera uma apresentação ao Defense Policy Board, órgão consultivo do Pentágono. Com Richard Perle como empresário, este antigo colaborador do publicitário de extrema direita Lyndon La Rouche viera denunciar a Arábia Saudita como o “núcleo do mal, presente em todos os níveis da ação terrorista” e como o principal inimigo dos Estados Unidos. Esse curioso “especialista” sugeria ao governo norte-americano que lançasse um ultimato ao reino: se vocês persistirem em apoiar o terrorismo e em autorizar os discursos antiamericanos e antiisraelenses, “nós confiscaremos suas contas bancárias, ocuparemos seus campos de petróleo e ?tomaremos como alvo? seus lugares sagrados”.
Esta comunicação, revelada pelo Washington Post algumas semanas mais tarde, foi também uma oportunidade para se lançar um outro balão de ensaio. Realmente, Laurent Murawiec sugeria que, além do Iraque (“pivô tático”) e da Arábia Saudita (“pivô estratégico”), era no Egito que se devia pensar em controlar…
(Trad.: Iraci D. Poleti)
1 – The Washington Post, 1° de março de 2003.
2 – Ver, por exemplo, de Steven M. Kosiak, “Potential Cost of a War with Iraq and its Poswar Consequences”, Center for Strategic and Budgetary Assessments, 25 de fevereiro de 2003, http://www.csbaonline.org
3 – Carl Kaysen et al., ” War With Iraq: Costs, Consequences, and Alternatives “, American Academy of Arts and Sciences 2002, http://www.amacad.org/publications/monographs/War_with_Iraq.pdf
4 – Ler “Les dividendes de l?opération ?Bouclier du desert?”, Le Monde diplomatique, novembro de 1990.
5 – Inicialmente, a Turquia havia pedido 40 bilhões de dólares a título do prejuízo sofrido depois da guerra de 1991. O Congresso turco, entretanto, recusou-se a aprovar o acordo e, à espera de uma nova votação, a oferta norte-americana foi suspensa.
6 – Business Week, Nova York, 10 de março de 2003.
7 – The American Prospect, 7 de fevereiro de 2003. http://www.prospect.org/webfeatures/2003/02/gourevitch-a-02-07.html
8 – Ler, de Fareed Zakaria, “Why America Scares the World”, Newsweek, Nova York, 24 de março de 2003.
9 – Lewis Lapham, Le Djihad américain, Edições Saint-Simon, Paris, 2002.
10 – Ler, por exemplo, de William Kristol e Lawrence Kaplan, The War on Iraq: Saddam?s Tyranny and America?s Mission, Encounter Books, San Francisco, 2003, e, de Kenneth Pollack, The Threatening Storm: The case for invading Iraq, Random House, Nova York, 2002.
11 – Bob Woodward, Bush at War, Simon and Schuster, Nova York, 2002.
12 – “Attack Iran the day Iraq war ends, demands Israel”, The Times, Londres, 5 de novembro de 2002.
13 –
Ibrahim Warde é professor associado na Universidade Tufts (Medford, Massachusetts, EUA). Autor de Propagande impériale & guerre financière contre le terrorisme, Marselha-Paris, Agone – Le Monde Diplomatique, 2007.