Os educadores – Bolsonaro, 100 dias
Contra o ensino público e contra educação crítica e emancipadora, as iniciativas do novo governo federal apontam para a destruição das estruturas existentes, sem clareza do que pode substituí-las. Na prática, a posição se resume em duas palavras: é contra
Dois eixos de disputa organizam o debate sobre a educação no Brasil.
O primeiro se refere ao caráter público ou privado do ensino. Nas últimas décadas, o mercado da educação no país cresceu e se internacionalizou, aumentando as pressões dos interesses privatistas. Reforçou-se o discurso de desqualificação do ensino público, por meio de rankings descontextualizados ou manipulados. Este eixo se funde à visão neoliberal de que o serviço público é sempre inferior e de depreciação dos valores igualitários que dão base ao projeto de educação universal. A campanha contra o ensino superior público foi intensificada, ao mesmo tempo em que ganham visibilidade propostas antes marginais de desmonte do sistema público em outros níveis, como a substituição das escolas públicas por vouchers para a compra de serviços educacionais particulares.
O segundo eixo opõe uma educação crítica e emancipadora às velhas concepções do ensino como adestramento para a obediência. Há muito ultrapassadas, elas voltaram à cena com o avanço dos discursos obscurantistas no debate público, embaladas pela paranóia sobre a “ideologia de gênero” e o “marxismo cultural”. O chamado movimento “Escola Sem Partido”, na verdade um lobby privado com forte apoio de religiosos fundamentalistas, teve sucesso em introduzir na discussão a percepção – empiricamente indefensável – de que a “doutrinação” é um dos problemas da educação brasileira.
É razoável supor que, para os grupos tradicionais da direita brasileira, como aqueles que chegaram ao poder com o golpe de 2016, a agitação gerada pelo segundo eixo de debate interessa sobretudo na medida em que favorece, no primeiro eixo, a posição privatista.
O governo Jair Bolsonaro bagunça esta lógica. Embora advogados da privatização tenham se aproximado do ex-capitão durante a campanha e emplacado várias de suas propostas, ele optou por entregar o Ministério da Educação (MEC) aos discípulos de Olavo de Carvalho, o astrólogo que se transformou em guru da extrema-direita brasileira.
Fogo cruzado
O ministro, o obscuro filósofo Ricardo Vélez Rodríguez, sem experiência de gestão, sem reflexão acumulada sobre educação e sem prestígio político ou acadêmico, tinha como único trunfo a indicação de Olavo.
Pessoas com perfil similar – ex-alunos de Vélez e/ou “olavetes” juramentados – foram nomeados para cargos no MEC e nos institutos a ele vinculados. Como em outras áreas do governo, militares e alguns burocratas vinculados ao tucanato foram chamados para completar a equipe e pretensamente dotá-la da “competência técnica e administrativa” que falta ao núcleo ideológico.
Desde o princípio, os grupos estabeleceram uma competição velada, que com menos de dois meses de governo já se tornara aberta. Nenhum dos lados, porém, tem vinculação efetiva com o tema da política educacional.
No momento em que escrevo estas linhas, as escaramuças pareciam se resolver em favor de Olavo. Vélez, que primeiro tentara se livrar da tutela excluindo alguns olavetes, submeteu-se e agiu em sentido contrário, demitindo os principais desafetos do guru. Não consegue, porém, nomear novos assessores, paralisado pelo fogo cruzado dos grupos que desejam controlar a pasta.
Não se consegue discernir, no início do governo Bolsonaro, nenhum projeto para a educação, por pior que seja. Há uma vaga nostalgia da escola disciplinadora de outrora, com o culto convencional aos símbolos pátrios, as hierarquias rígidas e as verdades incontestáveis – um curioso par para a preocupação sempre reiterada com a “doutrinação”.
A preferência pelo velho método fônico de alfabetização, aquele do bê-á-bá, é parte do mesmo espírito. Independentemente da discussão sobre os méritos dos diferentes métodos, a ideia de que todo o sistema de ensino se curvará automaticamente a uma determinação de Brasília, mudando as práticas pedagógicas por decreto, demonstra absoluto desconhecimento da realidade da educação brasileira. É também esta nostalgia da escola do passado que alimenta, nas unidades da federação, o movimento pela militarização do ensino público – mas, ainda que ecoe o mesmo pensamento repressivo, nele o MEC não tem protagonismo.
A proposta de regulamentação do homeschooling é significativa por sintetizar o desprezo pelo componente republicano da instituição escolar e a primazia absoluta da família diante da criança – aliás, o projeto é gestado no âmbito do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, não do MEC.
Entendidos como propriedades dos pais, a serem moldados segundo sua vontade, os filhos não existem como sujeitos de direitos. O impacto potencial da proposta, que pressupõe um modelo de família hoje francamente minoritário, é pequeno. Mas, junto com a ideia de educação a distância em todos os níveis, que é vista com simpatia por integrantes do governo como mecanismo de redução de custos, abre um novo flanco de ataque à escola pública, a partir de um novo modo de “privatização”, em que o privado tem como foco a esfera doméstica.
Instrumento de guerra “ideológica”
O ataque contra o pensamento crítico na escola se traduz em denúncias contra instituições ou docentes e em iniciativas bombásticas, mas limitadas, que, muitas vezes, terminam em recuo. Foi assim com o expurgo de vídeos “de esquerda” do website do Instituto Nacional de Educação de Surdos: o Ministério ensaiou desculpas, anunciou que os vídeos retornariam e liquidou a questão com uma bizarra nota oficial em que acusava o veterano colunista conservador do jornal O Globo que noticiara o ocorrido de ser agente da KGB.
Foi assim também com a determinação de que as escolas hasteassem a bandeira, fizessem os alunos cantar o hino e mandassem vídeos para o Ministério. A censura às questões do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) permanece como promessa e anunciou-se até a formação de um comitê com este fim. Mas não se sabe de onde virá a equipe técnica para redigir questões de acordo com a cartilha olavista. E a ideia insensata de submeter a prova a Bolsonaro foi convenientemente esquecida. Assim como, aliás, o anunciado mapeamento ideológico dos reitores das instituições de ensino superior.
O constrangedor despreparo dos novos gestores da pasta e a ausência de sequer uma sombra de política educacional revelam que o MEC foi transformado em simples instrumento da guerra “ideológica” que o presidente impulsiona, em sua estratégia de campanha permanente pelas mídias sociais. Trata-se de empunhar os fantasmas do “marxismo cultural” e da “ideologia de gênero”, como forma de manter mobilizada a base militante. O discurso convencional, frequentemente hipócrita, da educação como prioridade foi abandonado em favor do enquadramento da educação como ameaça. Essa é uma mudança importante, reveladora do fato de que chegou ao poder uma direita assumidamente obscurantista.
Por enquanto, as perseguições têm sobretudo a forma de ameaças difusas. Há incentivo para o assédio contra professores – o caso mais notório foi o da deputada estadual eleita em Santa Catarina que criou uma linha direta para denúncias contra quem demonstrasse, em sala de aula, tristeza pela vitória de Bolsonaro.
Mas a flagrante ilegalidade de tais iniciativas, mesmo na situação de ruptura do Estado de direito que vivemos no Brasil, inibe sua continuidade. Uma importante decisão do STF, em outubro de 2018, barrou a onda de intimidação contra instituições de ensino que juízes, promotores e policiais alinhados ao bolsonarismo orquestraram na reta final das eleições. Unânime, com intervenções fortes dos ministros, a decisão foi, até o momento, a última manifestação do STF em favor de princípios liberais. Depois, sempre sob a presidência pusilânime de Dias Toffoli, engavetou a decisão sobre a constitucionalidade dos projetos de “Escola Sem Partido”. Há pouca dúvida de que, quando se pronunciar, a corte vetará a mordaça.
Outra via de pressão é a anunciada “Lava Jato da Educação”, uma parceria de Vélez Rodríguez com o Ministério da Justiça de Sérgio Moro, ainda sem existência concreta, mas que Bolsonaro evoca no Twitter quando julga conveniente. Em outra demonstração do descompasso com o núcleo governamental interessado na privatização, o anúncio da pretensa devassa nas contas do Ministério levou à queda nas ações dos grandes conglomerados da educação no Brasil, como Kroton, Estácio e Ser, pelo temor de que, no afã de atingir as gestões do PT, fossem colocados sob suspeita os generosos repasses de verbas públicas que os beneficiaram.
A possível “Lava Jato da Educação” tem uma face que agride diretamente o ensino público, em particular as universidades. Trata-se do risco de intensificação da criminalização da gestão universitária – a busca por pequenas irregularidades administrativas, que geram punições desproporcionais e sem espaço para defesa.
Em 2017, a morte do reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier, chamou a atenção de forma dramática para a situação. Cau, como era chamado, foi preso e humilhado numa operação que supostamente apuraria desvio de recursos da universidade. Acusado de obstruir as investigações, sequer tinha sido convidado a prestar esclarecimentos. Solto, foi proibido de entrar no campus. Suicidou-se dias depois, para denunciar a violência que estava sofrendo. No relatório final da investigação, a Polícia Federal não reconhece nenhum dos seus erros e mantém todas as acusações, mas não consegue apresentar nenhuma prova do suposto desvio de verbas, muito menos do envolvimento do reitor.
Menos espetaculares, vários casos menores atestam a estratégia de incriminar os dirigentes universitários por irregularidades de gestão. Caso o MEC a encampe oficialmente, é de se prever uma escalada da tensão nos campi.
Educação? Em linhas gerais, o governo Bolsonaro mostrou que não tem nenhum projeto. As iniciativas adotadas até o momento apontam sobretudo para a destruição das estruturas existentes, sem clareza do que pode substituí-las. As prioridades do Ministério são moinhos de vento e a fantasia do retorno ao passado não tem como se efetivar. Na prática, a posição do governo sobre a educação se resume em duas palavras: é contra.
Por Luis Felipe Miguel é Professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), onde coordena do Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê). Autor, entre outros livros, de Dominação e resistência (Boitempo, 2018)