Os tropeços da “modernização” agrária
Adotada na década de 50, a modernização da agricultura não resolveu a questão agrária: confundindo modernização agrícola com desenvolvimento rural, acentuou as desigualdades e aprofundou a concentração da terraCarla Ferreira
“Essa cova em que estás
com palmos medida,
é a conta menor
que tiraste em vida.
É de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe deste latifúndio.
Não é cova grande, é cova medida,
é a terra que querias ver dividida.”1
Com 390 milhões de hectares próprios para a atividade agrícola, o Brasil tem 120 milhões de hectares de terras ociosas, segundo informam dados do Incra
Com o status de segundo país com maior concentração da propriedade de terra no planeta, a expressão social do Brasil no exterior é cada vez mais a face do trabalhador rural sem terra: mirada árida, ressecada pelo relento, no limite entre determinação e desespero. Os números não nos permitem enganos sobre a situação fundiária no Brasil. Com um território continental de 850 milhões de hectares, dos quais 390 milhões são próprios para a atividade agrícola, 120 milhões de hectares estão ociosos, conforme informam dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). No país dos sem-terra, quase 60% das áreas rurais são grandes extensões que pertencem a menos de 3% dos proprietários.
Com atuais quatro milhões de famílias sem terra no país, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é importante observar que, sucessivamente, desde os tempos da colônia, passando pelo Império, até os governos republicanos, sempre as elites estiveram atentas para o fato de que tamanha quantidade de terra possibilitaria a transformação rápida do escravo ou do colono em pequeno proprietário rural. Assim, foram tomadas as medidas necessárias para impedir o acesso destes à terra, garantindo um processo de grande acumulação restrita aos círculos de poder.
Distorções da modernização
No país dos sem-terra, quase 60% das propriedades rurais são grandes latifúndios, que pertencem a menos de 3% do total de donos
O trabalhador do campo é, historicamente, o mais penalizado entre todos do país. Foi discriminado mesmo quando os trabalhadores urbanos tiveram seus direitos previstos em lei, a partir de 1930. Mesmo a modernização da agricultura, posta em prática a partir da década de 50 e que, a juízo dos técnicos da época, traria como resultado natural a melhoria da qualidade de vida das populações rurais, não resultou na solução da problemática da terra. Tampouco foi eficiente no aproveitamento racional das potencialidades agrícolas do país. Mais bem, a partir daí e, especialmente durante os governos militares, a modernização agrícola – entendida como absorção das novas tecnologias e aumento da produtividade – tratou de confundir modernização agrícola com desenvolvimento rural.
A modernização foi responsável, entre outras coisas, por agudizar as diferenças regionais internamente no país. No que se refere à estrutura agrícola, criou, por um lado, um setor extremamente moderno, composto de aproximadamente 500 mil estabelecimentos que respondem pela maior parte da exportação agrícola e emprego rural. E, por outro lado, um setor atrasado, conformado por cerca de cinco milhões de unidades agrárias de vários tamanhos, operando em níveis de produtividade baixos, responsável por parte considerável da produção de alimentos. Além disso, os dados sobre violência no campo nos revelam, segundo análise realizada pelo IBGE, que os conflitos sociais agrários e a violência no campo são maiores justamente nas regiões de maior concentração de terra, sendo estas, também, as zonas de menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH-ONU) do país.
O círculo vicioso da pobreza
Foram tomadas as medidas necessárias para impedir o acesso de escravos e colonos à terra, garantindo uma acumulação restrita aos círculos de poder
O papel político-ideológico da implantação modernizadora da grande empresa rural foi dar “legitimidade” para a sobrevivência do latifúndio ao tornar uma porcentagem deste terreno em produtivo. A partir daí, alguns setores intelectuais e políticos perderam o constrangimento e, atribuindo uma acepção mais estreita para o conceito de função social da propriedade, passam a apresentar abertamente suas razões para abandonar a defesa da reforma agrária, na atualidade.
Porém, estes setores esquecem que, em contraste com esta grande empresa implantada sobretudo no sul do país, tenta sobreviver uma frágil agricultura familiar que, sem apoio técnico e financeiro do Estado, não subsistirá à dinâmica concentradora implementada no campo. E, deslocando-se para o nordeste do território nacional, encontramos ainda o predomínio do grande latifúndio que super-explora e subjuga a população rural.
Então, o que se verifica na prática é um problema mais grave, de caráter estrutural, consubstanciado no que se chama de “questão agrária”. Segundo esta perspectiva, a concentração da propriedade da terra gerou uma trama de relações econômicas, sociais, culturais e políticas que geram a estagnação de todas as esferas da vida rural, afetando inclusive o exercício da democracia no país. Esta trama cria um círculo vicioso que tem efeitos perversos, tais como sistemas agrícolas pouco produtivos e devastadores da natureza, baixa rentabilidade, pobreza, êxodo rural, clientelismo, violência e analfabetismo. O resultado é a inibição de qualquer possibilidade de desenvolvimento dos mais pobres e da agricultura em geral, de forma equilibrada.
Os obstáculos da Alca
A modernização criou um setor extremamente moderno, composto de cerca de 500 mil estabelecimentos, que respondem pela exportação agrícola
Assim, a única solução para a “questão agrária” seria a reforma agrária, que se comporia de duas linhas de ação estratégicas. Por um lado, a desapropriação do grande latifúndio para assentamento de sem terras e, por outro, a viabilização técnica e financeira para a agricultura familiar. Com estas duas ordens de ação seria possível redistribuir renda, riqueza e poder no campo; forçar o aumento dos salários dos trabalhadores; elevar a produção de alimentos (a fim de sustentar o incremento da demanda decorrente do processo de distribuição de renda) e viabilizar a agricultura familiar. Além disso, enfrentaria de forma inteligente o problema do desemprego, uma vez que diversos estudos já demonstraram que a reforma agrária é uma das maneiras mais baratas de criar empregos, trazendo como benefício adjacente soluções para o problema da fome.
Realizar a reforma agrária no Brasil, mesmo diante da obviedade de sua necessidade, representa enfrentar o que há de mais atrasado no sistema social brasileiro. Porém, os entraves, que deverá se deparar o governante que decidir enfrentar este tema não estarão restritos às pressões do grande latifúndio improdutivo. Uma política agrícola alternativa repercutirá sobre os interesses associados da elite brasileira com empresas estrangeiras, uma tradição desde o período colonial. Representa incidir sobre a política de exportações, garantir soberania alimentar à nação, contrariar os interesses das multinacionais das sementes geneticamente modificadas, controlar o território Amazônico e as áreas de preservação, rever acordos internacionais de patentes, e entre todas estas coisas, principalmente, suspender imediatamente as tratativas para a implantação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), a qual propõe cláusulas que impedem qualquer possibilidade do país desenvolver uma política alimentar e agrícola soberana e sustentável.
Oxalá o novo governo do Brasil, que dirigirá o país a partir de janeiro de 2003, em vez de tratar os movimentos sociais do campo, de indígenas, pequenos agricultores e sem terras, como um problema de polícia, compreenda que eles são seus aliados para a promoção do desenvolvimento rural do país. Mais ainda, tomara que este novo governo seja capaz de adquirir com eles a sabedoria do correto relacionamento com a terra. Não concebendo esta somente como um pedaço de chão a ser explorado, mas como o espaço da convivência dos