Os arcaicos arquivos secretos - Le Monde Diplomatique

SEGREDOS E SIGILOS O

Os arcaicos arquivos secretos

por Joseph K
1 de julho de 2000
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A França insiste em manter uma ampla série de assuntos estatais sob sigilo legal. O controle desses temas é feito quase sempre por autoridades do executivo e o controle parlamentar quase não existe, sobretudo se o compararmos ao dos Estados UnidosJoseph K

Depois da morte do rei Hasan II, do Marrocos, a França decidiu suspender o segredo de defesa que envolvia alguns documentos referentes ao processo da morte de Mehdi Ben Barka, [1] retidos pela Direção Geral de Serviços Externos (DGSE). [2] Esse foi um importante avanço e é de se esperar que permita lançar um debate sobre as bases legislativas que autorizam o poder executivo francês a encobrir um “caso” através de uma proibição jurídica. Trata-se de dois grandes campos: o segredo de Estado em matéria de política externa e de defesa, e — mais tradicional da ação administrativa — aquele conhecido como sigilo “burocrático”. É este segundo que tem sido objeto das reformas mais freqüentes, enquanto o primeiro permanece um assunto tabu. [3]

A portaria de quatro de fevereiro de 1960 previa a pena de morte para qualquer cidadão francês que cometesse traição “entregando a uma potência estrangeira uma informação de interesse da defesa nacional”, ou mesmo “detendo a posse de tal informação com intenção de a entregar a uma potência estrangeira”. A natureza da “informação” era
deixada à apreciação do juiz militar — e é bom lembrar o assombroso processo contra Mata Hari, em 1917, — do qual se desconhece até hoje que terrível segredo teria ela entregado.

Escutas telefônicas

A filosofia geral dos textos a respeito do assunto não mudou desde a primeira lei, de 18 de abril de 1886. As diferentes regulamentações que se sucederam desde então [4] apenas aumentaram os poderes da administração no que diz respeito à classificação, sem nunca definir com precisão a natureza dos documentos e das informações referentes. Os textos posteriores do código penal, regulamentando a classificação de documentos oficiais como segredo-defesa e confidencial-defesa, também se destinavam exclusivamente a precisar as sanções, e não a definir que documentos deveriam ser protegidos em função da sensibilidade de seu conteúdo. Dessa forma, esses textos colocam o princípio do direito ao sigilo pelo executivo através do instrumento da classificação, quaisquer que sejam a natureza e o conteúdo do documento em questão, bem como — e principalmente — a motivação da autoridade. O dispositivo destinado a proteger o segredo de defesa serviu portanto, progressivamente, para proteger o segredo de Estado. [5] O caso Ben Barka ou o do verdadeiro-falso passaporte de Yves Chalier [6] evidenciaram esses desvios.

O funcionamento do Grupo de Interceptação e Comunicação (GIC), acobertado pelo segredo-defesa, garante a escuta telefônica e interfere nas telecomunicações por ordem do poder executivo. Não é enquadrado em nenhum texto que regulamente os limites de eventuais abusos. Repetem-se escândalos que tornam a colocar constantemente a questão, sem, no entanto, respondê-la. Por exemplo, no caso das escutas telefônicas instaladas nas casas da atriz Carole Bouquet e do jornalista Edwy Plenel, uma vez mais foi evocado, perante a justiça, o segredo-defesa.

Comissão nacional do segredo-defesa

O novo texto de lei sobre a classificação de documentos administrativos, adotado em 8 de julho de 1998, representa um progresso incontestável, [7] ao tentar definir a natureza dos textos em questão. O novo código penal de 1995 destaca a noção de “segredo da defesa nacional”: “Informações, procedimentos ou objetos, documentos, dados informatizados ou arquivos que digam respeito à defesa nacional e que tenham sido objeto de medidas de proteção destinadas a restringir sua difusão”. Tais “informações, procedimentos ou objetos” são “aqueles cuja divulgação ou compilação possa por em risco os interesses fundamentais da Nação”. Essas informações são classificadas segundo o grau de nocividade de sua divulgação.

O texto da lei de julho de 1998 cria também uma comissão independente, encarregada de decidir se um juiz tem ou não direito de tomar conhecimento de um documento confidencial. O poder arbitrário do executivo encontra aí um primeiro limite. Mas ainda não é uma revolução. A comissão nacional do segredo-defesa compõe-se de três funcionários (um do Conselho de Estado, um do Tribunal de Contas e um do Supremo Tribunal de Justiça) e dois parlamentares (um deputado e um senador). Encontram-se portanto fortalecidas em seus papéis de censores duas instâncias que haviam contribuído grandemente para a definição extensiva do segredo-defesa, em favor do executivo e contra o juiz: o Conselho de Estado, por uma sentença de 1955 (caso Coulon), confirmada por um parecer de 19 de julho de 1974 (caso Canard Enchaîné), e o Supremo Tribunal de Justiça por duas vezes (Le Canard Enchaîné em 1975 e o verdadeiro-falso passaporte de Yves Challier em 1987).

Segredo ganha dimensão de nação

Por outro lado, o segredo-defesa pode estender-se a campos tão variados como o urbanismo, o controle parlamentar, os processos de desapropriação, os negócios públicos, a obrigatoriedade de motivação de atos administrativos ou a prorrogação do prazo para consulta de arquivos de 50 para 60 anos.

O novo código penal também definiu separadamente o “segredo de defesa” — de âmbito estritamente limitado — e um amplo e ambicioso novo conceito, o de “interesses fundamentais da nação”, cuja proteção justifica a aplicação de pesadas penas, e que abrange os setores envolvidos na concorrência internacional (economia, tecnologia, cultura, meio ambiente…). Diferentemente da antiga estrutura, o segredo-defesa tornou-se um “satélite” subsidiário do principal dispositivo, dedicado à proteção dos interesses fundamentais. O segredo de Estado se transforma, assim, em segredo da nação: não se trata mais de um segredo essencialmente estatal, que ocasionalmente se arrisca em incursões periféricas a locais privados ou campos concorrentes; trata-se, verdadeiramente, de um segredo que nasce e se desenvolve nos diferentes espaços da vida nacional. Chega-se a um segredo da nação cuja proteção será delegada ao Estado.

Posição kafkiana do funcionário

A outra face do problema refere-se ao sigilo burocrático. As deliberações do governo são tradicionalmente submetidas ao regime secreto. “Compreende-se perfeitamente, sejam quais forem nossas exigências democráticas, que trabalhos dos gabinetes ministeriais, bem como os do governo, não podem, sem inconvenientes do ponto de vista do interesse geral, desenvolver-se aos quatro ventos” (relatório do Conselho de Estado, 1995). Esse ponto não se presta a debates. Em compensação, a “resistência” do aparelho administrativo à transparência que os administrados desejam é mais problemática. O sigilo burocrático foi objeto de regulamentações recentes e inovadoras, como a lei de 17 de julho de 1978 sobre o acesso aos documentos administrativos ou a criação da Comissão Nacional de Informações e Liberdades (CNIL), que asseguram um certo direito de olhar dos administrados sobre os atos que lhes dizem respeito.

Em matéria de sigilo, os funcionários franceses se vêem numa posição ambígua, para dizer o mínimo. São expressamente obrigados a observar sigilo e só se podem livrar dessa obrigação por decisão expressa da autoridade de quem dependem. Por outro lado, estão sujeitos a uma obrigação de denúncia de todo crime ou delito conhecido (artigo 40 do código penal). Finalmente, também são obrigados à discrição.

Os “contratos-ministro”

Certas corporações encontram-se no cerne dessa contradição, uma vez que mesmo que descubram malversações ou atos delituosos, a jurisdição do juiz está à mercê do ministro do qual dependem. Por exemplo, alertas diversos e precoces haviam sido enviados pela Inspeção Geral de Assuntos Sociais (IGAS) sobre o escândalo da Associação de Pesquisa do Câncer (ARC). A ação na justiça só foi iniciada com atraso. Também é válido indagar, após os recentes relatórios do Tribunal de Contas, por que práticas tão ilegais como remunerações sem fundamentos jurídicos — prêmios não fiscalizados de funcionários do Ministério da Fazenda, prêmios líquidos destinados a membros do gabinete, ou o que se convencionou chamar de contratos “ministro”, que permitem os chamados cabides de emprego —, até hoje não suscitaram denúncias ou ações judiciais.

O código dos militares os autoriza a se recusarem a acatar uma ordem “claramente ilegal”, embora eles o devam fazer junto à hierarquia, de onde a própria ordem pode ter partido. O que explica a escolha mais freqüente de recorrer à imprensa, que protege o funcionário e o deixa falar.

Um mundo que não é inocente

As “polícias secretas” e o “sigilo policial” foram usados com freqüência no começo da V República. Desde então, a transparência progrediu, especialmente com a interdição, em 1982, do Serviço de Ação Cívica (SAC). A dupla subordinação a que os funcionários de polícia estão sujeitos — primeiro à sua hierarquia e depois às autoridades judiciárias — normalmente exclui qualquer possível conseqüência num caso sigiloso. Todavia, este permanece no cerne da estratégia policial, que requer necessariamente um maior grau de confidencialidade. O costume da proteção das fontes pode ser encarado, segundo o Conselho de Estado, como uma “inevitável sobrevivência de um mundo que não é inocente, nem, conseqüentemente, feito para a transparência; onde tampouco tudo é confessável, onde todas as relações sociais não podem ser geridas à luz do dia” (relatório do Conselho de Estado, 1985).

A situação francesa se caracteriza, portanto, pela grande extensão do campo do segredo legal, cuja competência provém quase inteiramente do executivo e do administrativo. Com a ajuda do sistema majoritário, o controle parlamentar continua praticamente inexistente, sobretudo se o compararmos ao dos Estados Unidos. Depois de muitos anos de autocensura sobre a política africana da França, considerada como “domínio reservado” do presidente, a criação de uma comissão de informação sobre a Ruanda, em 1999, é ainda uma iniciativa bem modesta. Porque a comissão não dispõe de poderes que obriguem a testemunha a comparecer para depor, como no Congresso norte-americano.

Reticências quanto à justiça

E será que o Parlamento tem vontade de cumprir plenamente o seu papel? A existência de fundos secretos, ou “fundos especiais” a título de serviços ao primeiro-ministro — que permitem, por uma decisão simples e sem nenhum tipo de justificativa, obter verbas do órgão público responsável — tornou-se possível por meio de um meanismo que altera a regra orçamentária que o Parlamento vota.

Ultimamente, o Parlamento francês parece querer sair de seu papel menor, instalando outras comissões de informação — sobre a exportação de armamentos, ou sobre o controle dos serviços secretos. Mas o sistema político, que não quer que a maioria parlamentar crie problemas para o governo, dá margem ao ceticismo.

Finalmente, o juiz francês, a partir do momento em que a administração lhe nega acesso ao conteúdo do segredo, fica juridicamente impedido de exercer controle. Nem todas as grandes democracias têm a mesma reticência quanto à justiça. Os juízes britânicos e norte-americanos, por exemplo, reconhecem que a administração tem o privilégio da classificação e, portanto, da retenção de informações. Mas podem controlar o seu uso. Desde 1968, a justiça britânica arbitra entre o interesse público (invocado pelo ministro para se recusar a divulgação de um documento) e o interesse da justiça. Num caso de tráfico de armas com o Iraque (caso Matrix Churchill), o governo britânico se comprometeu a não invocar a imunidade, a não ser que a difusão de documentos confidenciais causasse um “prejuízo real”.

As polícias paralelas de De Gaulle

Nos Estados Unidos, o juiz permite-se examinar os documentos e decidir sobre o arrazoado das posições do governo. Também na Espanha, no caso dos Grupos Antiterroristas de Libertação (GAL) — empenhados na luta clandestina contra os independentistas bascos —, o governo que tinha recusado a divulgação de documentos confidenciais foi condenado pelo Tribunal Supremo em 1997. Na Alemanha, o juiz pode ignorar uma recusa do governo e exigir a apresentação dos documentos. Se o executivo confirmar sua recusa, cabe-lhe informar o Parlamento. Vemos que, com a lei de 1998, a França agiu tardia e timidamente, em comparação com as outras grandes democracias.

Os recentes casos de restituição de bens aos judeus espoliados durante a ocupação trazem à tona um outro problema: o dos arquivos públicos. A lei de três de janeiro de 1979 proíbe o acesso aos arquivos públicos enquanto os principais protagonistas estiverem vivos: 150 anos para documentos contendo informações individuais de caráter médico, 120 anos para informações sobre funcionários públicos, 100 anos para documentos de ordem judicial, 60 anos para documentos que ponham em questão a vida privada ou contenham informações de interesse para a segurança do Estado. Essa concepção, que impede as vítimas de saber o que os Príncipes decidiram, é contraditória à necessidade atual de transparência e justiça. Essa sobrevivência de uma outra época foi fortalecida pela guerra fria, quando se dizia que o inimigo comunista estava por toda parte. O processo de Maurice Papon propiciou uma suspensão parcial do segredo dos arquivos. Na verdade, os governantes autorizaram os franceses a saberem qual tinha sido o papel do chefe de polícia por ocasião da repressão à manifestação dos argelinos em outubro de 1961 — mas não com relação à repressão da manifestação de Charonne, em 1962. [8] Ainda não é possível ter acesso a documentos sobre as polícias paralelas criadas pelo general De Gaulle. O trabalho de pesquisa dos historiadores, assim como dos jornalistas, é portanto igualmente difícil.

Revelações incômodas

O estudo do período da ocupação e o papel do governo de Vichy durante muito tempo se baseou apenas em jornais e no testemunho de pessoas que viveram a época, enquanto os arquivos públicos franceses permaneciam fechados aos pesquisadores. O livro do acadêmico norte-americano Robert Paxton sobre A França de Vichy [9] constituiu um verdadeiro terremoto. Baseando-se em arquivos alemães (estes sim, acessíveis), ele demonstrou o quanto o governo de Vichy havia buscado ativamente a c



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