Os trópicos de Caetano Veloso
O cantor e compositor falou ao Le Monde Diplomatique Brasil sobre política, cultura, a onda conservadora e Tropicalismo:“Eu, um rebelde dos anos 1960, observo a confusão atual com apreensão, mas também com descrença na firmeza dos valores defendidos pelos conservadores. E com um desejo de agir para criar esperança”
Embora Caetano Veloso não tenha encontrado a resposta para dizer a que se destinou sua vida até aqui ou o que será dela nos próximos anos, é possível dizer que sua trajetória artística e pessoal influenciou profundamente a história cultural e política do Brasil a partir da década de 1960. O baiano de Santo Amaro da Purificação sempre quis muito, ainda que parecesse modesto. Com quantidade e intensidade, reorientou um carnaval que parecia ser seu antes mesmo de saber o que era música.
“Aos 7 ou 8 anos, me prometia crescer para fazer um escândalo entre os homens a respeito da certeza de que, se não posso sair de mim – e não posso – não há mundo nem coisas, nem nada, só o meu pensamento”, escreveu nas primeiras páginas do seu Verdade tropical (1997), que completa vinte anos.
Tal pensamento organizou o movimento reunindo todos os fragmentos de um mundo que explodia culturalmente e caíam sobre Copacabana. A música dos Beatles, a guitarra elétrica e as inovações do norte-americano Jimi Hendrix (1942-1970) foram incorporadas ao encantamento causado em Gilberto Gil pela Banda de Pífanos de Caruaru, pelas obras do Cinema Novo de Glauber Rocha e pelo desejo de violentar musicalmente uma sociedade refém da ditadura militar e envolta na ressaca bossa-novista. O Tropicalismo estava pronto.
Meio século depois de mudar os rumos da música popular brasileira, Caetano Veloso reflexiona sobre uma trilha clara e dolorosa para o Brasil, por meio das vertigens visionárias que podem ou não carecer de seguidor. “O Brasil, um esboço monstruoso de país, pode achar alguma coisa interessante em si mesmo que possa contribuir para o ‘achamento’ de caminhos”, analisa o compositor em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil.
Aos 75 anos, ele já não espera pelo dia em que todos os homens concordem. Com tudo fora de ordem, suas harmonias possíveis e bonitas também não devem ser acompanhadas de um juízo final. “Nós vivemos a queda do socialismo real e devemos aprender a viver a queda do liberalismo real. É meio que uma piada sobre a descrença que tem de abater-se sobre o liberalismo depois da crise de 2008, como se esse ano tivesse visto o equivalente liberal-capitalista da queda do Muro de Berlim. Mas o fato é que nem os ideais socialistas nem os liberais morreram com esses acontecimentos. O que quer que se dê no futuro próximo terá relação necessária com as tensões ligadas a isso. Para mim, o desejável seria um equilibrado aproveitamento do que há de engrandecedor no ideário liberal e no socialista”, diz.
Como cantou no exílio em Londres, Caetano Veloso segue vivo, muito vivo. Entre luas e estrelas, anéis de turquesa e crianças cor de romã, o baiano continua provocando tempestades solares no cenário cultural brasileiro.
Confira a entrevista.
LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL – Em Verdade tropical, você analisa o golpe militar de 1964 como “uma reação da direita e da estrutura social brasileira forjada desde a época colonial contra um processo de alfabetização acelerado e conscientização política das tradicionalmente marginalizadas classes pobres brasileiras”. O que está em jogo na ascensão da direita atual?
CAETANO VELOSO – Tudo aquilo a que me referi em VT está em jogo agora, como sempre. A ascensão da direita contemporânea tem a ver com o surgimento das redes sociais na internet e com a inevitável reação conservadora aos avanços sociais das últimas décadas. Mas vivemos um outro tempo. Simultaneamente às manifestações mais reacionárias nas redes e mesmo nas ruas, a cantora Pabllo Vittar, que é uma trans que se nega a trocar seu prenome masculino, é campeã de vendas e views. Todo mundo vai ter de se mover muito por dentro nessa nossa era.
Ao finalizar sua participação no evento de lançamento do espaço da Mídia Ninja, em São Paulo, você disse que viveu o fracasso do socialismo real e agora vive o fracasso do liberalismo real. O que está por vir no cenário econômico e político – ou o que você acha que vai acontecer – como consequência dessas duas derrocadas?
Eu me lembro de ter dito que nós vivemos a queda do socialismo real e devemos aprender a viver a queda do liberalismo real. É meio que uma piada sobre a descrença que tem de abater-se sobre o liberalismo depois da crise de 2008, como se esse ano tivesse visto o equivalente liberal-capitalista da queda do Muro de Berlim. Mas o fato é que nem os ideais socialistas nem os liberais morreram com esses acontecimentos. O que quer que se dê no futuro próximo terá relação necessária com as tensões ligadas a isso. Para mim, o desejável seria um equilibrado aproveitamento do que há de engrandecedor no ideário liberal e no socialista. Claro que isso sugere o nascimento de algo que esteja para lá dessas duas visões de mundo. Conheço muitos esboços neoanarquistas (como TAZ ou Graeber) e também esforços para desconstruir o chamado progresso do Ocidente, retomando perspectivas indígenas. Há até desejos de libertar a humanidade dos constrangimentos que surgiram com o nascimento da agricultura. O Brasil, um esboço monstruoso de país, pode achar alguma coisa interessante em si mesmo que possa contribuir para o achamento de caminhos.
Como você se definiria politicamente? A busca por uma terceira via, fruto das reflexões iniciadas na Faculdade de Filosofia, segue até hoje?
“Terceira via” é uma expressão que, depois de Tony Blair, não me animaria a utilizar. Mas precisamos de uma alternativa iluminadora. Por isso é que um pensador político como Roberto Mangabeira Unger me interessa.
Em uma entrevista ao Cadernos de Literatura, do Instituto Moreira Salles, em 1996, o escritor Raduan Nassar disse que “nenhum grupo, social ou familiar, se organiza sem valores, como, de resto, não há valores que não gerem excluídos. Na brecha larga desse desajuste é que o capeta deita e rola”. O reaparecimento do conservadorismo, por vezes reacionário, nos coloca mais próximos da adequação a determinados valores ou do flerte com o desajuste?
O conservadorismo reacionário reapareceu em ambientes antes dominados por progressismos mais ou menos definidos, isto é, no ambiente artístico, na indústria cultural, nas universidades, no mundo intelectual, na imprensa. Nunca esteve ausente das sociedades. Nos anos 1960-1970 falava-se da maioria silenciosa, referindo-se ao conservadorismo necessário às sociedades, que deixava os excêntricos e rebeldes fazerem barulho e segurava, sem alarde, os valores e hábitos tradicionais. Hoje, em grande parte por causa da internet, esse aspecto conservador das sociedades faz barulho. A gente pode temer, pensando no ovo da serpente, ou julgar que a necessidade de gritar vem de um reconhecimento da própria fraqueza. Eu, um rebelde dos anos 1960, observo a confusão atual com apreensão, mas também com descrença na firmeza dos valores defendidos pelos conservadores. E com um desejo de agir para criar esperança.
Em “Fora da ordem”, você diz que “Aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína”. Em entrevista recente, ressaltou o fato de o Brasil ter algo meio “desafinado”. Ainda que essas frases tenham sido construídas em momentos diferentes, isso sugere um Brasil caminhando para a melancolia e a descrença?
A frase de “Fora da ordem” vem de Lévi-Strauss, um autor que me impressionou desde o final dos anos 1960. Em Tristes trópicos, ele apresenta alguns retratos pessimistas do Brasil, e essa fórmula de construções em estado de ruínas é algo que a gente pode reconhecer em mil lugares e momentos do país. O “desafinado” tem algo a ver com isso. É a óbvia inadequação dos talentos, o desperdício de possibilidades. Visões como a descrita por Lévi-Strauss são melancólicas. Mas não sinto o Brasil caminhando para a melancolia. Em muitos momentos vejo que o grande inventor do estruturalismo não tinha sensibilidade para apreciar as energias históricas de países vira-latas como o Brasil.
Em Verdade tropical, você diz que o Tropicalismo começou em você “de maneira dolorosa, com o desenvolvimento de uma consciência social, política e de exigências estéticas e existenciais”. Em outro trecho, escreve que o Tropicalismo era “um grupo de garotos fazendo música que, por fim, decide dar um sentido maior para o desenrolar de suas carreiras”. De que maneira o aperfeiçoamento da própria existência está ligado ao Tropicalismo?
O Tropicalismo está intimamente ligado a meu esforço de aperfeiçoamento pessoal. Sinto, desde menino, uma espécie de dever de grandeza. Acho que vem da firmeza moral de meu pai e do ambiente malemolente do Recôncavo Baiano, personificado em minha mãe, nas festas, nos sambas de roda, nas procissões. Venho de um pedaço de terra muito africanizado e cheio de vestígios coloniais. A escravidão está ainda perto: a Festa da Abolição se dá na Praça do Mercado desde o 13 de maio do ano seguinte ao 1888. Meu pai me mostrava a festa em que se celebra a princesa Isabel, que assinou a “Lei Áurea”, e se anseia por uma nova abolição.
Ao utilizar o conceito da antropofagia de Oswald de Andrade, você sugere uma “radicalização da exigência de identidade” contra a “neutralização das características esquisitas desse monstro católico tropical, feitas em nome da busca por migalhas de respeitabilidade internacional”. O desenvolvimento dessa identidade encontra diálogo na produção cultural contemporânea do Brasil?
Acho que isso não se perdeu. Essa força ainda temos. Oswald me incentivou e encorajou muito com a mera leitura tardia de seus poemas, seus manifestos e romances. Se não fosse pelo grupo de poesia concreta de São Paulo, os irmãos Augusto e Haroldo de Campos mais Décio Pignatari, eu não teria entrado em contato com essa obra, se bem que o estopim para mim foi a montagem de O rei da vela, uma peça escrita por Oswald nos anos 1930 e encenada pela primeira vez em 1967 pelo grupo Teatro Oficina, também de São Paulo, sob a direção de José Celso Martinez Corrêa. Mas a visão dessa peça e a leitura dos livros se deram quando eu já tinha meu disco tropicalista todo gravado. Encontrei uma espécie de confirmação de minhas intuições (e das de Gil) nessas obras. Mas não estudei Oswald. Os textos teórico-filosóficos que ele produziu eu só vim a ler (e com pouco proveito) muito depois. Neste momento, diante de livros de Eduardo Viveiros de Castro, sinto necessidade de reler o Oswald filosófico. Um colega meu, bastante admirado por mim, que é compositor e cantor de rock desde os anos 1980, faz parte hoje dos que gritam à direita. Ele escreveu um livro exclusivamente para responder – de forma bastante literal – ao “Manifesto antropófago” de Oswald, que ele toma como orientador de tudo a que ele se opõe. Um intelectual conservador, inteligente e erudito, apoia o meu colega. É interessante como cantores populares no Brasil se metem nessas conversas de letrados. Eu talvez seja o epítome do tipo. Mas confesso que Oswald ainda é para mim principalmente um incentivo intenso, mas vago. Eu não posso discutir suas ideias mais propositivas. Isso tudo para dizer que, sim, tudo isso ainda mexe com a produção cultural brasileira.
Você já disse que o funk carioca e o sertanejo eram “a nova Tropicália”. Esses dois estilos, no entanto, não utilizam referências como o Cinema Novo, a obra de Glauber Rocha ou um romance de José de Alencar. Como essas duas estéticas se encontram e criam similaridade?
Claro que era uma provocação. É como o escritor José Agrippino de Paula dizer, em 1966, que Chacrinha, o apresentador grosseiro de um programa de massas televisivo da segunda metade do século XX, era a maior personalidade teatral do Brasil. José Celso, aliás, dedicou sua montagem do Rei da vela a esse apresentador, que de fato era um fenômeno cultural e estético importante e fascinante. O funk carioca e as duplas sertanejas são importantes e fascinantes. Mas esses gêneros não são produzidos por artistas que citam cineastas ou escritores. Os grandes criadores do funk vêm das favelas; os sertanejos, das áreas rurais enriquecidas. Mas eles criam ritmos, melodias, frases e modos de comunicação com vastas plateias que por vezes são inventividade pura. Agora, se você quiser ouvir um músico jovem brasileiro capaz de citar filmes e livros (fazendo música caprichadíssima e sofisticada), ouça Thiago Amud.
Em “Cajuína”, o verso inicial questiona: “Existirmos: a que será que destina?”, partindo de uma experiência traumática com a morte de Torquato Neto, um dos símbolos do Tropicalismo. Aos 75 anos, com um filme dirigido, livro publicado e uma porção de canções exaltadas ao redor do mundo, devolvo a pergunta: existirmos, a que será que se destina?
Essa pergunta permanece uma pergunta. Talvez seja assim para sempre.
*Guilherme Henrique é jornalista.