Os novos modelos do capitalismo
Cresce, no Brasil, a pressão por mudanças no sistema nacional de relações de trabalho, seguindo tendências internacionais. Isso significa perda ainda maior de direitos para os trabalhadoresClaudio Dedecca
Há um processo de mudança no cenário internacional e também no Brasil, principalmente no que concerne aos sistemas nacionais de relações de trabalho. Há quase vinte anos, diversos países capitalistas vêm conhecendo alterações nesses sistemas. Apesar deste longo período de mudança, continua-se acusando os sistemas nacionais de relações de trabalho de serem pouco flexíveis e responsáveis pelos problemas de emprego.
O período de crescimento do pós-guerra, que vai de meados da década de 50 ao final dos anos 70, representa quase duas décadas de crescimento sustentado. Ao longo destes anos, foram montados, no ocidente, sistemas de relações de trabalho mais democráticos, que permitiram maior controle dos trabalhadores sobre o uso de sua força de trabalho.
O controle sobre o trabalho
De meados dos anos 70 até hoje, a tendência vem sendo de desmonte progressivo daqueles sistemas. A principal característica de mudança é a transferência do controle do uso do trabalho, do espaço público para o privado.
No período de crescimento do pós-guerra, a principal característica do mundo do trabalho foi a geração de emprego, mas também a redução do poder das empresas de controlar o uso do trabalho, tendo se transferido esse controle para o espaço social. Esse deslocamento teve duas características. Em primeiro lugar, um maior domínio dos trabalhadores sobre as negociações coletivas, crescentemente setoriais e nacionais. Em segundo lugar, uma ampliação da ação do Estado, no sentido de coibir o uso depreciativo da força de trabalho por parte das empresas.
Do social para o privado
Chamamos isso de processo de socialização das relações de trabalho. Trata-se de um processo que reduziu o caráter privativo das relações de trabalho, isto é, que minimizou o espaço de construção destas relações no interior das empresas. Cada vez mais as relações de trabalho foram sendo determinadas no espaço social pelas negociações coletivas e pelo Estado.
Esta foi uma característica marcante do pós-guerra. A grande exceção foi o Japão, que manteve o controle das relações de trabalho no interior das empresas, graças à repressão ao movimento sindical, que o governo japonês impôs na primeira metade dos anos 50, garantindo a elas a construção própria das relações de trabalho.
Nos últimos 20 anos, o espaço regulação das relações de trabalho está se transferindo do social para o privado. De maneira crescente, vai se reconstruindo o poder das empresas sobre a determinação das relações de trabalho diretamente com seus trabalhadores, em várias situações com a presença dos sindicatos.
Baixo crescimento e desemprego
De maneira progressiva, verificamos que perdem importância os contratos e acordos coletivos nacionais por setor e ganham importância os acordos por empresa, que vão se moldando às necessidades de cada uma delas. Não são mais as empresas que se adaptam às características gerais do uso do trabalho. Ao contrário, os contratos e acordos de trabalho estão se moldando às características específicas de cada uma das empresas.
Essa é a tendência das relações de trabalho no cenário internacional. Na grande maioria dos países, amplia-se a importância dos contratos e acordos coletivos realizados nas empresas. Observamos, entretanto, que o maior poder da empresa sobre os sindicatos e sobre o mercado de trabalho ocorre graças ao baixo crescimento econômico e ao aumento do desemprego.
Os novos modelos
Atualmente, o trabalhador que consegue manter o posto está, de maneira permanente, com o revólver do desemprego na cabeça. As empresas, face à ameaça constante do desemprego, têm um poder imenso de pressão sobre os trabalhadores. E estes pressionam também os sindicatos para que, cada vez mais, firmem acordos no âmbito das empresas, rompendo com o padrão de organização setorial e nacional que prevalecia anteriormente.
Qual a característica principal destes acordos? Pode-se afirmar que há uma tendência de “japoneização” das estruturas nacionais e das relações de trabalho. Os modelos norte-americano e japonês prevalecem. Eles ampliam os acordos coletivos por empresa e reduzem a importância dos acordos nacionais. Alguns países, como a Alemanha e a Suécia, fugiram mais fortemente desse processo. Mesmo assim, os acordos por empresa cresceram de maneira substantiva em ambos os países.
O que muda com esses acordos ? Muda muito. É óbvio que a situação está cada vez mais difícil, mas qualquer pessoa, quando vai acertar um emprego, quer saber: o que eu vou fazer? Por quanto tempo eu vou trabalhar? Qual a minha jornada de trabalho? E quanto vou receber pela função que realizo? São as três coisas básicas. Afinal de contas, não é trabalho escravo. Talvez até estejamos chegando próximo disso, mas ainda existe uma certa característica geral dos contratos de trabalho que faz com que cada um de nós pergunte: o que eu vou fazer, por quanto tempo e quanto receberei?
O padrão do pós-guerra foi permitindo que estas características básicas — o que fazer, por quanto tempo e por quanto — fossem, de maneira crescente, determinadas pelos acordos coletivos setoriais e nacionais e pela ação pública. Qual é, então, a característica nova que emerge dos novos contratos e acordos de trabalho feitos com as empresas? A novidade está em que estes três elementos são crescentemente determinados pela especificidade da relação construída junto à empresa.
Funções polivalentes
Não é à toa que nesses últimos anos apareça a idéia de trabalho polivalente. É uma adaptação no uso das funções do trabalho às determinações da empresa. O banco de horas é uma adaptação do uso da jornada de trabalho às necessidades específicas da empresa. E a participação nos lucros nada mais significa do que a adaptação da remuneração ao padrão de cada uma das empresas. Essas mudanças aparecem mais recentemente nos países desenvolvidos — na Europa e nos Estados Unidos. No Japão, aparecem na primeira metade dos anos 80.
Em todos os acordos coletivos, as empresas pressionam para que os acordos se dêem por empresa, para que sejam flexibilizadas as funções do trabalho pela polivalência, a jornada de trabalho pelo banco de horas, e a remuneração pela participação nos lucros.
O significado disso é a internacionalização de toda forma de utilização do trabalho no interior das empresas, ampliando a utilização privada das relações de trabalho.
O cenário brasileiro: sistema frágil
A cada novo momento de ampliação do desemprego, as empresas exigem uma nova flexibilização das relações de trabalho, no sentido de se reapropriarem do controle do uso do trabalho em detrimento da esfera pública, dos sindicatos, da política pública do Estado.
A experiência brasileira consiste em um sistema de relações de trabalho extremamente frágil. Em grande medida, porque houve momentos em que poderíamos ter montado um controle sindical mais efetivo sobre o uso do trabalho, mas essa ação política foi coibida. O problema é que as nossas estruturas de relações de trabalho foram definidas por uma legislação e um controle público do Estado, montado ainda nos anos 40.
Democratização e sindicatos
Nos momentos decisivos, particularmente na década de 60, quando o movimento sindical desenhava o rompimento com a estrutura sindical e com a forma de estruturação das relações de trabalho prevalecentes no país, houve uma forte repressão. Quando o mercado de trabalho era favorável à estruturação do movimento sindical, um governo ditatorial coibiu a ação do movimento sindical, transformou o sistema de relações de trabalho e deu maior controle do uso do trabalho para o setor privado, para as empresas.
Quando esse governo enfraquece, na segunda metade dos anos 70, também a economia entra num movimento de crise, que joga contra a ação sindical. Os sindicatos só não foram mais fragilizados pela crise porque existia todo um movimento de democratização do País. E a democratização favoreceu a ação sindical.
Nos anos 80, vivemos uma situação de impasse. Ao mesmo tempo em que se avança na questão política, há pouco avanço na regulação formal das relações de trabalho. As reformas estruturais que ocorrem no mundo do trabalho estão inscritas na Constituição de 88, que amarra questões novas a questões antigas, não resolvidas.
Empobrecimento dos trabalhadores
E, mais do que isso, um ano depois de promulgada a Constituição, tivemos a primeira eleição presidencial do País, após o período militar. Nesse momento, definimos os acúmulos da reorganização da sociedade brasileira nos anos 90. É uma eleição que definiu o rumo de enquadramento do Brasil às tendências internacionais. É um enquadramento a uma economia mais aberta, mais financeirizada e que não prioriza o emprego e as questões sociais.
O emprego industrial no Brasil, em 1998, era 50% do emprego industrial de 1989. Os salários, em 1998, eram 30% menores do que os salários de 1989. A participação da massa salarial no produto industrial estava 23% abaixo do que era em 1989.
Isto é, em dez anos, existe um claro empobrecimento dos trabalhadores em termos de emprego, de salário, de participação dos salários no produto industrial.
O desmonte da estrutura produtiva
É nessa conjuntura que devemos discutir a mudança do padrão de relações de trabalho no Brasil. Um padrão em que o mercado de trabalho se deteriora em termos de emprego e de renda. Esse contexto significa um rompimento do tecido industrial, econômico e da estrutura produtiva nacional, marcada tanto pelo desmonte de segmentos importantes da estrutura produtiva quanto pelo processo brutal de internacio-nalização da economia brasileira.
Nessa discussão, alguns exemplos ajudam a entender a violência da mudança. Em três anos, deixamos de consumir o leite “em saquinho” e passamos a consumir o leite “em caixinha”, em embalagem longa-vida. Por quê? Devido às mudanças tecnológicas na produção do leite? Isso é parte da verdade.
Em primeiro lugar, o leite longa-vida permite que a usina de processamento aceite o leite com a variação de Ph muito maior do que o produzido “em saquinho”. Em segundo lugar, a empresa que distribui leite não precisa ter uma frota de caminhões que faça entrega diária. Ela passa com o caminhão uma vez por semana, entrega o leite e não tem que voltar para pegar a caixa.
Internacionalização da economia
Outro dado importante desse processo de substituição deve-se ao fato de que a produção de leite no Estado de São Paulo, que era predominantemente nacional, hoje passa a ser feita principalmente por empresas internacionais — a Parmalat, a Nestlé e outras. A tecnologia empregada pela Parmalat e pela Nestlé não é de leite in natura, é a tecnologia do leite longa-vida.
Esse é o motivo pelo qual houve a transformação do modo de consumir leite no País. Não foi devido à tecnologia, mas à internacionalização do setor. Essa situação se repete em outros setores.
Ao mesmo tempo em que temos uma fragilização dos empregos e dos salários no mercado de trabalho, há um processo de internacionalização da economia. E, esse processo de transformação obriga o setor produtivo e o comércio nacional a constituírem uma rede produtiva, onde a empresa nacional será apenas parte de uma rede internacional.
O governo atual e a perda de direitos
Nestes últimos anos, as empresas vêm demandando uma mudança no padrão de relações de trabalho no Brasil e exigindo a flexibilização do trabalho. Mas é preciso também deixar claro que o mercado de trabalho sempre foi flexível no país. O uso e a alocação do trabalho, bem como a definição de funções do trabalhador, sempre foram prerrogativas das empresas. Os sindicatos nunca conseguiram intervir de maneira mais intensa nesses processos.
À revelia da legislação existente, adotou-se o banco de horas. A flexibilização da jornada de trabalho nada mais é do que uma adaptação, uma forma de gestão da jornada de trabalho própria a cada uma das empresas.
O governo, através de uma medida provisória, legitima a flexibilização do salário com uma regulamentação sobre a participação nos lucros e resultados. Assim, flexibiliza a norma pública de remuneração de trabalho.
Flexibilização dos direitos
Características de mudanças que existiam no cenário internacional chegam ao Brasil num sistema de relações de trabalho profundamente flexibilizado. É essa tendência que observamos nos últimos anos. Dessa forma, proliferam-se os acordos por empresa.
O governo Fernando Henrique Cardoso tem uma proposta no sentido de adaptar a estrutura sindical à realidade de mercado. Na verdade, o Estado não quer a mudança da estrutura sindical, mas sim a flexibilização dos direitos sociais. Quais são esses direitos sociais? São aqueles inscritos no Artigo 7º da Constituição — as férias, a licença-maternidade, o décimo-terceiro salário, enfim todos os direitos que conhecemos bem.
De que forma o governo propõe fazer isso? Ele alega que é necessário adaptar a estrutura sindical ao novo padrão de relações de trabalho que o mercado vem impondo, e que precisamos mudar e dar maior liberdade de negociação aos sindicatos. Portanto, é necessário modificar o Artigo 8º da Constituição. Mas ele diz também que para mexer no Artigo 8º e dar liberdade aos sindicatos de se estruturarem e criarem seu campo de negociação, é preciso dar aos sindicatos o que negociar. Assim, deve-se flexibilizar os direitos sociais que estão inscritos no Artigo 7º , isto é, que o 13º salário, o direito de férias, a licença-maternidade, passassem a fazer parte da pauta de negociação. Dessa maneira, junto com a suposta mudança da estrutura sindical, o que se quer, de fato, é a flexibilização dos direitos sociais no sentido de ampliar o poder das empresas de determinar um padrão de relações de trabalho.
Essa proposta é uma adaptação às demandas das empresas para reduzir