Os agrotóxicos e a força das multinacionais
Enquanto pesquisas acusam a contaminação de vários alimentos e milhares de casos de intoxicação humana, especialmente de trabalhadores rurais, a Justiça brasileira suspende reavaliação pela Anvisa de agrotóxicos que são proibidos na Europa e garante a expansão do segundo maior mercado mundial
O Brasil é o segundo maior consumidor mundial de agrotóxicos1. Entre 2002 e 2007, o faturamento líquido do setor passou de US$ 1,9 bilhão a US$ 5,4 bilhões2 e tudo indica que o crescimento deve continuar, graças ao fortalecimento do modelo exportador de commodities agrícolas, que, diferentemente da alternativa agroecológica, trata a biodiversidade como praga a ser combatida. O lucro fica na mão de poucos: apenas dez empresas respondem por 90% do mercado nacional3 – Bayer (Alemanha), Syngenta (Suíça), Basf (Alemanha), Monsanto (EUA), Dow Chemical (EUA), Milenia/Makteshim Agan (Israel), DuPont (EUA), FMC (EUA), Nortox (Brasil) e Arysta (Japão).
Por comercializarem produtos com grande impacto sobre a saúde e o meio ambiente, essas companhias têm procurado construir uma imagem positiva e vêm se apresentando como social e ambientalmente responsáveis. Assim, algumas delas – Syngenta, Basf, Monsanto, Dow, Milenia e DuPont – integram o Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, uma associação “criada com a missão de mobilizar, sensibilizar e ajudar as empresas a gerir seus negócios de forma socialmente responsável, tornando-as parceiras na construção de uma sociedade sustentável e justa”. Segundo o próprio Instituto Ethos, “responsabilidade social empresarial é a forma de gestão que se define pela relação ética e transparente da empresa com todos os públicos com os quais ela se relaciona”4.
Existe também um grupo mais seleto, formado por Bayer, Syngenta, Basf e DuPont, que participa do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS), uma coalizão de empresas que tem como objetivo “integrar os princípios e práticas do desenvolvimento sustentável no contexto de negócio, conciliando as dimensões econômica, social e ambiental”. Para eles, o termo desenvolvimento sustentável significa “conciliar as necessidades econômicas, sociais e ambientais sem comprometer o futuro de quaisquer dessas demandas”5.
Uma terceira associação na qual essas empresas têm igualmente um envolvimento ativo é o Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Agrícola (Sindag), a principal entidade representativa dos produtores de agrotóxicos do país. As empresas líderes do mercado possuem uma atuação de destaque dentro do Sindag e ocupam posições importantes na diretoria, incluindo a presidência (Syngenta), a vice-presidência (FMC e DuPont), a diretoria administrativa (Milenia) e a diretoria financeira (Basf), assim como a suplência (Bayer, Dow, Monsanto e Arysta)6.
Apesar de tratar-se das mesmas companhias, a atuação do Sindag parece pouco convergente com o discurso adotado pelo Instituto Ethos e pelo CEBDS. Um exemplo é a liminar obtida pelo sindicato no início do mês de julho, que interrompeu o processo de reavaliação de agrotóxicos realizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), do Ministério da Saúde.
A reavaliação é uma prática possível graças à constante inovação e pesquisa realizadas pelo setor químico e pelas áreas de saúde pública e meio ambiente. A partir de seus resultados, um agrotóxico poderia ser retirado do mercado por vários motivos: quando as pesquisas apontassem para novos riscos à saúde humana ou ambiental; sempre que fosse percebida uma perda de efetividade, ou seja, os insetos ou ervas desenvolvessem resistência ao veneno; ou se produtos menos tóxicos fossem desenvolvidos para substituir os antigos. Além disso, ao contrário do processo de registro, no qual as fabricantes são as principais fornecedoras da informação sobre a toxicidade dos agrotóxicos, o procedimento de reavaliação conta com informações obtidas de instituições independentes. Iniciativas como essas permitiram ao governo proibir o uso de produtos como o DDT, em 1998, e o monocrotofós, em 2006.
A redução contínua da toxicidade nesses produtos é uma estratégia fundamental para a diminuição dos casos de envenenamento químico no Brasil. Segundo o Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas, em 2006 os agrotóxicos de uso agrícola e doméstico foram, respectivamente, a segunda e a terceira causa de intoxicações humanas no país. Contabilizaram-se quase 9.600 registros, 17% acima do ano anterior7. E esses dados representam apenas a ponta do iceberg, pois as estimativas indicam que, para cada intoxicação por agrotóxico notificada, há outras 50 não comunicadas8. A maior parte delas ocorre no campo, entre trabalhadores rurais, incluindo mulheres e crianças. Essa situação decorre da combinação de inúmeros fatores, tais como a elevada toxicidade dos produtos, a forma irresponsável com que são vendidos, a falta de orientação adequada aos usuários e o baixo nível de informação e treinamento dos agricultores. Uma pesquisa realizada no norte do país mostrou que muitos agricultores desconheciam o código de cores utilizado para classificar o nível de toxicidade dos produtos (vermelho para extremamente tóxico, amarelo para muito tóxico etc.). Além disso, mais de 75% dos entrevistados afirmaram não ler a bula e nenhum deles conseguiu explicar corretamente o significado de pelo menos cinco dos 14 pictogramas utilizados para instruir analfabetos sobre o uso de máscara e luvas de proteção, entre outros9.
Contaminação da comida
E o risco de intoxicação não se restringe apenas aos trabalhadores rurais e seus familiares: utilizados incorretamente, os agrotóxicos contaminam a comida que vai para mesas de todo o país. Para quantificar esse problema e alertar a população, em 2001 a Anvisa iniciou o Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos, que busca identificar o excesso de químicos nos alimentos e o uso de agrotóxicos em culturas para as quais eles não são indicados. A avaliação de 2007 indicou que 45% das amostras de tomate, 43% das de morango e 40% das de alface apresentavam situação insatisfatória quanto à presença desses produtos10.
É fundamental destacar também que processos de reavaliação ocorrem em todo o mundo, não sendo exclusividade do Brasil. Na Europa, a Diretiva 91/414/EEC criou um programa para rever sistematicamente as substâncias ativas usadas em agrotóxicos em circulação no mercado. Segundo essa diretiva, um produto deve ter sua aprovação válida por período não superior a dez anos e o registro pode ser revisto a qualquer momento. Nos Estados Unidos, a Agência de Proteção Ambiental vem desenvolvendo um amplo programa de “re-registro”, uma revisão completa dos efeitos dos agrotóxicos sobre o meio ambiente e a saúde humana. Estão sob análise aproximadamente 1.150 ingredientes ativos, organizados em 613 grupos de agrotóxicos. Nos últimos anos, 229 deles tiveram seu registro cancelado11, uma demonstração de que esses instrumentos de reavaliação de agrotóxicos são fundamentais para evitar que os trabalhadores rurais, a população em geral e os ecossistemas corram riscos desnecessários.
No Brasil, segundo o decreto nº4.074/2002, “cabe aos Ministérios da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Saúde e do Meio Ambiente, no âmbito de suas respectivas áreas de competências (…), promover a reavaliação de registro de agrotóxicos (…) quando surgirem indícios da ocorrência de riscos que desaconselhem o uso de produtos registrados”. A iniciativa é muito importante, pois, ao contrário dos medicamentos, o registro de um agrotóxico não tem prazo de validade. Portanto, somente após a reavaliação o governo pode retirar do mercado produtos obsoletos ou que já possuem substitutos menos tóxicos.
Danos em longo prazo
A reavaliação de agrotóxicos no país vem sendo realizada pela Anvisa desde 2000 e prioriza os produtos com toxicidade aguda ou com possibilidade de causar danos em longo prazo, como câncer e má-formação fetal. Até este ano, a reavaliação era discutida e acompanhada por representantes da Anvisa, do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), do Ministério da Agricultura, do Sindag e da comunidade científica. A partir de julho de 2008, com a publicação da RDC 48/2008 pela Anvisa, um novo procedimento foi adotado: a comissão de avaliação passou a ser formada apenas por representantes da Anvisa, Ministério da Agricultura e Ibama, e foram incluídas consultas e audiências públicas, permitindo assim que membros da sociedade como um todo possam participar do processo. Durante a reavaliação, um produto não é necessariamente proibido: dependendo das informações obtidas pela Anvisa, o registro do agrotóxico pode ser mantido, alterado ou suspenso. Em casos extremos a solução obviamente é sua proibição.
Para 2008, a Anvisa havia programado a reavaliação de 14 substâncias, escolhidas principalmente com base na literatura científica existente, bem como nas novas restrições estabelecidas no cenário internacional. Desse total, o Sindag conseguiu, com a liminar obtida na Justiça, interromper a reavaliação de nove princípios ativos (triclorfom, parationa metílica, metamidofós, fosmete, carbofurano, forato, endossulfam, paraquate e tiran). O quadro ao lado resume a situação de três desses agrotóxicos.
Ao invés de apoiarem o processo de reavaliação, que busca reduzir a exposição da população a diferentes produtos de alta toxicidade, as empresas ligadas ao Sindag opuseram-se à movimentação da Anvisa. Dessa forma, de acordo com a decisão nº 69/2008 do Juiz Federal Substituto da 13ª Vara do Distrito Federal e “a fim de evitar qualquer dano às empresas”, foi determinado que a Anvisa se abstivesse de suspender ou restringir a comercialização de diversos agrotóxicos, até que a regularidade formal da reavaliação fosse analisada. Em outras palavras, por questões formais, a Justiça vem adiando ações que poderiam evitar a intoxicação de muitas pessoas.
Embora representantes do Sindag afirmem que o sindicato “não quer impedir a reavaliação dos agrotóxicos”12, novamente seu discurso parece incoerente com a prática das empresas. Em abril de 2008, a companhia japonesa Arysta conseguiu um mandado de segurança que obriga a Anvisa a manter o registro dos agrotóxicos produzidos a partir do acefato13, um produto proibido na Europa desde 2003. Em julho, a italiana Sipcam Isagro entrou na Justiça com um pedido de anulação do processo de reavaliação da cihexatina, numa tentativa de impedir que a Anvisa publique as restrições a esse agrotóxico14, cujo uso foi cancelado na Europa em abril deste ano.
De acordo com pesquisa divulgada nos fóruns de saúde ambiental, ações dessa natureza também vêm sendo praticadas em outras localidades da América Latina. Na América Central, desde 1997 empresas do setor vêm participando das negociações sobre a unificação aduaneira na região. Essas companhias fazem lobbies pela criação do Registro Único de Agrotóxicos, um mecanismo que estabeleceria uma “equivalência” de todos os sistemas de registro nacionais, independentemente dos seus graus de exigência. Por meio dele, um produto que fosse registrado em um país poderia circular livremente por toda a região, livre das proibições feitas pelas demais nações15.
Os interesses obscuros das corporações
Dessa forma, o comportamento dessas empresas desperta muitas questões que dificilmente poderiam ser respondidas de uma perspectiva de responsabilidade corporativa: qual é o real interesse e motivação das companhias associadas ao Sindag quando decidem adiar o processo de reavaliação, cujo objetivo é proteger a saúde da população? Aquelas que já possuem produtos substitutos menos tóxicos não deveriam apoiar a Anvisa no banimento de agrotóxicos obsoletos? É possível avaliar eticamente empresas que vendem no mercado global produtos banidos em seu país de origem?
A conseqüência dessa atuação nós já sabemos: a Anvisa vem sendo impedida de realizar uma de suas atribuições fundamentais, que é proteger a saúde da população. Nesse contexto, é fundamental que seja amplamente divulgada à sociedade a tentativa das indústrias, inclusive de grandes transnacionais, de dificultar a atuação reguladora dos órgãos de saúde pública. O Poder Judiciário também não pode permitir que uma medida ligada à garantia do direito à saúde dos cidadãos brasileiros seja flexibilizada em nome de interesses privados de empresas cujas atividades têm resultado na intoxicação de trabalhadores, contaminação de ecossistemas e diminuição da qualidade de nossos alimentos.
À Anvisa deve ser garantido o poder de regular os agrotóxicos no Brasil. E à sociedade, o direito de participar e decidir sobre a utilização desses venenos. Além disso, esta discussão traz à tona outra maior: se queremos um modelo agrário baseado em monoculturas para exportação ou se entendemos a necessidade de alternativas de transição agroecológica, que apontem para um modo de produção eficiente, socialmente justo e ambientalmente sustentável.
*Bruno Milanez é pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz). Marcelo Firpo de Souza Porto é pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz). Jeffer Castelo Branco é membro da Associação de Combate aos Poluentes (ACPO). Jean-Pierre Leroy é assessor da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase). Zuleica Nycs é membro da Associação de Proteção ao Meio Ambiente de Cianorte (Apromac).