Os enigmas da loucura
Documentário retrata um grupo de teatro de São Paulo, constituído por psicóticos, que apresenta uma peça incomum e criativa que se propõe ser um espaço de liberdade entre a selva da cidade e as paisagens lunáticas do “interior das cabeças”Jean-Claude Polack
“Na vida é preciso colocar uma máscara. No teatro, podemos ser nós mesmos”. Esta é a constatação paradoxal dos pacientes psicóticos do grupo de teatro “Ueinzz”, de São Paulo, que preparam, com ajuda de “A casa” – equipe do hospital-dia – e de alguns atores profissionais, um espetáculo livremente inspirado no universo – cidade e personagens – de Batman.
A apresentação é um cerimonial burlesco e trágico que retoma a tradição dos loucos “por dever de ofício”, de quem outrora se esperava alguma lógica…
Carmen Oppipari e Sylvie Timbert acompanharam os ensaios, entrevistaram os atores de Eu sou o Coringa! O enigma! e falaram sobre suas vidas. Observaram a cidade e as pessoas da rua, a miserável riqueza de um Brasil em estado de resistência à globalização. Descrevem uma comunidade delicada, com uma “sensibilidade excessiva”, no limite da ruptura. O filme pretende abordar, antes da montagem do espetáculo, da paciente elaboração de uma “cena”, um espaço de liberdade entre a selva das cidades e das paisagens lunáticas ou atormentadas do “interior das cabeças”. Porque é sobre estas práticas frágeis que a loucura joga seu destino; ou a solidão doentia dos confinados, ou ainda a “processualidade” das invenções poéticas e corporais do trabalho teatral e o reencontro com o público.
“Falar ou calar?”
A apresentação final – num teatro célebre da cidade – em nada se parece com uma festa beneficente. É um cerimonial burlesco e trágico que retoma a tradição milenar dos loucos “por dever de ofício”, ou “da corte”, de quem outrora se esperava alguma lógica… O imperador de Gotham interroga viajantes estrangeiros, eles mesmos em busca de algo e desorientados. As perguntas e as respostas se cruzam sem se reencontrar e os espectadores, instalados nos diversos andares que cercam a passagem principal onde se desenrola a ação, entre risos e gritos, são intensamente envolvidos.
Durante o espetáculo, são os pacientes que questionam os espectadores. E o fazem num tom que nem Ionesco, Beckett ou Shakespeare teriam desautorizado
Sem nenhuma relação com a psiquiatria readaptativa, que põe os “esquizofrênicos” para trabalhar – a já famosa “ergoterapia” -, aqui são os pacientes que nos questionam, num tom que nem Ionesco, Beckett ou Shakespeare teriam desautorizado. Assim, do começo ao fim: “Quem se dedica ao teatro, se dedica à alma das pessoas… É preciso sentir e viver, nem sempre explicar… Manter o equilíbrio à beira do precipício da tristeza… Somos uma tribo, uma comunidade, uma minoria… Uma minoria inquieta?… Mas só estaremos em paz quando o mundo estiver… Falar ou calar, o que é pior?”
Uma ética comum da loucura
E a violência social é visível nessas imagens nervosas da cidade, é onipresente. Os doentes parecem apavorados e, às vezes, nos intervalos das falas, seu sofrimento transparece em uma retração dolorosa de um corpo privado de palavras. Entretanto, não estão sozinhos em sua alienação: nos bairros ricos, cada segurança de uma mansão, na sua guarita de madeira ou de cimento, é como um catatônico que já repousa em seu caixão.
O documentário mostra outra maneira de conviver com os processos psicóticos. Diferentemente das atitudes reativas e críticas da “antipsiquiatria” européia da década de 70, vemos se desenvolver neste filme – ao mesmo tempo íntimo e respeitoso -, uma alternativa criativa à normalização medicamentosa ou educativa da doença. E o trabalho de todos, dos que cuidam, dos que são cuidados, dos profissionais parece surgir de uma ética comum da loucura, cujo horizonte político otimista dos “anos Lula” alimenta, s