Ouvir o silencio
Para os ouvintes, os sons de antemão já tem um sentido, os movimentos tem linhas esperadas, as palavras se fecham. Tudo se repete. Na surdez, som, palavra e objeto, esperam ser desvendados. Talvez, com o silêncio, o corpo desperte e perceba que é capaz de falarSindia Santos
As mãos dançantes estão em toda parte. Quem passa na Rua das Laranjeiras, Zona Sul do Rio, logo percebe. Pontos de ônibus, lanchonetes, bares, lá estão elas a nos hipnotizar. A cadência dos movimentos destoa do barulho atordoante de carros e buzinas do acentuado trânsito do final de tarde. Seguindo-as, chegamos até o Instituto Nacional de Educação de Surdos, o INES. A primeira escola de surdos do Brasil foi criada em 1857 por um francês, também surdo, chamado Eduard Huet.
Durante o primeiro ano de existência, o INES funcionou na Rua dos Beneditinos. No ano seguinte, mudou-se para o Morro do Livramento, em seguida, para o Palacete do Campo da Aclamação, depois para a Chácara Laranjeiras, e por fim para a Rua Real Grandeza. Somente em 1877 foi transferido para a Rua das Laranjeiras. Em 1890, mudou-se para o atual prédio, no nº 232. Por fora, a imponente construção amarela nem parece uma escola pública, onde estudam 600 dos quase seis milhões de surdos do país. Esse número corresponde 1,2 % dos surdos do Estado do Rio de Janeiro.
Por dentro, numa das salas de pintura desgastada, cujas paredes são enfeitadas por desenhos dos alunos da educação infantil, encontraremos Ana Barbosa, professora de música e dança, que há 15 anos trabalha com surdez. Na recém reformada biblioteca, estará Aulio, o contador de histórias que um dia jogou o aparelho fora e decidiu nunca mais ouvir. Numa outra sala do Jardim da Infância, conheceremos Andréa, a professora que usa um bolo como desculpa para que seus alunos descubram o mundo.
Naquelas salas frias, abraçadas pelo Morro Pereirão, eles aprenderam que silêncio não é só quando os sons não chegam aos ouvidos. A surdez ensina que o corpo tem caminhos que o ouvido desconhece. Essa é a história desses caminhos.
O despertar do corpo
— É um sapo! Muito bem! Elogia Ana Barbosa, a professora.
Acocorado o menino de sete anos salta em todas as direções, sem dizer uma palavra.
Sssaaapooo… a língua sibila no céu da boca, toca os dentes, os lábios se unem, deixando espaço para o ar passar. Sapo era palavra que ninguém sabia pronunciar, por nunca a terem ouvido. Sapo era então, para aqueles alunos, dois dedos saltando sobre as costas de uma das mãos.
Há algum tempo o embrulho negro passava de mão em mão, enquanto nove crianças tentavam adivinhar o que ia por dentro. É um sol! Uma flor! Um cavalo! Ninguém sabia ao certo. A dica da professora Ana foi essencial para a descoberta:
–É verde! Com os dedos em V, espalmados no pulso, ela se faz entender.
Minutos antes da brincadeira do sapo, veio o exercício do tambor, era o início da aula:
— Vamos lá, gente, VERMELHO: batida FORTE! Azul: suave… Ana se comunica em português e em Libras, para fazer entender que som é o que vibra em contrações e expansões, toca os ouvidos, porém para o surdo, ouvido é o corpo inteiro.
Uma a uma, as crianças aproximam-se do tambor e batem, obedecendo aos comandos da professora. BUM! bum… BUM! bum… BUM! BUM! bum… O som sem ritmo toma a sala, som descompassado, som de experimentação.
Chega a vez de William, de seis anos, o mais novo da turma. Ele se esforça para bater forte e suave, mas a intensidade dos sons quase não se distingue. Ana segura-lhe pelas mãos, repete o gesto: FORTE!, diz ela com as mãos, pressionando-lhe energicamente o braço. O corpo de William sacoleja, vermelho é sangue, pulsação, coração, vida. William sente o vermelho pelo corpo.
A língua do sapo é vermelha, mostraria ele momentos depois, tocando o lábio inferior com o dedo indicador. O sapo agora fora do saco pertencia aos olhos. Era de gesso, olhos pretos, pele verde com bolinhas, língua vermelha. Um outro sapo de pano, menorzinho, junta-se a ele. Mãe e filho, de frente para a lagoa cênica criada pela professora. O sapo não lava o pé, não lava porque não quer… A velha cantiga é encenada.
Nenhuma das crianças na sala é capaz de ouvir o splash do sapo se molhando, ou a música que Ana canta. Por isso a água é de verdade, se espalha pela mesa, bate na pele, molha o sapo. A música é o frenesi do sapo na tentativa de escapar do banho, são os seus pulos para evitar o lago. Ao vê-los os alunos entram em algazarra, dançam no ritmo da criança a descobrir o mundo.
Sombras
Na parede da biblioteca formam-se sombras. As crianças olham encantadas. Aqueles vultos, em tamanho quase real, têm vida própria, movimentam-se; são a Chapeuzinho Vermelho a caminho da casa da vovó.
Para Aulio, o contador de histórias, aquelas formas na parede destituídas de luz, cheiro, cor e consistência, representam mais do que o conto dos irmãos Grimm. São seu próprio mundo, um lugar escuro e silencioso… Até que uma árvore aparece, ela tem cor, tronco, frutos, tem cheiro, folhas. Aulio vai até a árvore, a toca, a cheira, percebe que o tronco é áspero e as folhas leves, que a fruta é doce e que ali embaixo há sombra. Esse é o som da árvore.
Aulio: – A comunicação é uma descoberta constante, motivada pela curiosidade. Essa descoberta não acontece só pelas palavras ou pelos sinais.
Em 30 minutos de contação de história nenhuma palavra é dita, nenhum sinal é emitido. As sombras de Aulio são um mistério, um convite. E só podem ser desvendadas se houver experimentação. Por isso, Aulio se mistura às sombras, faz cara de mau, empresta feições e braços aos personagens. Ele é o lobo, o caçador, a vovozinha, o narrador e as mãos que conduzem a história.
…
Foi aos 13 anos que Aulio decidiu nunca mais ouvir e retirou o aparelho.
—Não reconhecia meu nome. Não conseguia decorar o que significavam os sons, era tudo muito confuso, agudo, incomodo, barulhento.
Aulio jogava fora um dos grandes avanços do ano de 1898, o aparelho auditivo, invento baseado na ampliação eletrônica do som, de Graham Bell. Quando inventou o telefone, Bell queria se fazer ouvir pela esposa e sogra, ambas surdas.
Aulio nunca concordou com as motivações de Bell, um dos disseminadores do oralismo (método de educação alemã) pela América. Para Aulio, ouvir através de um aparelho é negar o que ele é:
— E eu sou surdo, não ouço o que me falam, vejo o que me falam, é diferente.
Filho de pais ouvintes e sem registro de doença que fizesse prever ou explicar a surdez, aos quatro anos Aulio assistiu o som ir sumindo até cessar. Os médicos alegaram que a causa era incompatibilidade de DNA dos pais.
Anos depois, o mesmo aconteceria com o seu irmão mais velho. Em seguida veio a separação dos pais. A mãe voltou a casar-se e teve outro menino, ouvinte.
A surdez pode acontecer antes, durante ou depois do parto por conta de vírus, bactéria, trauma, carência alimentar, má-formação entre outros. Mas nem sempre há razão conhecida para a surdez. Às vezes, fica-se surdo da noite para o dia, sem saber o porquê.
Foi o que aconteceu com os membros do comitê do Congresso de Milão em 1880. Sem ouvir um surdo sequer, em três dias de deliberação, eles decidiram que a educação pelo oralismo (método alemão) era superior ao gestualismo (método francês, já então, um dos mais utilizados no mundo). Um dos membros era o próprio Gralham Bell.
Na escola, mais de um século depois do tal congresso, Aulio ainda não podia se comunicar em Libras. Era incontestável, o sinal era a palavra no mundo da surdez, a ponte entre o que está lá fora e o que está aqui dentro. Mas as instituições insistiam no oralismo e este excluía toda e qualquer outra forma de comunicação.
Aulio: —Diziam que a Libras nos aproximava dos macacos. Passei a estudá-la por conta, porque apesar a proibição todos os surdos continuavam a usar o gestualismo como forma principal de comunicação.
Durante quase todo o século 20, o oralismo foi a principal forma de educação de surdos no mundo. Com o passar dos anos ele foi se mostrando pouco eficiente e o gestualismo foi ganhando a confiança. No Brasil, somente em 2005 os sinais passaram a ser considerados língua.
De volta à sala da biblioteca, as sombras se sobrepõem na parede, mostrando o lobo mau, com a barriga cheia de pedras. Ele cai no lago e morre sem saber o que lhe havia acontecido. As crianças sorriem aliviadas, Chapeuzinho e vovó eram salvas.
O mais perverso dos isolamentos
O Mudinho de Guapimirim era homem feito, quieto, só; dias e dias isolado. Parecia viver aquém do que acontecia ao seu redor, concentrado a cuidar de cavalos. As pessoas o achavam estranho; o Mudinho não perguntava, não respondia e só voltava sua atenção às conversas para em seguida mostrar desinteresse, desviando o olhar.
Toda a vida do Mudinho aconteceu nos pouco mais de 360 quilômetros quadrados da cidade de Guapimirim, que fica há 85 quilômetros da capital carioca, até que aos 40 anos ele morreu. Foi então que descobriu-se: o Mudinho não era mudo, era surdo.
Andréa: _ Por conta dessa história conclui que a surdez impõe o mais severo dos isolamentos. Porque o surdo está lá, mas ninguém vê, ele pode falar, mas ninguém o ouve. O surdo aponta a nossa incapacidade de se comunicar e por isso é ignorado, condenado a viver feito uma assombração. Eu me identifiquei, daí nasceu o desejo de trabalhar com surdez.
Dos 20 anos em que Andréa se dedica à educação básica (educação infantil, ensino fundamental e médio) em Libras, cinco anos foram voltados com exclusividade à educação infantil. E foi assim que conheceu Thalisson, Duda, Luana, Carol, Kadu e Renan, alunos que acompanha há dois anos.
Cada um deles entrou para a turma em estágios diferentes de surdez, e trouxeram maneiras diferentes de aprender. A faixa-etária da sala varia de seis a nove anos. Isso indica que a surdez foi diagnosticada cedo. O que não quer dizer que eles se saibam surdos.
Andréa: —Eu mesma não sei se há consciência da surdez. Mas vai chegar o momento deles perceberem que são diferentes dos ouvintes.
Trata-se de um momento crucial que pode colocar o surdo numa posição de impotência se a surdez for encarada como uma deficiência.
Andréa: —A vida é complicada para quem é surdo e para quem não é. O que temos aqui são caminhos diferentes.
O importante nesse meio tempo para Andréa é que seus alunos tenham acesso ao que é externo. Que eles possam aprender coisas que crianças na idade deles aprendem.
Andréa: — É nessa fase que uma grande defasagem no aprendizado é construída. O isolamento é naturalizado. Há quem deixe de falar com o filho, não lhe conte histórias, não brinque. Mas a comunicação não pertence só à palavra, ela implica em um debruçar-se sobre a criança. E essa atenção é o que impele a criança a explorar o mundo.
Quando as crianças vêm para Andréa, elas ainda estão num universo muito particular, não sabem Libras, não sabem português e muitas coisas ainda não tem nome.
Andréa: —A comunicação se dá através de uma linguagem gestual muito particular, com sinais próprios, criados na rotina com pais e irmãos.
E é essa língua que Andréa tem de aprender para poder abrir caminho nas Libras com a turma.
Andréa: —O surdo é visual, então trabalho muito com imagens. Essa foto aqui é de um bolo que fiz no domingo, bolo de fubá. Vou trabalhar a letra B em cima dessa imagem.
O bolo tem cheiro, é quente, macio, amarelo, é feito de ingredientes, como ovo, farinha, milho, açúcar. O bolo de verdade é só uma desculpa para a gente estudar tudo o que está ao redor, uma desculpa para disparar a curiosidade deles.
Thalisson, de sete anos, se aproxima, aponta para as calças. Banheiro? Não, ele mostra a sunga vermelha que vestia por baixo do uniforme. Piscina!, exclama Andréa. Aula de educação física.
Interseção
Francisca entrou na sala e encarou os treze alunos do primeiro ano do ensino médio. Ela era professora de matemática e pela primeira vez em 10 anos de profissão teria de dar aulas sem falar. Seus alunos eram surdos.
Francisca tinha medo. Se comunicar em Libras implica em usar o corpo inteiro, o “não” é acompanhado por uma feição de negação; o “difícil” pelo cenho franzido; quando a “dor” é mencionada, as costas se curvam; ninguém fica bravo sorrindo, cada gesto precisa passar pelo corpo. E o corpo de Francisca era analfabeto.
— Eu já conhecia um pouco dos sinais, já havia dado algumas aulas em Libras. Mas Libras não são apenas gestos, trata-se de uma linguagem dinâmica, que se aperfeiçoa a cada dia. E a Libras não fazia parte da minha forma de pensar. Foi um começo difícil, mas muito desejado.
Um mês depois, e Francisca ainda aperfeiçoava o seu método de ensino. Estagiava com professores de primeira à quarta série.
— Você vê, uma nota de um real tem número, desenho de beija-flor, letras, é algo palpável, que não fica no campo das abstrações. Todo o aprendizado tem de ser feito dentro da capacitação do surdo e não do ouvinte. E o surdo é visual.
A aula de matemática do primeiro ano segue. Teoria dos Conjuntos. Jadirson, um dos alunos, reclama do barulho.
Francisca: — Surdo ouve o que é grave e o que é agudo, os sons intermediários é que ficam comprometidos.
Marcos era a causa do tormento de Jadirson. Ele terminara o exercício que Francisca havia proposto para a sala. O restante da classe ainda tentava entender o que era pedido. Inquieto, Marcos sentava e levantava da carteira, depois fazia do lixo um alvo para as bolas de papel que ele arremessava. Francisca vai até ele e confere os exercícios.
— Está errado! Ela diz.
Irritado, ele amassa a folha do caderno, levanta mais uma vez, arrasta a cadeira. O barulho agudo mais uma vez incomoda Jadirson.
De costas, Francisca pede para Jadirson parar de reclamar. A agitação visual lhe tira a atenção da correção.
— O exercício vale nota! Ela adverte.
Os alunos se entreolham. Jadirson arqueia as sobrancelhas. Marcos volta a sentar-se, ainda inquieto, as pernas a chacoalhar.
— Interseção é o ponto de encontro entre dois planos, ou duas linhas. Aqui são sempre os números ou elementos que pertencem a dois ou mais conjuntos. Francisca explica uma das operações possíveis em Teoria dos Conjuntos. Símbolos e mais símbolos tomam o quadro de explicações: pertence, não pertence, união, interseção, está contido, não está contido, implica que, se e somente se, existe, não existe. Enigmas são construídos no quadro e para se chegar a uma conclusão sobre eles é preciso de muito raciocínio lógico.
— Não gosto de matemática, diz Rafaela enquanto leva os exercício para Francisca corrigir. Rafaela está na turma desde fevereiro desse ano. Mudou-se de uma escola de ouvintes junto a Jéssica e José Roberto.
Os três foram oralizados. Rafaela e José Roberto parecem preferir as Libras, já que poucas vezes suas vozes são ouvidas. Jéssica prefere falar, usa aparelho e desde pequena prefere estudar com ouvintes.
De um dos cantos da sala, Renata, a assistente de Francisca, pede atenção. É a vez dela explicar em Libras o que foi passado. Desde a primeira aula, Francisca tem o auxílio de Renata nas explicações à sala. Antes de entrarem na classe, as duas discutem o conteúdo da aula na sala dos professores.
Renata: — Não lembrava o que era interseção, então revi alguns conceitos hoje pela manhã com a Francisca. Só depois de entender, explico.
Uma aluna passa mal e deixa a sala, acompanhada por Francisca. Enjôos, aos 17 anos, está grávida. De volta à sala, Francisca avisa que a aluna foi dispensada.
Francisca: —E então, alguém sabe me explicar o que é interseção?
Medo de água
Era uma tarde fria no Rio de Janeiro. Começo de inverno. E nem mesmo a temperatura atípica da cidade carioca foi capaz de impedir que a turma de Andréa caísse na piscina. O colchão de água se abre para receber quem nele mergulhar, depois vêm os gritos, os gemidos e por fim os risos. Thalisson foi o primeiro a se jogar. Bóia laranja nos braços, sunga vermelha, ele batia os pés, boiava, afundava a cabeça na água, sempre com o auxilio de Ana Griner, a professora de educação física.
— Ele tinha medo de água. Enrijecia todo e grudava na gente de um jeito, que não havia como trabalhar.
Naquela tarde, sem bóias, Thalisson mergulhava e chegava até Ana por debaixo da água. Depois descansava em seu abraço até recuperar o fôlego e partir num outro mergulho.
Em 23 anos trabalhando com surdez Ana sabe que não há como trabalhar com generalizações. Ela acredita no que é possível.
Ana: —Um corpo sempre cria caminhos. Descobrir esses caminhos é o primeiro passo. Então, trago para a minha aula objetos em papelão, plástico, borracha, coloco os alunos em contato com vários tipos de materiais. Trabalho na água, na areia, no campo de futebol. A água, por exemplo, é sempre um desafio porque traz à tona a percepção da perda do equilíbrio. Há os alunos que se atiram e os que têm medo.
Foi o que aconteceu com Thalisson. Nos primeiros dias de aula, ele rejeitava a idéia de entrar na água. Depois, ao ver as outras crianças, ficou curioso, até que topou experimentar.
Com Luana, de nove anos, aconteceu o oposto. Ela não tinha medo de água. Deitada de costas, boiava e batia os pés. Mas espasmos que atravessam o seu corpo a faziam perder o equilíbrio. Os movimentos de Luana são comprometidos por uma paralisia cerebral, que lhe causa além dos espasmos, contorções. Caminhar, escrever lhe exigem muita concentração. Devagar, ela aprendeu a relaxar ao invés de tensionar. E naquela tarde, embora o frio lhe arrepiasse a pele, ela insistiu um pouco mais, e como as outras crianças, se recusou a sair. E esse pouco a mais foi o suficiente para que ele