Os medos do ano 2000
Algum dia, os historiadores da mente humana irão se perguntar sobre os medos do ano 2000. Descobrirão que já não eram, como antes, de ordem política ou militar, mas de caráter ecológico. Tanto no que se referem ao íntimo, quanto à identidade humanaIgnacio Ramonet
“Na história da vida coletiva”, diz o historiador Jean Delumeau, “os medos mudam, mas o medo continua.” [1] Até o século XX, as infelicidades humanas tiveram como principais causas a natureza, as intempéries, a devastação, a penúria, assim como os flagelos como a peste, a cólera, a tuberculose e a sífilis. O homem antigo vivia num meio constantemente ameaçador. A infelicidade o rondava dia a dia.
A primeira metade do século XX foi marcada pelo horror de duas grandes guerras, a de 1914-1918 e a de 1939-1945. Morte em escala industrial, destruição em massa, campos de deportação e de extermínio. Na França, como na Europa Ocidental, a segunda metade deste século que termina caracterizou-se por uma diminuição progressiva dos conflitos armados e pelo aumento de uma prosperidade quase geral. As condições de subsistência melhoraram espetacularmente. A expectativa de vida foi elevada a um nível jamais alcançado no passado.
Progresso a serviço do lucro
Algum dia, os historiadores da mente humana irão se perguntar sobre os medos do ano 2000. Descobrirão que já não eram, como antes, de ordem política ou militar (conflitos, guerras, horror atômico), e sim de caráter ecológico (agressões à natureza, transtornos do meio ambiente). Tanto no que digam respeito ao íntimo (saúde, alimentação), quanto à identidade (procriação artificial, engenharia genética).
Esses novos medos — especialmente com relação à doença da “vaca louca” e dos organismos geneticamente modificados (OGM) — nascem de uma decepção, de um desencanto provocado pela evolução tecnológica. A utilidade do progresso científico deixa de ser uma evidência. Isso, na medida em que esse progresso foi absorvido pelo setor econômico e grandemente instrumentalizado por empresas essencialmente ávidas de lucros. A confusão entre o interesse público e os interesses industriais resultou num saldo demasiadas vezes favorável a estes últimos. A onda do neoliberalismo, a adoração do mercado, o ressurgimento de situações de grande precariedade e a volta de grandes desigualdades sociais reforçaram ainda mais, nos últimos vinte anos, o sentimento de que o progresso tecnológico traiu a sua promessa de melhorar o destino de todos.
Um novo tipo de desconfiança
Todos pudemos constatar que as instituições (parlamento, governo, técnicos) que deveriam garantir a segurança faltaram, repetidas vezes, à sua missão. Mostraram imprudência e negligência. Além do que, os responsáveis pelas decisões habituaram-se a comprometer os destinos coletivos sem antes ouvir os interessados, os cidadãos. O pacto democrático foi alterado. [2]
Conseqüências: uma suspeita obsessiva introduziu-se de forma sistemática nos espíritos, uma recusa crescente em delegar aos “responsáveis” pelo poder o compromisso do destino coletivo, autorizando práticas baseadas em inovações científicas arriscadas, insuficientemente examinadas. Um novo tipo de desconfiança que visa aos aprendizes de feiticeiro do neo-cientismo.
Uma trágica incompetência
Assim como revelações espetaculares, com relação a alguns tipos de “flagelo silencioso”, vieram provar, a posteriori, a trágica incompetência das autoridades e dos técnicos. Não só no caso do sangue contaminado, mas no do amianto, que provoca hoje, na França, a morte de cerca de 10 mil operários por ano. Ou o caso das infecções hospitalares, contraídas durante a permanência no hospital, e que são responsáveis por 10 mil óbitos por ano (número que supera o de mortos em acidentes automobilísticos, que foi de 8.487 em 1999). Ou o caso da poluição do ar — devido, em 60%, ao transporte rodoviário —, que, segundo dados recentemente divulgados, provoca o assombroso número de 17 mil óbitos prematuros por ano na França. [3] Ou ainda o caso da dioxina, produto cancerígeno emitido por incineradores de lixo doméstico, que causa de 1.800 a 5.200 mortos por ano. [4]
O “risco aceitável”
Basta ler o relatório divulgado a 26 de outubro de 2000 na Grã-Bretanha, de uma investigação sobre um surto de encefalopatia espongiforme bovina (BSE), para compreender a atual desconfiança das sociedades européias com relação à carne bovina. Medidas que constituem verdadeiras aberrações, com o aval de “especialistas”, foram tomadas ao arrepio das leis da natureza [5] e dos princípios mais elementares de precaução. Sucederam-se a mentira e a dissimulação, quando se tornou evidente que a doença atingia, e se propagava, a seres humanos. Os adiamentos, os logros e os desmentidos, assim como a atitude irresponsável por parte das autoridades, não podiam senão levar a opinião pública britânica a se sentir ludibriada. Uma vez que o comportamento das autoridades, no restante da Europa, não foi essencialmente diferente, por que então não deveriam os cidadãos dos diversos países demonstrar a mesma desconfiança? E no caso da França, especificamente, quando se constata que, com relação aos OGM, alguns tipos de milho transgênico tiveram sua comercialização autorizada.
Não existem, portanto, os ideais de “segurança absoluta” ou de “risco zero” para os cidadãos, legitimamente preocupados com a prioridade quase sempre concedida pelos poderes públicos a grupos econômicos e egoísmos corporativistas, em detrimento do bem comum e do interesse geral. Não deveria, a definição de risco aceit?
Ignacio Ramonet é jornalista, sociólogo e diretor da versão espanhola de Le Monde Diplomatique.