Os cortes no Censo 2020: vergonha nacional ganha relevância estatística internacional
Para acompanhar o progresso dos países em relação às metas pactuadas na Agenda 2030, foram estabelecidos 244 indicadores diferentes. Os cortes promovidos no Censo 2020, nesse sentido, são extremamente preocupantes. Principal fonte de dados sobre a realidade social, econômica e urbanística do país, a redução da pesquisa impactará o monitoramento de áreas fundamentais da agenda do desenvolvimento.
Com o tema “Empoderando pessoas e garantindo inclusão e equidade”, Fórum Político de Alto Nível sobre Desenvolvimento Sustentável acontece, em Nova Iorque, desde o dia 9 de julho. O evento é promovido anualmente pela ONU para monitorar a situação de implementação da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Representantes de governos, da sociedade civil e do setor privado se reúnem, na sede das Nações Unidas, para avaliar o progresso na implementação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).
O Fórum está reunido para avaliar o progresso dos países na implementação de 6 ODS: educação de qualidade (ODS 4); trabalho decente e crescimento econômico (ODS 8); redução das desigualdades (ODS 10); ação contra a mudança global do clima (ODS 13); paz, justiça e instituições eficazes (ODS 16); e parcerias e meios de implementação (ODS 17). Todos os 17 objetivos foram pactuados pelos países membros da ONU e constituem, de acordo com a organização, “um chamado universal para ação contra a pobreza, proteção do planeta e para garantir que todas as pessoas tenham paz e prosperidade”.
Infelizmente, parece que o Brasil está agora surdo a esse chamado. Além de estarmos regredindo em posicionamentos acerca de questões relacionadas à equidade de gênero e de transformarmos nossa política externa em espaço de exercício de nepotismo, nos últimos meses a diplomacia brasileira demonstrou que novos e perigosos rumos foram estabelecidos para a atuação do país em nível global.
Ativamente engajado no processo de construção da Agenda 2030 até 2015 e em diversos outros processos de discussão e pactuação no âmbito internacional – como da Nova Agenda Urbana, em 2016-, temos cada vez mais nos afastado desses processos. Nesta edição do Fórum Político de Alto Nível, o Brasil decidiu não apresentar seu Relatório Voluntário Nacional, sob protesto da sociedade civil brasileira engajada neste processo. Esse documento é apresentado pelos países anualmente para demonstrar como têm progredido em relação às metas e indicadores estabelecidos no âmbito dos ODSs, mais especificamente, aqueles em revisão em cada edição do Fórum.
Haverá alguma sanção para o país? Não, pois se trata de uma iniciativa voluntária por parte dos estados-membros da ONU, mas o não-envio do relatório demonstra cada vez mais uma postura de realinhamento do Brasil no âmbito das relações internacionais. Revela, também, a existência de uma dimensão internacional da política de desmantelamento da rede de produção de conhecimento sobre a realidade brasileira, que vem sendo implementada pela nova gestão federal. É exatamente nesse ponto que a política externa se encontra com os cortes promovidos no Censo 2020.
Para acompanhar o progresso dos países em relação às metas pactuadas na Agenda 2030, foram estabelecidos 244 indicadores diferentes, abrangendo todos os temas conectados ao desenvolvimento sustentável: educação, saúde, moradia, trabalho, dentre outros. Representante do país na Divisão de Estatística das Nações Unidas, o IBGE lidera internamente o processo de definição, produção e monitoramento destes indicadores, muitos dos quais ligados a diferentes pesquisas e análises já realizadas rotineiramente pelo Instituto.
Os cortes promovidos no Censo 2020, nesse sentido, são extremamente preocupantes. Principal fonte de dados sobre a realidade social, econômica e urbanística do país, como explica a urbanista Danielle Klintowitz, a redução da pesquisa impactará o monitoramento de áreas fundamentais da agenda do desenvolvimento – incluídas, por exemplo, no ODS 1 (erradicação da pobreza); no ODS 8 (trabalho decente e crescimento econômico); e no ODS 11 (cidades e comunidades sustentáveis.
É verdade que, mesmo antes do anúncio do corte, já havia muitas metas estabelecidas para as quais ainda não possuímos métricas ou fontes de dados oficiais para monitorar sua evolução. Até o momento, dispomos de apenas 70 indicadores produzidos dentre os 244 previstos, contra 81 indicadores em análise/construção, 48 sem quaisquer dados, 38 sem metodologia global definida ainda e 7 indicadores que não se aplicam ao Brasil.
Se dispomos, agora, de menos de um terço dos dados necessários para o monitoramento do desenvolvimento sustentável do país produzidos, não é através do corte ao Censo 2020 que a situação será resolvida. Ao contrário, com a diminuição do questionário básico de 37 perguntas para 25 e do questionário completo de 108 perguntas para apenas 76, deixaremos de ter bases sólidas para verificar a evolução da renda dos brasileiros, tendo em vista que se deixará de investigar a renda total de todos os moradores no questionário básico, coletando-se apenas a renda do responsável pelo domicílio. Não saberemos também se estas pessoas dispunham de outro trabalho além do principal.
Em relação às características do domicílio, a eliminação de perguntas referentes a posse de bens, tipo de domicílio, condição de uso e posse também terão significativo impacto sobre o monitoramento, não apenas da Agenda 2030, mas também da Nova Agenda Urbana, outro pacto do qual o Brasil é signatário, resultante da terceira conferência da ONU sobre habitat e desenvolvimento urbano. Uma das principais causas do déficit habitacional brasileiro, o ônus excessivo com aluguel, deixará de ser apurado, tendo em vista que não se perguntará mais sobre o valor pago pelas famílias.
Embora argumentem que grande parte dos dados que o Censo 2020 deixará de coletar serão obtidos através de pesquisas amostrais, os representantes do governo deixam de abordar como é perniciosa a quebra nas séries históricas que o corte promoverá. Além disso, não se pode confiar na palavras de gestores comprometidos com um governo claramente disposto a diminuir o conhecimento da sociedade brasileira sobre si mesma, vide as diferentes tentativas de ataque à autonomia universitária, desqualificação de análises de instituições de pesquisa como a FIOCRUZ, dentre outros. Nada nos assegura que essa redução não será permanente.
E quem ou o que mais sofrerá com estes cortes?
Certamente não são os pesquisadores brasileiros que dependem de dados para realização da avaliação das condições do país em inúmeras dimensões. Tampouco serão os outros países comprometidos com as agendas pactuadas internacionalmente ou a ONU em si mesma. Para além do seguimento dessas agendas, o mais preocupante é o fato de que o estado brasileiro perderá sua capacidade de planejamento e, com isso, políticas e programas públicos, como as políticas urbana e habitacional e programas como Bolsa Família. No final, quem sofrerá, portanto, é a população pobre do país.
Rodrigo Faria G. Iacovini é advogado e doutor em planejamento urbano, coordenador executivo do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico e assessor do Instituto Pólis.