Os tentáculos da segurança digital
O Sistema de Informações da União Européia é assustador. Mas os governos querem mais: pretendem integrar ao arquivo central do banco de dados fotografias, impressões digitais, impressões de DNA e dados biométricos de “estrangeiros indesejáveis”Jelle Van Buuren
No bairro de Neuhof, em Strasbourg, um prédio sob vigilância especial, de tipo “antiterrorista”, abriga o computador central do Sistema de Informação Schengen (SIS). As memórias desse provedor informático, pulmão digital da cooperação policial européia, armazenam milhões de informações sobre estrangeiros com permanência proibida na Europa, criminosos procurados, veículos furtados, armas e suspeitos a serem colocados sob vigilância.
A qualquer instante, a partir dos milhares de terminais espalhados pela Europa inteira, as autoridades podem verificar se este ou aquele estrangeiro consta no registro do SIS. Os números mais recentes (do final de 2001) indicavam que o banco de dados Schengen continha mais de dez milhões de registros, dos quais cerca de 15% referentes a pessoas. Uma análise complementar permite concluir que 90% dessas pessoas pertencem à categoria de “estrangeiros indesejáveis”.
Todo estrangeiro será cadastrado
Em 2001, o banco de dados Schengen continha mais de 10 milhões de registros, 15% referentes a pessoas. Destes, 90% são de “estrangeiros indesejáveis”
É difícil avaliar a eficácia do dispositivo: oficialmente, em 1999, o arquivo estabeleceu 54.000 cruzamentos de dados1; a partir dessa data, os Estados membros do acordo de Schengen2 deixaram de publicar relatórios anuais sobre o funcionamento do SIS.
Entretanto, é possível esperar que esses números decupliquem durante os próximos anos. Pois os Estados-Schengen estão planejando, na maior discrição, modificações muito importantes no SIS. Oficialmente, alega-se um crescimento do fluxo de informações – um problema que vai piorar com a adesão de novos membros à União Européia. Mas a modernização do Sistema de Informação Schengen (“SIS-II”, em eurolíngua) não se irá limitar à conexão de mais computadores e discos rígidos capazes de processarem mais dados. Na realidade, a necessidade técnica serve de pretexto para modificações substanciais na capacidade e na própria natureza do SIS.
Um dos projetos visa a cadastrar cada estrangeiro que entre na União Européia com um visto. Os departamentos nacionais de alfândega ou de imigração querem verificar se os visitantes realmente deixaram a União na data de vencimento de seu visto. Caso contrário, eles seriam denunciados ao SIS. Portanto, o estrangeiro seria assinalado como “ilegal” na Europa inteira e poderia ser expulso de imediato, assim que fosse detido. Uma medida que as autoridades defendem como uma necessidade, após os atentados de 11 de setembro de 2001: documentos internos do grupo de Schengen consideram, por exemplo, que “o melhor controle das pessoas entrando na área Schengen levará a melhorar a segurança interna3“.
Uma mina de ouro para a polícia
O atual processo de modernização técnica do SIS-II serve de pretexto para modificações substanciais na capacidade e na própria natureza do sistema
Outro alvo do SIS II: os militantes antiglobalização, definidos como “pessoas potencialmente perigosas que deveriam ser impedidas de participar de certos encontros internacionais4“. Entre os raros fechamentos – temporários – das fronteiras internas da União durante os últimos anos, quase todos serviram para impedir manifestações durante reuniões de cúpula européias ou internacionais… De agora em diante, os dados de identidade referentes a esses militantes serão registrados no SIS.
A lista dos desejos que os Estados membros fazem circular em Bruxelas não pára por aí: pretendem integrar ao arquivo central fotografias, impressões digitais, impressões de DNA e dados biométricos. Ao ligar aos arquivos sistemas de reconhecimento facial e da íris dos olhos, o SIS-II permitiria uma melhor identificação das pessoas vigiadas. As polícias também gostariam de poder consultar o arquivo sob a alegação de informações “incompletas”…
Mas é com o envolvimento dos serviços de inteligência que os objetivos do sistema Schengen poderiam mudar de natureza: na realidade, estes gostariam de obter o direito de buscar qualquer tipo de informação interessante naquele banco de dados. Uma aspiração em contradição como objetivo inicial deste arquivo, que era acompanhar e controlar a liberdade de movimento das pessoas no espaço Schengen. O desvio de um arquivo nominal para usos não previstos na sua criação é, como se pode tornar a constatar, o pecado capital dos bancos de dados. Uma vez a porta aberta, outras agências vão aproveitar a brecha: as autoridades responsáveis pelo licenciamento de veículos irão querer procurar carros roubados, os organismos centrais de crédito procurarão informações ligadas a fraudes financeiras, as agências de refugiados e do direito ao asilo irão verificar se os documentos não foram falsificados, os serviços sociais irão tentar detectar fraudes contra a previdência social etc. A Europol – organização das polícias européias – é, evidentemente, candidata à prospecção desta mina de ouro eletrônica5.
Labirintos jurídicos impenetráveis
Alvo do SIS II: os militantes antiglobalização, definidos como pessoas “que deveriam ser impedidas de participar de certos encontros internacionais”
Se esses projetos vingarem, o SIS terá passado de um instrumento de controle das fronteiras internas da União Européia para uma ferramenta mais “pró-ativa” de investigação e de polícia. Logicamente, seus contribuintes injetarão cada vez mais informações permitindo fazer avançar certas investigações, e será preciso pouco tempo para que, além dos fatos, sejam incluídos também suspeitas e boatos.
Se ao “velho” SIS já falta transparência, controle e responsabilidade, o futuro SIS-II pode ficar infestado de informação não verificada. Um relatório do Tribunal de Contas holandês, de 1999, concluiu que a parte holandesa do SIS, estava, na época, muito “suja”. O escritório holandês do procurador, por exemplo, não notificava a polícia quando eram suspensas as acusações pesando sobre um suspeito. Para o arquivo Schengen, este permanecia, portanto, como “suspeito”.
Os cidadãos da União Européia têm o direito de verificar se sua “ficha Schengen” está corretamente informada. Porém, os procedimentos são diferentes em cada país e poucos são os que conhecem o seu direito. Desde 1998, a Joint Supervisory Authority of Schengen (JSA), responsável pela conformidade do acordo de Schengen com os direitos da pessoa, publica um livreto informativo. Na Holanda, o livreto acabou de ser distribuído; a Bélgica já o pôs em circulação duas vezes; a França, nunca. Quanto aos estrangeiros a quem é recusado acesso ao território europeu, encontram-se frente a um labirinto jurídico impenetrável: se a Itália, por exemplo, lhes recusa a entrada com base num cadastro feito no SIS pela França, eles deveriam entrar com recurso junto aos tribunais franceses… para onde lhes é proibido viajar.
Cooperação judicial com EUA
Os departamentos nacionais de alfândega ou de imigração querem verificar se os visitantes realmente deixaram a UE na data de vencimento de seu visto
Existe o perigo da criação de “personalidades virtuais”, de perfis construídos a partir de bancos de dados heterogêneos, que teriam pouco a ver com a realidade – uma situação que torna necessária a constituição de uma fiscalização. Mas os debates sobre a cooperação policial européia foram monopolizados por alguns especialistas que se reúnem para definir seus objetivos e operacionalizar essa cooperação.
Os atentados de 11 de setembro de 2001 lhes permitiram colocar na mesa reivindicações vinculadas ao clima de segurança sobre a questão dos solicitantes de asilo e dos direitos dos estrangeiros. A inspiração vem dos Estados Unidos, onde o almirante John Poindexter, apesar de seu envolvimento no escândalo do Irangate, foi encarregado do projeto Total Information Awareness, que visa a estabelecer a “assinatura digital” de cada pessoa para permitir ao Estado isolar potenciais terroristas. Num apanhado, panorâmico, de todas as informações disponíveis, tratamentos computadorizados e manuai, poderia dizer-se que o projeto, controvertido, prevê o desenvolvimento de “tecnologias revolucionárias para [explorar] pastas ultra-largas de dados (…), um grande banco de dados virtual e centralizado”. Todas as informações bancárias, médicas ou referentes a comunicações e transportes serão integradas a esse sistema, onde serão cruzadas com as informações dos serviços secretos. Um acordo de cooperação judicial já foi assinado entre os Estados Unidos e a União Européia, sem análise parlamentar – acordo, que, obviamente, não menciona qualquer regra de proteção de dados pessoais. Acrescente-se a isso os contatos entre norte-americanos e europeus sobre as escolhas de tecnologias de interceptação das comunicações6?
Um documento interno do grupo de Schengen enfatiza: “A idéia de utilizar os dados do SIS para outros objetivos que aqueles previstos inicialmente, e principalmente com objetivos de informação policial em geral, é hoje objeto de amplo consenso, o que reforça as conclusões do Conselho após os eventos de 11 de setembro7.” O “amplo consenso” citado pelos policias europeus não procede de um debate público: surgiu nas reuniões secretas ocorridas nos bastidores da União Européia.
(Trad.: David Catasiner)
1 – Justiça, “The Schengen Information System – a human rights audit”, Londres, 2000. Ver o site: www.justice.org.uk
2 – Assinado em 1985 pela França, Alemanha, Luxemburgo, Bélgica e Holanda, este acordo de cooperação estendeu-se a toda Europa dos Quinze, com exceção da Grã-Bretanha e da Irlanda; suas exigências fazem parte do legado comunitário que os novos membros deverão integrar.
3 – Conselho Europeu, “New functions of the SIS II”, documento n° 6164/5/01 Rev 5, Limite, Bruxelas, 6 de novembro de 2001.
4 – Conselho Europeu, “New functions of the SIS II”, 5968/02, Limite, Bruxelas, 5 de fevereiro de 2002.
5 – Management Boar