Origens da oposição francesa
As divergências entre a França e os Estados Unidos datam de julho de 1958, quando, por ocasião de um encontro com o secretário de Estado Foster Dulles, o general De Gaulle rebateu, ponto por ponto, as teses defendidas pelos norte-americanosPaul-Marie de La Gorce
Seguramente, a crise iraquiana aprofundou, entre os Estados Unidos e a França, um fosso que será difícil de esquecer, se não de preencher. Abrirá ela uma nova fase de divergências franco-americanas? Para avaliar seu eventual alcance, é necessário situá-la na seqüência das crises que se sucederam, diferentes e até opostas, desde o começo da V República.
Em 1958, quando voltou ao poder, o general De Gaulle analisou a situação em que o mundo se encontrava e o que dela a França deveria deduzir. A seu ver, a União Soviética não queria mais – e talvez não pudesse – estender seu império em direção ao Oeste da Europa e deveria, além disso, enfrentar a rivalidade da China, de modo que, dizia ele, “se não fizermos a guerra, é preciso, cedo ou tarde, fazer a paz”. A paridade nuclear entre as duas maiores potências as impediu de se enfrentarem diretamente com suas armas atômicas, mas, ao mesmo tempo, a proteção da Europa não podia mais ser garantida pelo arsenal nuclear norte-americano. De Gaulle concluiu disso que a França deveria encontrar sua liberdade de ação livrando-se da integração militar atlântica, estabelecer novas relações com a União Soviética e com a China, visando “à distensão, ao entendimento e à cooperação” com os países do “bloco do Leste” e se equipar com seus próprios meios de dissuasão nuclear.
Impasse com Foster Dulles
De Gaulle considerou a política da URSS nacionalista, servindo-se do comunismo – como disse a seu interlocutor – “como vocês se servem do Congresso”
Essa análise e essa política conduziriam a profundas divergências com os Estados Unidos, como se verificou desde o encontro, no dia 5 de julho de 1958, entre o general De Gaulle e o secretário de Estado norte-americano, John Foster Dulles. Este fez da situação do mundo uma descrição inteiramente dominada pela ameaça que, em sua opinião, a União Soviética faria pesar sobre a Europa, bem como sobre o Oriente Médio, a África e a Ásia. E passou a defender, para se enfrentar essa ameaça, um fortalecimento político e militar da Aliança Atlântica (Otan), assim como um sistema de defesa regional com a ajuda de mísseis de médio alcance e de armas atômicas táticas norte-americanas que os países europeus deveriam aceitar em seu território.
Item por item, o general De Gaulle defendeu exatamente as teses opostas. Considerou a política da União Soviética acima de tudo nacional ou nacionalista, simplesmente se servindo do comunismo – disse ele francamente a seu interlocutor – “como vocês se servem do Congresso”. Comunicou que a França não aceitaria armas nucleares norte-americanas em seu solo, a menos que dispusesse delas completamente (o que, é claro, os Estados Unidos não queriam); sugeriu que, daí por diante, a paridade nuclear paralisaria as duas maiores potências, uma diante da outra, e preveniu que a França iria construir seu próprio armamento atômico. Depois disso, quando se tratou da crise ocorrida no Líbano, onde logo desembarcaria um corpo expedicionário norte-americano, ele pediu que se trabalhasse para fortalecer a independência dos Estados da região, ao invés de se fazer do Oriente Médio um novo campo de batalha da guerra fria.
A saída da França da Otan
Apesar das boas relações com dois presidentes norte-americanos, De Gaulle não tinha saída senão o desligamento da França da Otan, o que se deu em 1966
Embora a política francesa fosse então impulsionada pela continuação da guerra da Argélia, as primeiras decisões do general De Gaulle indicaram que rumo ela tomava, particularmente com a recusa de qualquer instalação de mísseis de médio alcance na França. O presidente da República iniciou, no entanto, uma correspondência com o presidente norte-americano, Dwight D. Eisenhower, fazendo-a acompanhar-se de um memorando que propunha um acordo permanente entre os Estados Unidos, a Inglaterra e a França sobre todos os problemas internacionais, inclusive as questões nucleares. Mas não alimentava nenhuma ilusão sobre as respostas norte-americanas – “Eles não aceitarão isso”, disse ao general Pierre-Marie Gallois, encarregado de levar o memorando a Washington – e, de fato, foi o que aconteceu.
Nem suas boas relações com o presidente norte-americano, que apreciava sua decisão de reconhecer o direito dos argelinos à autodeterminação e sua firmeza na crise de Berlim, nem seu apoio à reação do presidente John Fitzgerald Kennedy diante da instalação de mísseis soviéticos em solo cubano (embora ele tenha decidido, desde sua volta ao poder, que a França não participaria de modo algum do boicote norte-americano ao comércio com Cuba) o desviaram do fim último e lógico de sua política: a saída da França da organização militar atlântica e de seus comandos integrados. O que se deu em 7 de março de 1966.
O desafio à hegemonia anglo-saxônica
A partir daí, a política francesa desenvolveu-se em todos os campos. A cooperação com os países do Terceiro Mundo foi um exemplo disso: em ruptura com as práticas das grandes companhias anglo-saxônicas, estabeleceram-se com a Argélia, com o Irã, e depois com o Iraque, relações de um novo tipo entre um país industrial avançado e países produtores relativamente subdesenvolvidos em todos os estágios da produção e da comercialização. No Laos e no Camboja, foram apoiados governos que queriam defender sua independência e sua neutralidade em relação aos Estados Unidos, que desejavam fazer deles seus aliados diante do Vietnã do Norte e dos primeiros grupos de resistência sul-vietnamitas.
A cooperação com os países do Terceiro Mundo foi emblemática: estabeleceram-se relações de novo tipo com a Argélia, com o Irã, e depois com o Iraque
O estabelecimento de relações diplomáticas entre a China e a França, que o general De Gaulle havia desejado desde sua volta ao poder, foi, a longo prazo, o episódio mais importante dessa política; de qualquer maneira, foi o que provocou as mais veementes reações do governo norte-americano. Mas foi a guerra do Vietnã que lhe deu toda a sua dimensão. Nunca foi tão evidente o contraste entre a concepção dos Estados Unidos – para quem se tratava de uma frente essencial do conflito Leste-Oeste – e a da França – que condenava essa guerra e não via outra saída para ela senão através do diálogo e do acordo com as “forças reais”, classificadas de “Resistência Nacional”, qualquer que fosse o regime que daí resultasse de imediato.
Essa política iria desenvolver-se até na América Latina, onde o general De Gaulle esteve para proclamar, de modo espetacular, que a recusa da hegemonia norte-americana não deveria implicar no recurso ao campo do Leste e que, na América Latina como em outros lugares, havia como alternativa o modelo da independência. Tal iniciativa teve seu contraponto de aplicação dramática na República Dominicana: a França reagiu publicamente, e de forma enérgica, quando o presidente Lyndon B. Johnson quis restabelecer uma ditadura militar, colocando ali um corpo expedicionário. Nessa ótica, o “Viva o Québec livre!”, lançado por De Gaulle no Canadá, apareceu, igualmente, como um desafio à hegemonia anglo-saxônica na América. E mais uma vez, quando – depois de haver durante muito tempo equilibrado suas relações calorosas com David Ben Gurion com seus alertas contra tudo o que pudesse ferir os sentimentos dos povos árabes e a conciliação de seus direitos com os direitos de Israel – ele condenou o ataque israelense de 6 de junho de 19671, entrando em choque, nessa questão, com as posições norte-americanas.
A ampliação de competência da Otan
O estabelecimento de relações diplomáticas entre a China e a França foi, a longo prazo, o episódio mais importante da política externa de De Gaulle
Enfim, sua dura crítica ao sistema monetário internacional – que conferia ao dólar um estatuto de moeda de reserva e dava um extraordinário meio de ação aos Estados Unidos, dispensando-os de todos as regras habituais de gestão de seus déficits – provocou uma repercussão tão profunda naquele país que uma campanha jornalística, agressiva mas humorística, comparou-o a Goldfinger, o personagem das aventuras de James Bond que queria roubar o ouro do Banco Federal de Fort-Knox!
As mudanças da conjuntura internacional pesariam, necessariamente, sobre a evolução posterior dessa política. Uma primeira virada se deu em 1981, sob o choque das dramáticas tensões da última fase da guerra fria. François Mitterrand contribuiu para isso: dois meses após sua eleição, começou, em Ottawa, a série de reuniões de cúpula dos países mais ricos que tratou de todos os problemas políticos, econômicos e estratégicos e institucionalizou o “bloco” dirigido pelos Estados Unidos. Uma segunda virada, em 1991, ocorreu após o desmembramento da União Soviética. Longe de ser uma oportunidade para a discussão de um sistema atlântico completamente dominado pela preponderância norte-americana, tornou-se o começo da ampliação das competências da Otan fora da área abrangida pelo tratado que a fundara e, logo depois, da ampliação da própria Aliança.
Uma crise inevitável
O “Viva o Québec livre!” lançado por De Gaulle no Canadá apareceu, igualmente, como um desafio à hegemonia anglo-saxônica na América
A França aceitou isso. Depois que François Mitterrand não convenceu os outros países europeus a formarem um sistema de defesa europeu fora da Otan, Jacques Chirac, para conseguir que fosse aceito, concordou com sua inserção na organização militar atlântica. Mas o acordo fechado em Berlim, em junho de 1996, estipulou que o uso das forças européias dependeria do consentimento, do acompanhamento e das infra-estruturas do comando atlântico, ou seja, dos Estados Unidos. A declaração franco-alemã de 9 de dezembro de 1996 proclamou, solenemente, o caráter permanente e intocável dos laços transatlânticos. E, depois do retorno da França ao Conselho dos Ministros da Defesa da Aliança e a seu Comitê Militar, o presidente Chirac propôs que ela voltasse também aos comandos integrados – com a condição de que o comando do lado “Sul” fosse atribuído a um dos países europeus da costa do Mediterrâneo, o que os Estados Unidos não aceitaram.
Acrescentou-se a isso a experiência iugoslava. Os meios limitados, mas em especial as divergências e as segundas intenções dos europeus, levaram a recorrer à organização militar atlântica – a qual seria, agora, o “braço armado” da ONU, por decisão deste organismo. E a guerra do Kosovo levou essa evolução até o fim: os Estados Unidos decidiram, desta vez, que se deveria dispensar a ONU e que a Otan, com suas forças integradas, inclusive francesas, seria o instrumento exclusivo de sua ação.
A lógica das opções feitas pelos dirigentes norte-americanos após o fim da guerra fria levou-os a alargarem a área em que a organização atlântica deveria agir e a estender a Aliança a países da Europa Oriental, que não se sentem seguros senão sob proteção norte-americana. A França consentiu nisso antes de avaliar suas conseqüências em relação aos acontecimentos do Oriente Médio e suas divergências com os Estados Unidos nesse campo. Desde então, nada poderia evitar uma crise, resultado de opções consentidas durante um tempo demasiado longo e começo, talvez, de um novo desdobramento de suas relações transatlânticas.
(Trad.: Iraci D. P