Os impactos da pandemia nos territórios indígenas
“O que está na base da história do nosso país, que continua a ser incapaz de acolher os seus habitantes originais – sempre recorrendo a práticas desumanas para promover mudanças em formas de vida que essas populações conseguiram manter por muito tempo, mesmo sob o ataque feroz das forças coloniais, que até hoje sobrevivem na mentalidade cotidiana de muitos brasileiros –, é a ideia de que os índios deveriam estar contribuindo para o sucesso de um projeto de exaustão da natureza.” (Ailton Krenak, Ideias para adiar o fim do mundo, 2019)
Em uma interpretação livre das palavras de Ailton Krenak, definitivamente o Brasil é um país à deriva. Nos últimos 20 anos trilhamos um caminho que nos opôs ao imaginário de igualdade e justiça social que se espera de uma jovem democracia. Ao contrário disso, sedimentamos em solo pátrio a herança histórica e cultural que cristaliza cada vez mais as injustiças contra nossos maiores patrimônios – o povo e a natureza –, sem nenhum discernimento que provoque uma reflexão profunda sobre os paradigmas que enfrentamos atualmente.
Passamos pela pior crise de nossa história sem descansar um segundo sequer, pois a baixa atenção aos fatos correntes nos pressiona a presenciar o futuro sendo decidido sem que tenhamos as condições necessárias para pensar e agir com a inteligência que o momento exige, ou seja, somos tanto atropelados pela tensão instaurada com a emergência pandêmica quanto vilipendiados pelo horror que assola as decisões centrais do nosso país.
Ainda assim, inspirados pelas palavras de Ailton Krenak, Davi Kopenawa Yanomami, Sônia Guajajara e Raoni Metuktire, entre outros, urge superarmos as dificuldades do momento para buscar com todas as forças a sensibilidade necessária para compreender e se posicionar sobre o que talvez venha a ser um ponto marcante em nossa história recente. Trata-se da decisão legal sobre o futuro das demarcações das terras indígenas no país.
A agenda de lutas e resistências encabeçadas pelos povos indígenas e seus aliados na conservação de seus territórios e modos de vida está ainda mais intensificada no contexto da pandemia. Nesse sentido, vale aqui ressaltar o enfoque no caso em questão e o ponto de vista de nossa narrativa sob o viés de patrimônio ambiental (material e imaterial). Não obstante, no mês que marcou o aniversário de nascimento do brilhante geógrafo Aziz Ab’Sáber,[1] os acontecimentos que mobilizaram a causa indígena demandaram que posicionássemos nossas abordagens na centralidade de uma conceituação ressaltada pelo professor Ab’Sáber em sua obra ao tratar do nosso meio ambiente como um patrimônio coletivo.[2] É importante destacar essa posição, pois ela demarca neste ensaio o que se considera que está em risco – nesse caso, explicita que os territórios historicamente habitados pelos povos indígenas não se resumem a uma simples ocupação do espaço, mas são parte integrante do patrimônio do nosso bem comum, assim como contribuem para a manutenção das condições de proteção e qualidade ambiental de que dispomos. Em outras palavras, somos essa natureza que é coletiva e que conta nossa história enquanto memória da terra.
É exatamente com base no caráter coletivo impresso pelo conceito de Ab’Sáber e no entrelaçamento da cosmovisão indígena sobre a natureza que traçamos nossa observação no contexto em que ocorre o caso de repercussão geral. Nossos povos enfrentam não só as peculiaridades do sistema jurídico brasileiro e suas dissonâncias históricas, mas também lutam para superar outro grave problema que assola a soberania de seus espaços de vida.
O enfrentamento à emergência pandêmica tem se revelado extremamente duro aos povos indígenas, sobretudo pela potencial perda de representantes históricos – ou seja, os anciões- que travam a pior luta de sua existência desde o pesadelo da colonização ao ter contato com um vírus tão fatal.
Segundo informações do Ministério Público Federal (MPF), doenças respiratórias são a causa de óbito mais frequente entre os povos indígenas, sendo a principal causa de mortalidade infantil na população. Além disso, o distanciamento social e a paralisação de algumas atividades dos órgãos de proteção aos indígenas têm exposto cada vez mais os povos às incursões de madeireiros e garimpeiros em seus territórios, o que amplia consideravelmente a exposição aos riscos de contaminação pela Covid-19.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) tem realizado um levantamento independente, que monitora o número de casos de Covid-19 nos territórios indígenas. Nota-se uma diferença significativa entre os dados oficiais do Boletim Epidemiológico da Secretaria Especial de Saúde indígena (SESAI) e os dados apresentados pela Apib. No momento de consulta para publicação deste artigo, havia 38343 casos confirmados de contaminação e 867 indígenas mortos pela Covid-19.
Isso é uma emergência: as mortes dos anciões pela pandemia e a nefasta tese do marco temporal
A gravidade da emergência ocasionada pela Covid-19 impõe uma forte correlação entre as terras indígenas (TI) e a exposição às desigualdades espaciais que vulnerabilizam principalmente os mais idosos. Um estudo recente do Núcleo de Estudos de População “Elza Berquó”, da Universidade Estadual de Campinas (Nepo-Unicamp),[3] indica que há uma chance real de a pandemia acometer os mais idosos e isso remete a uma perda significativa dos anciões, por considerar fatores básicos inerentes aos cuidados com relação à contaminação, como acesso à rede esgoto e água tratada e a existência de leitos de unidade de terapia intensiva (UTI), entre outros aspectos estruturais relacionados à rede de saúde indígena, como demonstra o gráfico a seguir:
Terras indígenas com índice de vulnerabilidade demográfica e infraestrutural crítica, segundo os componentes do índice.
Fonte: Azevedo et al., 2020.
Com base nas informações trazidas pela Apib e pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), destaca-se que um dos principais impactos causados pela pandemia da Covid-19 nos territórios indígenas foi o número de anciões acometidos pela doença. A perda irreparável dessas mulheres e desses homens é uma dor imensa que as comunidades indígenas no Brasil precisam enfrentar. Para a tradição dos povos originários, as anciãs e os anciões simbolizam a sabedoria do tempo, por isso são sagrados e singulares em seus conhecimentos.
As anciãs e os anciões desempenham papéis fundamentais na liderança das comunidades, onde ensinam seus modos próprios de vida e de organização territorial. Os mais jovens aprendem com os mais velhos a preservar as diferentes vidas que habitam seus territórios. Tudo isso é repassado por meio dos cânticos sagrados, das formas de reconhecimento das plantas e dos animais. A sabedoria é compartilhada com palavras e gestos, os saberes transbordam dos ritos, das danças, dos cantos e demais ensinamentos culturais. Dessa forma, por meio da sabedoria tradicional, os mais jovens podem conhecer a sua ancestralidade. Nesse sentido, os anciões são portadores de memórias e saberes que expressam, na prática cotidiana da comunidade, o vínculo ancestral com a terra.
Desse ponto de vista, os anciões representam a memória-viva e encarnada das histórias e dos significados do território originário. A rememoração dos indígenas mais velhos[4] apresenta-se como condição fundamental para a sobrevivência dos saberes geográficos dos territórios e para a preservação das línguas, das histórias das resistências ancestrais, das sabedorias medicinais e de tantas outras – por isso mesmo são considerados bibliotecas-vivas do conhecimento dos povos originários.[5]
A dimensão do impacto da pandemia na vida desses povos[6] é tão profunda que a morte dos anciões eleva o risco do desaparecimento de muitas línguas originárias. Exemplo disso é a morte do ancião e liderança Aritana Yawalapiti [7] do Território Indígena do Xingu, aos 71 anos, por Covid-19. Ele era um dos poucos falantes e conhecedores das línguas yawalapiti e kamayurá; assim, a perda de Aritana agrava a situação da sobrevivência da cultura da comunidade e as línguas ficam ameaçadas de desaparecer.
Integrados a esses saberes tradicionais, os anciões e as anciãs representam a herança de séculos de resistência dos povos indígenas na luta travada contra o esbulho permanente de seus territórios. Os povos originários lutam pela vida há mais de 500 anos no Brasil. Ao lado dessa afirmação incontestável, soma-se o fato de que são esses povos os verdadeiros conhecedores e protetores das florestas: eles são responsáveis por preservar 80% da biodiversidade do planeta, por isso, os povos indígenas são os maiores guardiões do nosso patrimônio ambiental. A interação histórica entre os povos originários, a fauna e a flora é herança de um patrimônio que hoje se encontra profundamente ameaçado.
Marcas da resistência: o espaço de luta política no enfrentamento da crise
Além da imensa dor de perder os sagrados anciões, os povos estão sofrendo ataques incessantes contra suas terras, sobretudo do próprio Estado brasileiro que, subserviente aos interesses dos agentes econômicos, se coloca como um “jagunço institucionalizado” para viabilizar as invasões das terras dos povos originários e drenar seus recursos naturais.
A política genocida do governo brasileiro tem por premissa usar todos os meios para impedir as mobilizações sociais que fazem oposição às violações do Estado. A política em curso no país está orientada visivelmente à retirada de direitos dos mais pobres e ao extermínio das populações originárias.
Os ataques contra a vida das populações originárias abarcam desde medidas restritivas ao acesso a água potável, materiais de limpeza, higiene e desinfecção até as manobras nefastas que visam promover violências institucionais contra os povos indígenas e seus aliados, como ressaltado por Cleber César Buzatto (secretário executivo do Cimi).[8] Essas violações são expressas por meio de ataques públicos e caluniosos do atual presidente e de outras autoridades contra lideranças indígenas, organizações não governamentais (ONGs) e movimentos sociais. O discurso de ódio criminaliza lideranças indígenas, organizações indigenistas e ambientalistas, fazendo com que o Brasil se apresente como um dos países mais perigosos para aqueles que lutam pela vida e pela preservação ambiental.
Além disso, as inúmeras artimanhas jurídicas para promover a colonização ideológica e o fundamentalismo religioso dos povos têm sido agravantes no cenário pandêmico. A respeito desse último ponto, a Apib denuncia a invasão de “missionários” nas aldeias, rompendo as barreiras sanitárias, o que eleva ainda mais o risco de propagação do coronavírus no interior das comunidades.
As lideranças indígenas realizam denúncias constantes, dentro e fora do país, sobre a devastação ambiental causada pelos incêndios criminosos das florestas e pela exploração mineral de suas terras. O mesmo pode-se dizer em relação às ações ilegais e criminosas na promoção de arrendamento e loteamento de terras indígenas, que resultam em um desastroso desmatamento para as pastagens e para a formação de unidades de produção, de modo especial em Rondônia, Amazonas, Pará e Maranhão. Como escreve Buzatto: “por meio do uso da força política, econômica e bélica, invasores vêm se estabelecendo dentro de terras indígenas devidamente regularizadas, até então na posse pacífica de povos indígenas”.
Os desdobramentos da repercussão geral em meio à crise da Covid-19
No estado de Santa Catarina, a decisão sobre a demarcação da Terra Indígena Ibirama-Laklanõ[9] é um exemplo dos processos de espoliação a que os territórios estão submetidos. As reintegrações de posse dos territórios indígenas trazem à cena para a sociedade brasileira os direitos originários dos povos indígenas sobre suas terras e coloca a ênfase nos riscos relacionados ao futuro dos povos originários neste Brasil atual.
O caso é emblemático e por isso está no centro das atenções. O que está em pauta no Supremo Tribunal Federal (STF) é a “repercussão geral” decorrida do caso da disputa de terra do povo Xokleng, conhecido como RE (Recurso Extraordinário) 1.017.365, que tramita como pedido de reintegração de posse motivado pelo Instituto do Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina (IMA). Esse é um mecanismo do julgamento que permite ao STF estabelecer uma interpretação definitiva acerca do reconhecimento de terras indígenas.
É provável que após as eleições municipais de novembro o STF deva retomar o julgamento de repercussão geral, que representa o embate ideológico entre o caráter originário dos direitos territoriais dos povos indígenas e a tese de “marco temporal” defendida pelos setores produtivos interessados na degradação do patrimônio ambiental brasileiro.
As alterações legislativas para driblar os procedimentos de demarcação de terras indígenas são os meios pelos quais os agentes econômicos, em especial a bancada ruralista, colocam em marcha sua necropolítica. Como exemplo disso citamos a nefasta e ilegítima tese do “marco temporal”. Essa tese pressupõe uma jogada jurídica a fim de atacar a Constituição Federal de 1988 (CF) no que tange aos avanços dos direitos dos povos originários. O que se pretende é arruinar as estruturas constitucional e administrativas que garantem as medidas protetivas de aproximadamente 305 nações indígenas que existem no Brasil.
Podemos exprimir que o “marco temporal” é o maior exemplo disso porque ele anula o processo de demarcação de terras e viola os direitos indígenas ao determinar que apenas as terras ocupadas até o período da promulgação da CF seriam passíveis de demarcação, ferindo o direito à terra daqueles povos que há décadas lutavam para terem seus direitos assegurados por lei.
A tese do “marco temporal” tem como consequência a invalidação das demarcações de terras indígenas, o que resulta na continuidade das violências institucionais e na negação de direitos mínimos a esses povos – uma questão que não surgiu apenas nesse período, mas advém de um processo histórico que é, sobretudo, de caráter excludente. O que está em disputa no STF é a decisão sobre a maneira de interpretar os artigos 231 e 232 da Constituição Federal de 1988, pois as tomadas de decisões em um julgamento a respeito de determinada etnia podem significar consequências para todos os povos indígenas do Brasil que lutam historicamente pelos seus direitos.
Em 2020 a Constituição Federal completa 32 anos, isto é, pouco mais de três décadas de reconhecimento dos direitos indígenas. No entanto, o direito originário continua sendo negado a cada processo de reintegração de posse em seus territórios. Nessa direção, é importante que se diga que a CF de 1988 não criou os direitos territoriais para os povos indígenas, ela apenas os reconhece juridicamente, com base na tese do “indigenato”, ou seja, a concepção na qual os territórios indígenas estão assegurados pelo direito originário, tendo como base a Lei Alvará Régio, de 1º de abril de 1680, na qual Portugal reconheceu que se deveria respeitar a posse dos índios sobre suas terras, por serem eles os seus primeiros ocupantes e donos naturais. A lei foi utilizada posteriormente pela CF de 1988 para endossar, reconhecer e legitimar o direito originário dos povos indígenas sobre suas terras. Porém, essa mesma Constituição que “garante” esses direitos é manobrada política e juridicamente para cometer atrozes violências contra os povos.
O estabelecimento do “marco” é inconstitucional e fere frontalmente os direitos indígenas. A tese ignora o fato de que os povos indígenas lutam há séculos por suas terras e, portanto, sua história começa muito antes 1988. Ressaltamos que a tese do “marco temporal” tem como consequência a invalidação das demarcações de terras indígenas, o que resulta na continuidade das violências sofridas e na negação dos direitos dos povos. Podemos afirmar que um critério ou um marco temporal não pode ser limite para o direito à terra, como bem colocado pelo artigo “A memória da terra: o que o marco temporal não pode apagar”.[10]
É importante dizer que na história existiram diferentes leis indigenistas que buscaram o estabelecimentos da posse territorial indígena, bem como regular o uso da força de trabalho desses povos. Como exemplo citamos a Lei de Burgos, de 1512 (a primeira legislação indigenista internacional); a Lei Alvará Régio, de 1680, já citada; e as leis dos Directórios dos Índios, estabelecidas pela Coroa portuguesa no século XVIII. O ponto comum entre elas é que “nenhuma pessoa, comunidade ou organização indígena tomou parte dos debates ou foi sequer formalmente consultada”.[11]
Nesse ínterim, a CF de 1988 expressa uma pequena exceção no prolongamento dessa história, pois contou com a ativa participação das lideranças indígenas na construção democrática da Constituição. Aponta-se que os artigos 231 e 232 são de importância vital para a garantia da sobrevivência dos povos. Assim, ao reivindicar o direito originário da terra, os povos indígenas nos dão a chance de lutarmos para reverter essa história de massacre e violência.
Proteger nosso patrimônio é proteger nossa História
Diante desse contexto, abordar a gravidade da votação em curso no STF denota a importância do tema, sobretudo com o risco de uma decisão que venha a comprometer os territórios indígenas, já afetados pela pandemia, ao expor nossos povos a uma tensão de teor etnocida e genocida. O que está em jogo é o patrimônio ambiental brasileiro e a cultura dos povos originários em detrimento dos interesses de agentes econômicos que notadamente ampliam os riscos já identificados como sendo críticos no contexto da pandemia.
É nosso dever coletivo provocar o debate à luz do momento atual. A emergência da pandemia exige um olhar crítico sobre as motivações para uma votação tão importante ocorrer em um momento de ausência das condições necessárias para os povos indígenas serem ouvidos e representados. Diante da necessidade do isolamento social, evidenciam-se as potenciais incongruências que podem ocorrer nesse processo.
Trata-se aqui de observar o caso com lentes sensíveis ao fato histórico sobre o qual a problemática se desenrola. Não devemos perder de vista os estragos já causados pela pandemia, e as possíveis consequências de uma decisão a favor da tese do marco temporal que devem contribuir decisivamente para comprometer ainda mais o futuro dos nossos povos originários. Portanto, é uma emergência o aprofundamento da mobilização pela vida dos povos originários. A mobilização precisa ser permanente e o primeiro passo a ser dado é garantirmos o reconhecimento de que a história dos povos indígenas, tão sabiamente carregada pelos anciões, não começa em 1988 – tampouco começou quando os colonizadores invadiram seus territórios.
Assim como Ab’Saber evoca o bem comum ao tratar o patrimônio ambiental brasileiro como algo em prol de toda sociedade, enfatizamos a importância e a obrigação do dever coletivo de zelar pela garantia dos direitos dos povos originários e apoiar a luta travada bravamente por seus representantes. Lançamos mão das perguntas inquietantes de Krenak ao nos provocar sobre “Como os povos originários do Brasil lidaram com a colonização, que queria acabar com o seu mundo? Quais estratégias esses povos utilizaram para cruzar esse pesadelo e chegar ao século XXI ainda esperneando, reivindicando e desafinando o coro dos contentes?”. Aventuramo-nos à digressão de responder com as palavras de Sônia Guajajara, quando questionada sobre as mudanças climáticas e seus efeitos irreversíveis: “O princípio ativo para reverter as mudanças climáticas é a consciência humana. A vacina para essa mudança é a conexão com a Mãe Terra”.
A partir dessa ótica, fazemos preces para que a perda dos anciões originários seja o prenúncio de uma vitória capaz de transcender nossas fronteiras culturais. Que os ensinamentos das histórias que nos contaram sejam nossa inspiração protetora em tempos de Covid-19, assim como na cosmovisão, em que compartilhamos nossos contatos com espíritos protetores da floresta e dos sonhos – ajudando a evidenciar que os povos originários são nosso maior patrimônio, pois o espaço de vida deles é nosso bem maior e não devemos permitir que a terra em disputa seja mais uma vez subtraída por regras contemporâneas de desconexão entre o natural e o real.
Por fim, que a luta contra o marco temporal seja símbolo de resistência e superação dos mais jovens, que substituirão seus ancestrais no embate crítico e consciente entre o mundo das leis e o sentido de existência e soberania dos povos originários. A luta dos povos indígenas nos desafia a ressignificar a luta de toda nossa sociedade, pois luta-se contra um vírus, contra o domínio e contra as injustiças a cada geração. A luta não cessa nunca!
Danilo Santos da Silva é mestre em Geografia pela Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista.
Jessica Aparecida Corrêa é mestranda em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo.
Karinne Wendy Santos de Menezes é doutoranda em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
O texto foi construído a partir do trabalho coletivo dos pesquisadores e da participação no Grupo de Trabalho (GT) Geografia e Covid-19 da Universidade de São Paulo (USP).
[1] Nascido em São Luís do Paraitinga, em 24 de outubro de 1924.
[2] “Todos que iniciam no conhecimento das ciências da natureza, mais cedo ou mais tarde, por um caminho ou por outro, atingem a ideia de que a paisagem é sempre uma herança. Na verdade, ela é uma herança em todo o sentido da palavra: herança dos processos fisiográficos e biológicos, e patrimônio coletivo dos povos que historicamente as herdaram como território de atuação de suas comunidades” (AB’SÁBER, A. N. Os domínios de natureza no Brasil: potencialidades paisagísticas. Cotia: Ateliê Editorial, 2003. p. 9).
[3] AZEVEDO, M. et al. Análise de vulnerabilidade nas terras indígenas à Covid-19. Caderno de Insumos, Campinas, 17 abr. 2020. Disponível em: https://bit.ly/3jLqH8A. Acesso em: 24 out. 2020.
[4] O conceito de rememoração é trabalhado por Walter Benjamin quando discute as teses sobre o conceito de história e apresenta a tradição dos oprimidos na luta contra a “barbárie do progresso e da civilização” do sistema capitalista. Consultar em especial o capítulo de Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história (2012).
[5] As lives promovidas pela Apib em agosto de 2020 foram resultado de uma mobilização nacional e internacional para salvar vidas durante a pandemia da Covid-19. O material gerou diferentes episódios. Destacamos o terceiro, que traz o tema da Ancestralidade. O vídeo é esclarecedor sobre o estrondoso impacto da morte dos anciões nos territórios indígenas no contexto da pandemia. Disponível em: https://bit.ly/34SfBua. Acesso em: 24 out. 2020.
[6] Na página oficial da Apib é possível acompanhar informações atualizadas diariamente sobre o Panorama Geral da Covid-19 e o impacto nas comunidades indígenas. No dia 17 de outubro de 2020 registrava-se o triste cenário de 36.847 casos confirmados, 852 indígenas mortos pela Covid-19 e 158 povos afetados.
[7] A liderança Aritana tinha ascendência yawalapiti e kamayurá e falava dez línguas, de pelo menos três troncos linguísticos diferentes. Para mais informações, consultar o artigo “Morte de anciãos na pandemia pode fazer línguas inteiras desapareceram”, de Leticia Mori. Disponível em: https://bbc.in/327k5LU. Acesso em: 24 out. 2020.
[8] Em artigo escrito para a Le Monde Diplomatique em janeiro de 2020. Disponível em: https://bit.ly/2HRMUoG. Acesso em: 24 out. 2020.
[9] A comunidade indígena Xokleng localiza-se na TI Ibiramala Klaño, em Santa Catarina. O território Xokleng foi reduzido ao longo do século XX e os indígenas nunca deixaram de reivindicar a posse da área. Os estudos antropológicos realizados pela Fundação Nacional do Índio (Funai) comprovaram que a área compõe o território tradicional do povo e o Ministérios da Justiça já havia declarado o pertencimento do território aos Xokleng.
[10] “Como insistem os povos indígenas, a história deles não começou em 1988, e tampouco terminou lá. Parece tratar-se exatamente do contrário: ao proteger ‘seus usos costumes e tradições’ e seus direitos originário sobre as ‘terras que tradicionalmente ocupam’, a Constituição celebra a resistência dos indígenas, reconhecendo os efeitos desastrosos da política de colonização, rompendo com o paradigma assimilacionista, e garantindo aos povos originários que, para ‘integrar-se’ à cidadania nacional, não lhes seja exigido desintegrarem-se de sua condição indígena. A terra é justamente parte fundamental do direito à diferença. Trata-se de uma promessa de futuro que celebra a pluralidade constituinte do país, como afirmação e positivação das diferenças constitutivas da nacionalidade”. Artigo escrito para a Le Monde Diplomatique.
[11] Consultar o texto de André Lopes Lasmar “Legislação indigenista internacional: da Lei de Burgos de 1512 ao sistema Onusiano de Direitos Humanos”, disponível no livro Índios no Brasil: vida, cultura e morte (São Paulo: Intermeios, 2018).