Ordem jurídica mundial e paz positiva
A busca de um ideal de justiça social que poderia anunciar a construção de uma paz positiva se tornou um desafio maior no contexto globalizado. Para isso, é preciso privilegiar os valores do direito da pessoa em vez dos valores mercantisMireille Delmas-Marty
O artigo 28 da Declaração Universal dos Direitos Humanos já indicava o caminho desde 1948: “Toda pessoa tem direito, tanto no plano social quanto no plano internacional, a uma ordem tal que os direitos e liberdades enunciadas na presente Declaração possam ser efetivos”. Cinqüenta anos depois, a proliferação normativa parece conduzir mais a uma desordem mundial generalizada.
Atualmente, o mercado tem pretensões ao universalismo. É verdade que a globalização econômica parece mostrar mais a difusão espacial de produtos e serviços do que partilhar do sentido que está no âmago do universalismo, contudo ela comanda um modelo de organização social concebido como um modelo político de trocas: “O mercado substitui a nação, se impõe ao Estado, torna-se o direito: a lei do mercado, ao fazer do direito uma mercadoria, conduz ao mercado da lei1“.
Conceitos normativos universais
Desde que os valores mercantis adquiriram um estatuto universal, coloca-se a questão da universalidade dos valores não mercantis como contrapeso. Ora, os instrumentos de proteção dos direitos da pessoa e as diversas formas jurídicas adotadas pela humanidade, vítima de crimes denominados precisamente “crimes contra a humanidade”, e também titular de um “patrimônio comum” ou, segundo a expressão mais recente, de “bens públicos comuns”, tornaram-se conceitos normativos de vocação universal, mas de forma fragmentada.
Daí a questão da ordem jurídica como referência: inserido em uma ordem espontânea com base na auto-regulação, não deveria o conceito de mercado fugir, por isso, a qualquer integração em uma ordem organizada, vinculada a um Estado ou a uma comunidade, regional ou mundial? Das ordens à desordem, não há apenas um medonho jogo de palavras, mas também um risco de sub-determinação normativa que afeta o conjunto dos fragmentos criados com a globalização.
Liberdade e desenvolvimento
Desde que os valores mercantis adquiriram um estatuto universal, coloca-se a questão da universalidade dos valores não mercantis como contrapeso
Para que todos esses fragmentos possam se ajustar uns aos outros seria preciso construir uma comunidade de valores, porém a compartimentação das diferentes esferas do direito é tamanha que cada uma mantém sua coerência própria sem se comunicar verdadeiramente com as outras. O alerta também foi dado pelos economistas: “Hoje, a globalização não funciona”. Depois de deixar suas funções de vice-presidente do Banco Mundial, Joseph Stiglitz lança uma verdadeira denúncia: “Isso não funciona para os pobres do mundo, pois não funciona para o meio ambiente, isso não funciona para a estabilidade da economia mundial2“.
Amartya Sem, prêmio Nobel de economia, já havia mostrado a liberdade como principal meio do desenvolvimento, ao propor a promoção das capacidades de cada um a fim de tornar possível “a implicação dos cidadãos quanto à definição e às escolhas dos valores que permitirão estabelecer a ordem das prioridades3“. Em sua opinião, a emergência e a consolidação da democracia, tanto quanto dos direitos civis, são os elementos constitutivos do processo de desenvolvimento. A questão é saber como fazer de tal maneira que o imperativo de uma participação de todos não seja “uma palavra de ordem vazia, mas uma exigência concreta”, da qual a “idéia de desenvolvimento não estaria dissociada”.
O direito e os valores mercantis
Para o prêmio Nobel de economia Amartya Sem, a consolidação da democracia e os direitos civis, são elementos constitutivos do processo de desenvolvimento
Uma tal análise acentua a necessidade de levar em conta o conjunto dos valores: longe de separar os direitos da pessoa e o mercado, tratar-se-ia de integrá-los na análise econômica. Desse modo tornam-se visíveis, no campo jurídico, os conflitos de valores que a separação normativa teria talvez a tendência a ocultar. Mesmo em escala européia, foram necessários vários anos para descobrir – na trama da jurisprudência das duas cortes, a de Estrasburgo (Convenção Européia dos Direitos Humanos adotada pelo Conselho da Europa4) e a de Luxemburgo (Corte de Justiça das Comunidades Européias) – que o equilíbrio de valores não era o mesmo para as questões tratadas do ponto de vista dos direitos humanos e da livre circulação (mercadorias, pessoas, serviços e capitais) em um espaço sem fronteiras interiores5.
Por isso, fica muito clara, no debate sobre uma futura ordem mundial6, a importância do conflito entre as concepções de direito que privilegiam valores mercantis (conceitos ligados ao mercado) e não mercantis (direitos da pessoa e da humanidade). De um lado, o objeto do comércio internacional parece expandir-se constantemente, muito além da estrita definição do ato de comércio do direito interno: trata-se de informação, de objetos de arte, de bens culturais, de coisas tão comuns como o espaço; os atributos da personalidade, tais como o direito à imagem, o direito ao nome, o direito moral do autor, às vezes alguns elementos do corpo humano. Por outro lado, os dispositivos de enquadramento jurídico parecem inadaptados aos valores não mercantis. É verdade que os últimos não são completamente excluídos da competência das organizações regionais, como a União Européia, ou mundiais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC); elas podem até legitimar medidas restritivas. Porém, precisamente porque elas são consideradas restrições, são de interpretação estrita e ocupam uma posição secundária na hierarquia das normas.
O caso do espaço regional europeu
Fica clara no debate sobre a futura ordem mundial a importância do conflito entre as concepções de direito que privilegiam valores mercantis e não mercantis
Em suma, apenas os conceitos relativos ao mercado já poderiam ser aplicáveis universalmente. Ao contrário, os dispositivos ligados às pessoas (direito da pessoa e da humanidade sob diversas formas), proclamados universais, permanecem, na prática, dependentes da ordem jurídica nacional, portanto suspeitos de preconceitos protecionistas e declarados, como tal, incompatíveis.
O conflito não se apresenta, porém, da mesma forma no espaço regional e no espaço mundial. Na Europa, por exemplo, a Corte de Justiça das Comunidades Européias controla, de fato, a compatibilidade das medidas nacionais com o princípio da liberdade de circulação (de pessoas, mercadorias, serviços e capitais), mas também se preocupa em respeitar os direitos consagrados pela Convenção Européia de Direitos Humanos, fonte de inspiração do direito comunitário, e será mantida pela Carta Européia dos Direitos Fundamentais da União Européia, quando esta tiver força de coação. Acrescem-se ainda avanços próprios ao direito europeu dos direitos humanos pois, apesar de sua prudência, a Corte Européia de Direitos Humanos começa a verificar a compatibilidade entre o direito comunitário e a convenção européia dos direitos humanos através da etapa de integração do direito comunitário ao direito nacional.
O caso do espaço mundial
Ao contrário, no espaço mundial, a forte assimetria dos processos de internacionalização parece incentivar sistematicamente os valores mercantis. De um lado, o princípio da livre circulação, imposto pelo Acordo Geral sobre as Tarifas e o Comércio (GATT), depois Organização Mundial do Comércio (OMC), sob o controle quase jurisdicional do Órgão de Regulamentação das Disputas (ORD), facilita sua difusão espacial (e a extensão de sua definição) impondo aos Estados a eliminação de barreiras comerciais (internacionalização do comércio), enquanto a emergência da lex mercatoria permite selecionar as normas jurídicas mais favoráveis ao comércio mundial. Por outro lado, a resistência dos valores não mercantis foi enfraquecida pela complexidade das interações em um espaço normativo muito mais fragmentado e pela ausência de uma Corte Mundial de Direitos Humanos.
Para chegar à construção progressiva de uma verdadeira ordem pública mundial seria preciso reforçar a possibilidade de poder opor os direitos humanos aos do Estado (pela necessária criação da mencionada Corte, nos modelos regionais), mas também aos das empresas, tanto do ponto de vista do mercado, quanto do ponto de vista dos direitos humanos.
Do lado do mercado, o direito de patentes
Os dispositivos ligados às pessoas (direito da pessoa e da humanidade), proclamados universais, permanecem, na prática, dependentes da ordem jurídica nacional
Do lado do mercado – OMC e Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) – o direito das patentes mostra a dificuldade, especialmente em campos como a biotecnologia que, evidentemente, põe em questão não apenas os valores mercantis, mas também os não mercantis. Sua aparente neutralidade – pois a patente não confere autorização, apenas o monopólio da exploração – incentivou a extensão das patentes, ao campo da biotecnologia. Admitida nacionalmente (Estados Unidos e China) e regionalmente (portaria da União Européia de 1998), esta extensão foi mundialmente consagrada pela assinatura, em 1994, do Acordo Sobre os Direitos da Propriedade Intelectual relativos ao Comércio Internacional (Adpic), que obriga os Estados a se dotarem de uma legislação para proteger as invenções “em todos os campos”, sem discriminar as tecnologias utilizadas.
É verdade que o acordo prevê a exclusão de invenções contrárias à ordem pública e aos bons costumes, mas essa definição é deixada aos Estados que a utilizam como uma cláusula de estilo, uma barreira muito imperfeita. Menos do que prever a obrigação, para o titular da patente, de concordar com conceder uma licença de exploração quando alguns interesses públicos – entre os quais a saúde – estão em jogo; impor, como recomendou o Grupo Europeu da Ética das Ciências e das Novas Tecnologias (órgão consultivo criado pela Comissão Européia em 1997) a propósito da chamada clonagem terapêutica (se esta se desenvolvesse), um exame ético específico da questão do acesso a tratamentos justos. Porém, levar em conta os desafios éticos exigiria um controle em termos de direitos da pessoa.
Direitos humanos e as transnacionais
Diferentemente da Europa, no espaço mundial, a forte assimetria dos processos de internacionalização incentiva sistematicamente os valores mercantis
Do lado dos direitos da pessoa, os controles, reduzidos a simples relatórios, dizem respeito somente aos Estados. Por isso, o secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, lançou em Davos, em janeiro de 1999, a idéia de um pacto mundial com empresas multinacionais (Global Compact), cujos nove princípios, classificados em três capítulos (direito da pessoa, direito do trabalho e meio ambiente), foram propostos por ocasião do Fórum do Milênio. Criado pela Subcomissão dos Direitos Humanos, um grupo de trabalho sobre as sociedades transnacionais adotou um “projeto de normas sobre a responsabilidade em matéria de direitos humanos das empresas transnacionais e outras firmas” que, além de uma referência geral aos direitos da pessoa, prevê o direito à igualdade de oportunidades e o tratamento não discriminatório, o direito à segurança da pessoa, o direito dos trabalhadores, dos consumidores e do meio ambiente.
O ponto mais difícil é assegurar um controle, transparente e independente e, a partir de um sistema de queixas, garantir uma indenização “rápida, eficaz e adequada” às vítimas. Para que essas normas sobre as responsabilidades sejam aplicadas, seria preciso um princípio de competência universal, esboçando, como para os crimes contra a humanidade, uma globalização progressiva dos juízes nacionais. A famosa distinção proposta pelo filósofo alemão Emmanuel Kant fornece um fio condutor: “No reino dos fins, tudo tem um preço e uma dignidade. O que tem um preço pode ser substituído por outra coisa qualquer, a título de equivalente; entretanto, o que é superior a qualquer preço, e, por conseguinte não admite equivalente, é uma dignidade7.” A hierarquia parece clara: em caso de conflito, os valores não mercantis, que não têm equivalente e não são substituíveis, deveriam ser superiores.
Uma paz positiva
Um código de direitos humanos nas empresas transnacionais demanda um princípio de competência universal e uma globalização dos juízes nacionais
Porém, esse fio condutor foi proposto por Kant em 1785. Ora, ele parece ter se desgastado uma vez que o filósofo, atento à Revolução Francesa e à sucessão de violência e de guerras, expressa uma preocupação crescente com a paz, que remete mais à idéia de uma paz negativa (no sentido de segurança coletiva: mecanismos de manutenção da paz e da regulamentação das disputas) do que à busca de um ideal de justiça social que poderia anunciar a construção de uma paz positiva, ou seja, a prevenção das guerras e dos conflitos pela justiça.
No contexto de uma interdependência sempre mais estreita entre os Estados e as sociedades, a construção da paz positiva tornou-se, sem dúvida, um desafio maior como provam os debates que acabam de ocorrer, entre 1º e 3 de junho, em Evian, entre os oito países mais industrializados, membros do G8, e os convidados vindos de países emergentes. Ou a ambição se limita a conceber a ordem pública mundial como uma “ordem pública de polícia”, baseada num sistema de segurança coletiva (multilateral, se a ONU obtiver os meios necessários, ou unilateral, se a visão atual norte-americana imperar) e a globalização continuará a privilegiar os valores mercantis em detrimento de qualquer reequilíbrio. Ou se desenvolve um empenho, para além das reformas próprias a cada instituição, na busca de uma coordenação dos diversos conjuntos normativos (direitos humanos, direitos da humanidade, direitos do mercado). Embora mais difícil, esta via seguramente é condição para uma verdadeira ordem mundial pluralista, garantia da paz positiva, a única duradoura.
(Trad.: Teresa Van Acker)
1 – Jean-Arnaud Mazères, L?un et le multiple dans la dialectique marché, nation, in Marché et nation, regards croisés, Montchrestien, 1995.
2 – Joseph E. Stiglitz, La grande désillusion, Fayard, Paris, 2002.
3 – Amartya Sen, Un nouvel ordre économique, éd. Odile Jacob, Paris, 2000.
4 – Criado em 1949 o Conselho da Europa reúne quarenta Estados europeus Em 1951, adotou a Convenção européia de salvaguarda dos direitos do home