O Brasil é o atual epicentro da pandemia da Covid-19. O isolamento social é inevitável para mitigar o contágio e os óbitos, sobretudo com a grande possibilidade de colapso no sistema de saúde. Enquanto não se controlar o avanço da pandemia, não há como propor a volta à normalidade econômica.
Há grande apreensão e incerteza sobre a profundidade da crise e sua duração. A atuação rápida do Estado é crucial para financiar a saúde, proteção social, emprego, renda, e empresas, arrefecendo os impactos da crise e o aumento da vulnerabilidade socioeconômica. O agravamento da crise, porém, aponta para uma destruição da base de arrecadação tributária. Então, agora não será daí que virão recursos públicos adicionais.
Recentemente, o Secretário do Tesouro Nacional disse que o déficit primário alcançará R$ 600 bilhões (8% do PIB), devido a menor arrecadação e a maiores gastos da União, estados e municípios para enfrentar a pandemia. O ministro da Economia não descartou a emissão monetária para financiar as ações do governo em um cenário mais aterrador (e provável) de desemprego em massa e vasta falência de empresas.
As falas dessas duas autoridades exigem alterações constitucionais. A mudança de ordem fiscal já consta na PEC 10/2020 e suspende a Regra Ouro, o que permite o aumento da dívida pública para custear despesas correntes. Ressalte-se que a PEC 10/2020 só permite o BC a comprar títulos no mercado secundário. Já o financiamento monetário, como já apontado corretamente por vários economistas, é imprescindível no atual momento e depende da mudança do art. 164 da Constituição, autorizando o Banco Central (BC) a comprar títulos diretamente do Tesouro.
Contudo, além dessas duas alternativas, há outra forma mais célere para financiar o Estado, repassando ao Tesouro os recursos dos resultados das reservas internacionais. Esse caminho pode ser viabilizado por meio de lei ordinária, conforme o Projeto de Lei (PL) 2.184/20, protocolado no dia 27 de abril pelo Dep. Paulo Teixeira (PT-SP).
O ganho cambial do BC acumulou mais de R$ 500 bilhões de janeiro a 24 de abril de 2020. Deve-se viabilizar a transferência destes ganhos ao Tesouro. Os recursos ajudarão o esforço do Estado para financiar a saúde, proteção social, emprego e empresas. A proposta não envolve a venda deliberada de reservas internacionais, apenas o uso dos ganhos da operação cambial corriqueira do BC.
Os resultados do BC com as reservas vêm de três meios: (1) venda de dólares para responder à retirada de recursos do país por estrangeiros; (2) Ganho de capital das aplicações das reservas em títulos públicos dos EUA. Com a diminuição dos juros americanos há aumento de valor de mercado dos títulos. Quando o BC vende o título valorizado, ele efetiva o ganho de capital; e (3) Apuração do valor contábil das reservas, que depende da taxa de câmbio, sem que se opere a sua venda. Com a desvalorização cambial, como a atual, o valor contábil das reservas em dólares é majorado em reais.
A Lei 13.820/2019 regra atualmente o resultado cambial. Dentre outras coisas, ela exige que o resultado cambial forme reserva de resultado no BC e que a cada semestre, caso haja repasse do BC ao Tesouro, o recurso seja vinculado ao manejo da dívida pública.

Para somar os ganhos cambiais ao combate à crise, o PL suspende, durante a vigência da calamidade pública, a eficácia da Lei 13.820/19 nos seguintes pontos: (1) o resultado cambial será repassado ao Tesouro e ele será apartado do cálculo do superávit financeiro. (2) A proposta reduz a periodicidade semestral do balanço do BC para mensal, para viabilizar transferências mensais ao Tesouro. (3) E ele permite a transferência do saldo já acumulado em 2020.
A medida tem por virtude oferecer meios ao Tesouro para combater a crise, inclusive com mais poder de ajudar estados e municípios. O ganho cambial é um recurso próprio da União, não decorrente de financiamento via dívida. Ele abre margem para o Tesouro ter maior capacidade de administração fiscal, gerenciando recurso próprio e endividamento, a depender da conjuntura. Assim, a variação da dívida pública com o uso do ganho cambial ocorrerá na fração em que se precisar retirar liquidez no mercado monetário.
As reservas são um patrimônio da União. É obviamente cabível que se usem seus resultados na luta contra a Covid-19. Isso exige, inclusive, que haja repasse a estados e municípios, que são a linha de frente contra a pandemia. Porém, eles não fazem política monetária e sua política fiscal é muito restrita.
O momento atual exige a disponibilidade e a coordenação dos mecanismos de financiamento estatal, com a urgência que a situação adversa requer. A transferência do resultado das reservas internacionais do BC para o Tesouro caminha nesse sentido. Ela não pode ser negligenciada, em especial, por ser passível de ser realizada por meio de aprovação de lei ordinária.
André Paiva Ramos é economista, mestre em economia e professor de Economia. Caio Yamaguchi Ferreira é advogado e professor, doutor em Direito Econômico e Financeiro/USP. Fábio Terra é professor da UFABC e do PPGE-UFU.