Os bons e os maus patriotas dos EUA
As manifestações contra a guerra crescem, nos Estados Unidos. Enquanto os protestos contra a guerra do Vietnã tinham, de início, o apoio de uma pequena minoria da opinião pública, atualmente 37% dos norte-americanos opõem-se ao projeto de BushDaniel Lazare
As ondas de radicalismo só ocorrem nos Estados Unidos a cada trinta ou quarenta anos1. Uma vaga desse tipo parece se esboçar, alimentada pela ameaça de uma próxima invasão do Iraque. Os observadores a comparam já às anteriores. Durante a guerra do Vietnã, foi preciso esperar 1968, isto é, três anos de cerrada intervenção militar norte-americana, para que surgissem movimentos de protesto importantes. Desta vez, em 26 de outubro de 2002, quase 200 mil pessoas dirigiram-se a Washington e cercaram a Casa Branca; no mesmo momento, mais 80 mil pessoas saíam em passeata em São Francisco.
Em ambos os casos, opunham-se a uma guerra que ainda está apenas no estágio de projeto. Enquanto os jovens do Students for a Democratic Society (SDS) constituíam a força propulsora do movimento contra a guerra da década de 60 (na época, o alistamento era obrigatório…), as manifestações atuais têm por apoio uma base mais ampla. No início, os adversários da escalada indochinesa tinham apenas o apoio de uma pequena minoria da opinião pública. Ora, a dar crédito às pesquisas atuais, 37% dos norte-americanos opõem-se ao projeto de seu presidente2.
A “falta de patriotismo”
Pode ocorrer com George W. Bush o que aconteceu com seu pai, muito popular em 1991 e, no ano seguinte, repudiado por seus eleitores
George W. Bush pode parecer em excelente posição; na realidade, está mais fraco que Lyndon Johnson no final de seu mandato. Sua aventura iraquiana o expõe a toda série de riscos (obstáculos militares inesperados, caos no Iraque após uma eventual vitória, aprofundamento das dificuldades econômicas nos Estados Unidos). Pode ocorrer que, subitamente, o presidente se encontre na situação que seu pai conheceu, muito popular em 1991 e, no ano seguinte, repudiado por seus eleitores.
A situação atual assemelha-se ao Vietnã em um aspecto: a reciclagem que ela induz na intelligentsia progressista. Durante a guerra da Indochina, velhos social-democratas, como Irving Howe, criticaram com veemência os estudantes militantes que haviam ousado romper com o consenso anticomunista da guerra fria ao apoiar Ho Chi Minh. Hoje, os veteranos das lutas da década de 60 denunciam, no movimento pacifista que se esboça, pecados ideológicos bastante semelhantes.
Na realidade, semanalmente, ou quase, um progressista célebre imputa ao movimento sua falta de patriotismo, sua hostilidade aos valores dominantes do povo norte-americano ou sua oposição de princípios ao exercício do poder militar. Christopher Hitchens avalia que existe uma clivagem entre os que apóiam uma operação contra “Saddam” e os que “realmente acreditam que John Ashcroft (o secretário da Justiça) representa uma ameaça mais preocupante que Osama bin Laden3“. Este maniqueísmo assemelha-se um pouco ao do presidente Bush, para quem “ou vocês estão conosco, ou vocês estão com os terroristas”.
Amplia-se o espectro dos protestos
Durante a guerra do Vietnã, velhos social-democratas criticaram os estudantes que haviam ousado romper com o consenso anticomunista da guerra fria
A feminista de esquerda Ellen Willis e o historiador do movimento populista Michael Kazin também combateram o movimento contra a guerra. Kazin argumentou que não compreende que as massas sejam patriotas e que a burguesia nômade não seja. No caso dos Estados Unidosm, acrescentou que “a frase de Marx, segundo a qual os trabalhadores não têm pátria, foi constantemente desmentida4
“. Segundo ele, se os pacifistas querem se unir ao povo, é preciso que se mostrem mais patriotas do que seu presidente…
A presença de elementos “radicais” na coalizão pacifista suscitou um grande número de objeções. Todd Gitlin, ex-presidente da SDS e hoje sociólogo na Universidade de Nova York, alertou os contestadores sobre o perigo de ver pessoas como Ramsey Clark, ex-secretário da Justiça do presidente Johnson – que, a partir de então, apoiou todos os adversários dos Estados Unidos (mesmo os menos recomendáveis) – desempenharem um papel importante na organização das manifestações. Gitlin previu que, caso esses elementos não sejam expurgados (e como o fariam?), a menor desconfiança ligada à sua presença acarretará a derrota do movimento. Isso ocorreu poucos dias antes das grandes manifestações de 26 de outubro…
Outros críticos, como Marc Cooper e David Corn, editorialistas do jornal The Nation, afirmaram que os manifestantes erraram ao apontar outros problemas além da futura invasão, questionando o embargo norte-americano contra Cuba ou o Iraque (apesar, neste último caso, das centenas de milhares de vítimas em conseqüência deste embargo).
O “radical” George W. Bush
Uma fração da população norte-americana experimenta sentimentos anti-imperialistas ando se dá conta do custo humano das sanções contra o Iraque
Tamanha hostilidade explica-se de várias formas. Entre os aliados intelectuais do Partido Democrata, o ressentimento vem coroar uma série de fracassos. Tudo começou em novembro/dezembro de 2000 quando os republicanos venceram, de forma discutível, a corrida à Casa Branca. Depois de 11 de setembro o mal-estar cresceu quando os parlamentares progressistas, apavorados com a idéia de serem julgados como maus patriotas, acompanharam os passos do presidente aceitando a perspectiva de uma guerra sem fim para “livrar o mundo dos malfeitores”.
Como resultado de uma tendência antiga, até a ala intelectual mais progressista do Partido Democrata está em frangalhos. Há uma geração, os estudantes radicais acreditavam, com Herbert Marcuse, que o aburguesamento da classe operária norte-americana a impediria de desempenhar um papel revolucionário. Estes mesmos estudantes, hoje com as têmporas grisalhas e começando a engordar, ainda acreditam que a classe operária foi cooptada pelo sistema. Mas, desta vez se alegram com isso e desde que não haverá outra “alternativa” para a sociedade burguesa, a missão da esquerda seria a de se aliar, expurgando as falhas mais inconvenientes. Um procedimento que os conduz a se transformarem em oposição leal, patriótica e a nunca estigmatizar o imperialismo norte-americano, nem no momento em que este se firma mais do que nunca na história do país desde a invasão de Cuba em 1898.
No entanto, uma fração – ainda minoritária, porém não desprezível – da população dos Estados Unidos experimenta sentimentos anti-imperialistas quando se dá conta do custo humano das sanções contra o Iraque, das manipulações do Conselho de Segurança pela Casa Branca e das tentativas cínicas do governo Bush destinadas a fazer recair sobre Saddam Hussein a responsabilidade pelos atentados do 11 de setembro. Certamente, uma miríade de organizações minúsculas, que se dizem marxistas, trotskistas ou maoístas5, apressa-se a explorar tais sentimentos, mas quem é responsável por isso? O elemento mais radical dos Estados Unidos se chama George W. Bush. A maneira como ele conduz sua guerra contra o terrorismo transforma o tabuleiro internacional e acentua o tom altamente direitista da política norte-americana. Apenas revolucionando a ordem mundial, o presidente dos Estados Unidos revoluciona também a oposição a suas políticas, obrigando-a a mostrar-se tão radical quanto ele.
(Trad.: Teresa Van Acker)
1 – Ler, de Howard Zinn, Histoire populaire des Etats-Unis, ed. Agone, Marselha, 2002.
2 – Ler “Poll: Most support war as a last resort”, USA Today, 26 de novembro de 2002.
3 – Ler, de Christopher Hitchens, “Taking Sides”, The Nation, 14 de outubro de 2002. A partir de então, Christopher Hitchens decidiu não mais colaborar com o jornal The Nation.
3 – Ler, de Michael Kazin, A Patriotic Left, ed. Dissent, outono de 2002.
4 – Fo