Os fantasmas de Madagascar
Três anos após a queda do presidente Marc Ravalomanana, Madagascar vive um impasse. Apesar de um tratado encerrar a fase de transição, a ilha se afunda na crise. Com ela, revelam-se as disfunções de um país vitimado pela voracidade das elites e por políticas de desenvolvimento impostas por parceiros internacionaisThomas Deltombe
Eles deviam ser apenas quatro ou cinco. Mas, no fim, eram mais de trinta operários que nos esperavam, em filas apertadas nos bancos de madeira que servem normalmente às reuniões sindicais. Nem todos são filiados à Confederação Geral dos Sindicatos dos Trabalhadores de Madagascar (Fisema), a primeira organização de assalariados do país. Quase todos, no entanto, são empregados nas empresas têxteis da zona franca de Antsirabe, terceira maior cidade de Madagascar, a 170 quilômetros ao sul da capital, Antananarivo.
É nessas ilhotas globalizadas, que pulularam nos últimos vinte anos, que pequenas mãos confeccionam, por 90 mil ou 110 mil ariary (R$ 70 ou R$ 85) por mês, os shorts, jeans e camisetas que se encontram à venda na Europa etiquetados por grandes marcas. Reunidos sob o quadro negro do “sendika”, no pequeno pátio adjacente à casa do responsável local da Fisema, eles aceitam nos contar “a crise”. Com a condição, insistem, de que seus nomes não sejam citados.
“A crise” é, primeiramente, a paralisia política do país desde março de 2009, quando o prefeito de Antananarivo, Andry Rajoelina, expulsou o presidente Marc Ravalomanana do poder, contestado pela rua e abandonado pelo Exército. Desde então, o provisório parece se tornar definitivo sob a forma de uma Alta Autoridade de Transição (HAT) presidida por Rajoelina. Mesmo tendo se demitido oficialmente, Ravalomanana não tem mais a intenção de deixar seu rival se impor. Exilado na África do Sul, ele espera voltar ao país. A “comunidade internacional”, que acusa Rajoelina de ter dado um golpe de Estado, suspendeu a maior parte das ajudas que Madagascar recebia. Mas esse episódio revela problemas mais profundos, de ordem estrutural, que trazem à tona a falta de perícia das elites malgaxes e o fracasso do modelo de desenvolvimento imposto ao país há décadas.
“Os responsáveis são os políticos, mas somos nós que sofremos as consequências”, lança uma operária de Antsirabe. As sanções internacionais atacam violentamente uma economia já afetada pela crise econômica de 2008, lembra um outro, que insiste sobre a ruptura do African Growth and Opportunity Act (Agoa), lei norte-americana que tinha, nestes últimos dez anos, estimulado a indústria têxtil malgaxe. Desde o fim desse dispositivo, em 2009, mais de 25 mil operários, dos 100 mil existentes no setor, foram demitidos. E muitos atravessaram períodos de desemprego técnico prolongados.
A usina Mklen, que exportava toda sua produção para os Estados Unidos, fechou as portas e despediu de uma vez 1.200 empregados. Estranhamente, os funcionários das usinas sobreviventes – Cottonline, Cotona, Aquarelle – ignoram o que aconteceu com seus companheiros da Mklen. Impossíveis de encontrar, estes últimos parecem ter se transformado de repente em fantasmas: alguns teriam se fundido à massa de puxadores de riquexó1 que pululam nas ruas de Antsirabe; outros teriam voltado para sua vila; e alguns teriam sido enviados para a Ilha Maurício ou para a Jordânia, onde a empresa-mãe administra outras usinas.
Algumas empresas menos dependentes da Agoa, como a Cottonline, puderam recontratar a partir de 2010. Mas, como em outros lugares, os patrões aproveitam a situação para manter os operários no cabresto. “Eles cortam nossos salários sob qualquer pretexto”, testemunha uma moça muito jovem, exaltada. “Às vezes, demitem por nada, apenas para nos mostrar que eles têm a última palavra.” No banco vizinho, uma senhora concorda com a cabeça. Depois de oito anos trabalhando na Cottonline, ela foi demitida sem aviso prévio, “porque estava doente”. Deram a ela 200 mil ariary (R$ 155), e ela foi para casa. O Estado também recebe duros golpes em razão do bloqueio da ajuda internacional, que representava metade de seus recursos em 2008. Mesmo que os funcionários continuem sendo pagos, as administrações viram seus orçamentos de funcionamento desaparecer.
Esse é o círculo virtuoso?
As promessas recorrentes feitas aos malgaxes desde a adoção da lei de 1989 sobre as zonas francas parecem distantes. Visando às “vantagens comparativas” e aos “efeitos de arrasto”, Madagascar devia entrar em um “círculo virtuoso de crescimento”; em 22 anos, somente a primeira parte desse programa foi realizada: os salários foram mantidos artificialmente baixos, apesar do nível de qualificação dos trabalhadores, e os impostos e os direitos de alfândega erradicados para atrair investimentos estrangeiros. Mas – e é aí que a teoria desaba – a espiral que resultou dessas restrições nunca foi “virtuosa”. Ainda há vinte anos, até mesmo os partidários desse contestável “modelo de desenvolvimento” esclareciam que ele só poderia dar frutos “com a condição de que o clima fosse realmente favorável e seguro para os investidores”.2
Só que a Grande Ilha, de segura, não tem nada. Palco de uma primeira revolução em 1972, Madagascar não parou de ser chacoalhada por crises políticas e transições sem fim. Em 1991, a população desceu às ruas para expulsar o ditador Didier Ratsiraka, no poder havia dezesseis anos. Em 2002, o mesmo Ratsiraka, de volta ao palácio presidencial pelas urnas seis anos antes, foi novamente forçado ao exílio pelos partidários do empresário Ravalomanana. No fim de uma quase guerra civil, o “rei do iogurte”, como era apelidado o patrão do grupo agroalimentar Tiko, acabou conseguindo se impor. Mas, efetivamente eleito em 2006, ele teve por sua vez de tomar o caminho do exílio em 2009, deposto pelo jovem Rajoelina, cujo percurso de empreendedor e político é espantosamente semelhante ao seu.3
De crise em crise – 1972, 1991, 2002, 2009 –, a vida parece cada vez mais difícil. Comparado à população, que passou de 7,6 milhões em 1975 para mais de 20 milhões hoje, o crescimento continua negativo. O produto interno bruto per capita diminuiu 1,6% por ano em média, entre 1975 e 2003. E durante os períodos de recuperação econômica, entre 2003 e 2008, por exemplo, o destino da população não melhorou. Três quartos dos malgaxes (76,5%) vivem ainda abaixo da linha da pobreza: 464.800 ariary, ou seja, R$ 360 por pessoa, por ano. Madagascar é “um país com duas velocidades”, constata um relatório do Banco Mundial publicado em junho de 2010, “onde uma minoria está integrada aos circuitos de decisão econômica e política, ao passo que a maioria da população permanece a distância”.4
Assim, enquanto um punhado de privilegiados se fecha nos bairros privados da capital sob a proteção de arames farpados e companhias de segurança, os outros se apertam ainda mais − uma sobrevivência que se tornou ainda mais difícil desde 2009, já que os preços dos produtos de primeira necessidade – os “PPN”, como são chamados – não param de aumentar. Nesse clima, enquanto 200 mil empregos desapareceram desde março de 2009,5 os raros trabalhadores do setor formal que ainda têm um salário, por mais irrisório que seja, são considerados privilegiados.
“Estamos nos afogando”, reconhece José, ao volante de seu barulhento e velho carro nas ruas de Antananarivo. Antigo chefe de obras em uma empresa de construção, ele foi demitido nas semanas que se seguiram à chegada de Rajoelina ao poder. Então se tornou motorista de táxi. “Na época, ganhava 1,5 milhão de FMG (R$ 237)”,6 conta, amargurado. “Agora, é minha mulher quem me sustenta.” O depoimento de Ginah, de 30 anos, ilustra ainda mais dramaticamente essa descida ao inferno. Solteira, sem filhos, essa lavadeira deve cuidar de quatro sobrinhos. Suas duas irmãs, ela nos explica com voz doce, literalmente evaporaram depois de ser demitidas das empresas da zona franca de Antananarivo − como os fantasmas de Mklen em Antsirabe. Quanto a seu irmão, cansado de procurar um trabalho fixo, preferiu se alistar no Exército – sem salário, mas com teto e comida – a encalhar no infernal “setor informal”. Com quatro bocas para alimentar, Ginah se endivida junto ao proprietário de sua casa e afunda na miséria.
Assim funciona a promissora “espiral” dos economistas. “Constata-se um aumento do desemprego e do subemprego e principalmente uma explosão do setor informal de subsistência, uma diminuição drástica do poder de compra dos trabalhadores e um crescimento das desigualdades. Os resultados obtidos em matéria de redução da pobreza ao longo dos últimos anos foram apagados e até mesmo invertidos.”7
Difícil na cidade, a situação não é melhor no campo, sublinha Olivier de Schutter, relator especial das Nações Unidas para a Alimentação: “35% da população rural passa fome e cerca de 50% está vulnerável à insegurança alimentar”.8
Indignados com o poder
Quem é responsável por essa situação? Para José, o ex-chefe de obras, são os “criadores de problemas”, os que expulsaram Ravalomanana em 2009, os culpados. “Não foi o povo que fez a revolução, mas os homens de negócios que o antigo presidente tinha deixado de lado.” Para reforçar seu argumento, ele explica que os manifestantes tinham sido pagos, bairro por bairro, para fomentar problemas e queimar as lojas Tiko, emblema do império industrial de Ravalomanana.
Mas, mesmo que o dinheiro tenha tido um papel não negligenciável nas manifestações de 2009, os sinais de rejeição popular eram muitos nos meses precedentes à deposição de Ravalomanana. Confundindo os interesses de Estado com os de seu conglomerado, o antigo presidente tinha contra si uma fração crescente da população.9 A eleição em dezembro de 2007 de Rajoelina para a prefeitura de Antananarivo, contra o candidato da presidência, foi o prenúncio da desgraça. Mas o patrão da Tiko recusou qualquer concessão e multiplicou seus erros políticos, transformando Rajoelina em um rival em que se podia acreditar. “Ravalomanana não ouvia nada”, conta Jean-Eric Rakotoarisoa, professor de Direito Constitucional e vice-presidente da Universidade de Antananarivo. “Foi por isso que as pessoas o abandonaram e permitiram que Rajoelina fizesse o que fez.”
Se ele soube explorar os erros de seu adversário, começando pelo projeto, que provocou muito barulho, de ceder 1,3 milhão de hectares de terras para o grupo coreano Daewoo, Rajoelina não parece gozar de maior popularidade que seu predecessor na véspera de sua queda. Mesmo entre seus partidários, o principal mérito que lhe dão, e frequentemente o único, é o de ter deposto Ravalomanana…
É preciso dizer que o jovem presidente – ele tem 37 anos – não parece mais querer romper com as práticas do passado. Rajoelina e suas equipes aproveitam até diretamente das práticas lançadas pelo governo precedente. É o caso de um contrato de US$ 100 milhões assinado no fim de 2009 entre o Estado malgaxe e a companhia chinesa Wisco para a prospecção de depósitos de ferro de Soalala na costa ocidental. O maior obscurantismo reina nesse caso, nota o International Crisis Group (ICG): “Esse tipo de entrada financeira, apresentada como uma dádiva para o país, também o é para a elite política no poder”.
Com as mesmas práticas se reproduzindo de um presidente a outro, é o conjunto da classe dirigente que é desacreditado pela população. Essa tendência antiga se acentuou depois da reintrodução, graças à crise, de todos os antigos presidentes no jogo político: Didier Ratsiraka (1975-1993 e 1996-2001), Albert Zafy (1993-1996), Marc Ravalomanana (2002-2009) e Andry Rajoelina (desde 2009) foram efetivamente solicitados pela “comunidade internacional” a entrar num acordo sobre um plano para “sair da crise”. Assim, enquanto os corresponsáveis pelo marasmo “negociam” (e dividem entre si os cargos suculentos), o povo malgaxe, ao qual prometeram eleições em 2009, entende que não tem voz no palanque.
A população de Antananarivo continua vasculhando as manchetes dos jornais expostos nas ruas e tentando entender as negociações que se prolongam interminavelmente sob a proteção da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC).
“Amigos” estrangeiros
Os observadores estrangeiros não ficam atrás em condenar as “elites” malgaxes. Numa síntese edificante centrada na “gestão” dos setores florestal e de minérios, uma equipe do Banco Mundial se entrega assim a uma crítica geral dos meios dirigentes. “Em Madagascar”, explica, “é bem mais fácil para redes pessoais capturar um recurso ou negociar um resultado que lhe seja favorável a curto prazo do que consolidar um sistema público ‘impessoal’ que possa sobreviver às diversas mudanças de dirigentes.”10
Esse chamado à ordem, sem dúvida saudável, oculta, contudo, um aspecto essencial: a interferência contínua dos “parceiros” estrangeiros, e não somente chineses, na gestão do Estado. Não é possível entender as derivas das elites malgaxes se esquecermos que o Estado no qual evoluem foi estabelecido em 1960 pela ex-potência colonial, a França, acusada ainda hoje de se meter nos negócios malgaxes. Para que serve a apologia da “gestão” pelas instituições financeiras internacionais, quando elas orquestram desde o início dos anos 1980 uma liberalização da economia visando precisamente, como nas zonas francas, deixar o poder público sem condições de atingir as empresas privadas?
“A grande responsabilidade do bloqueio político é das elites malgaxes”, analisa Rakotoarisoa, em seu escritório da Universidade de Antananarivo. “Mas existe também uma responsabilidade internacional: os franceses, os norte-americanos e os sul-africanos se lançam numa luta de influências, e isso enquanto diversas minas gigantes começam a ser exploradas e suspeita-se da existência de poços de petróleo.” De fato, ninguém ignora em Madagascar que a França apoia Rajoelina, enquanto os anglo-saxões sempre mostraram muito entusiasmo por Ravalomanana. O que resta, continua Rakotoarisoa, é que uns e outros estarão talvez “condenados a se entender com um adversário chinês cada vez mais ofensivo”.
Thomas Deltombe é jornalista.