Overdoses de opiáceos com receita médica
Eles matam mais que os acidentes de trânsito ou as armas de fogo. Após devastar os guetos negros nos anos 1990, os opiáceos dizimam os subúrbios e a baixa classe média norte-americana. Além da amplitude e do perfil das vítimas, essa epidemia de overdoses é inédita por sua origem: os consumidores tornaram-se dependentes tomando analgésicos prescritos por médicos
Existem dezenas de maneiras de morrer, mas no necrotério do Condado de Lorain, uma área suburbana de Ohio, só se registram cinco: “morte natural, homicídio, suicídio, acidente e causa indeterminada”. As overdoses são consideradas acidentes. Aqui, elas triplicaram em quatro anos, matando 132 pessoas em 2016. “São coquetéis de opiáceos em 95% dos casos”, revela o médico legista Stephen Evans, que às vezes classifica uma overdose como suicídio, quando as doses são muito grandes. “Entretanto, outros condados as classificam como homicídio, quando os traficantes vendem o pó misturado com fentanil, um narcótico cem vezes mais poderoso que a heroína. Os usuários pensam que estão injetando heroína, mas absorvem cem vezes a dose…”
O Condado de Lorain, que agrupa cerca de 300 mil habitantes, situa-se na região de Cleveland. Delimitado ao norte pelas praias do Lago Erie, o território vai se tornando mais rural à medida que avança para o sul. Após um primeiro pico de overdoses em 2012, a polícia pensou de início em um problema de droga adulterada, mas as análises toxicológicas não revelaram nada de surpreendente. Os consumidores de opioides por via intravenosa tinham, pura e simplesmente, se tornado mais numerosos no condado. O problema não se limitava mais aos bairros pobres e aos guetos negros de Cleveland e Cincinnati, mas contaminava agora os pequenos enclaves da classe média branca.
Com mais de 4 mil mortes por overdose em 2016 (contra 365 em 2003), Ohio ocupa o segundo lugar no quadro norte-americano das devastações da droga, atrás apenas da Virgínia Ocidental. Os brancos constituem 90% das vítimas, enquanto os negros e hispânicos (16,5% da população do Estado) estão sub-representados: 8%.1
Na escala do país, a epidemia de overdoses contribuiu para a queda da expectativa de vida em 2016, pelo segundo ano consecutivo.2 Com 65 mil mortes por ano, “ou seja, mais que a totalidade dos soldados abatidos no Vietnã”, lembra Evans, os derivados de ópio matam mais que os acidentes nas estradas (37 mil mortos) ou que as armas de fogo (39 mil). Em comparação, 243 pessoas morreram de overdose na França em 2014, 2.655 no Reino Unido em 2015 e 1.226 na Alemanha no mesmo ano.3 O presidente Donald Trump, que durante sua campanha prometera agir, erigindo esse problema em símbolo dos sofrimentos da “América profunda”, declarou em outubro de 2017 “estado de emergência sanitária”. Mas, no Condado de Lorain, essas palavras são acolhidas com um dar de ombros. “Os fundos federais de emergência sanitária possuem uma reserva de US$ 156 mil”, suspira Thomas Stuber, que dirige a LCADA Way, uma rede local de clínicas e centros de acolhimento para toxicômanos.
Na área penal, a situação se tornou tão crítica que um magistrado local conseguiu da Corte Suprema de Ohio, há três anos, licença para criar um tribunal especial, reservado aos toxicômanos. Nesta manhã de terça-feira, no fim de novembro, véspera da festa de Ação de Graças, os trinta participantes se encontram diante da sala 702 do tribunal penal de Elyria, rebatizado de “tribunal da droga”. Esses jovens adultos – homens e mulheres em proporção quase igual – se conhecem bem, pois sempre se cruzam nessa convocação semanal.
Eles dão rosto à pandemia que a imprensa do país, amante dos superlativos, qualifica de a mais grave da história: um rosto branco, suburbano ou rural, que tem teto para dormir e estrutura familiar. O retrato-padrão de um drogado não é o de um astro do rock’n’roll ou de um negro pobre do Harlem, como sucedia durante a onda de opiáceos dos anos 1970. A morte golpeia a América dos condomínios e dos campos, aquela que possui garagem e às vezes dois carros. O consumo de heroína explodiu em todas as categorias sociais, mas o aumento maior (77% de 2002 a 2013) foi constatado nos lares da classe média baixa, com renda entre US$ 20 mil e US$ 50 mil por ano.4
Uma vez nas mãos da justiça, os jovens do Condado de Lorain são transferidos dos centros de acolhimento de toxicômanos para as prisões. O acordo que o juiz John Miraldi lhes propõe é simples: se eles se emendarem, evitarão a cadeia e retomarão a vida normal. Essa parece, claramente, ser a escolha mais racional, mas a dependência estabelece sua própria lógica. “O usuário não consegue, literalmente, funcionar sem sua dose. As crises de abstinência são muito violentas”, relata Stuber, que após 38 anos no ramo exibe um pessimismo profundo. Para escapar da engrenagem é necessária uma força sobre-humana, mas nem assim “a pessoa se cura realmente”, observa Ed Barrett, ex-toxicômano e dirigente do Primary Purpose Center, um centro de acolhimento em Elyria.
Largar o vício sozinho parece impossível. É preciso estar acompanhado o tempo todo durante pelo menos cem dias e mudar por completo os hábitos, “esquecer a vida anterior e fugir dos velhos amigos”, explica Meghan Kaple, jovem que ficou “limpa” por 31 dias e se deixou voluntariamente revistar pela polícia há três semanas, “cansada de droga, cansada de tudo”. Está agora num centro de acolhimento para mulheres, onde segue um regime rigoroso, bem diferente da corrida diária aos opioides: “Levantar cedo, praticar ioga, terapia em grupo. Telefone proibido”. Ela começou a se drogar há onze anos: “Depois que meu médico de família me prescreveu analgésicos para uma dor nas costas…”.
Como a senhora Kaple, a maior parte das vítimas não descobriu os opiáceos por meio de uma injeção, mas tomando medicamentos receitados por seu médico. A pandemia teve início nos consultórios, camuflada pela melhor das intenções: eliminar a dor dos pacientes dando-lhes analgésicos poderosos. “Pouquíssimos toxicômanos começaram diretamente pela heroína”, confirma Stuber. “Com frequência, foi um médico que prescreveu a primeira dose, para uma dor pequena qualquer. Eles então se tornaram dependentes e só depois passaram a usar heroína.” Nas epidemias anteriores de overdose, nos anos 1970 e 1990, cerca de 80% dos usuários de drogas pesadas eram homens. Na crise atual, a proporção é praticamente a mesma. Homem ou mulher, “todo mundo vai ao médico. O vício começa com uma visita ao médico de família, ao dentista, ao especialista em medicina esportiva. Muitas mulheres que praticaram esporte no colégio e na universidade estão em tratamento”.
A caixa de Pandora foi aberta há vinte anos por diversos laboratórios farmacêuticos. Sobretudo pela Purdue Pharma e seu famoso medicamento, o OxyContin, considerado responsável pela catástrofe por todos os profissionais interrogados. Analgésico classificado como opioide antálgico dos mais fortes (nível III), o OxyContin é composto de oxicodona, um derivado da síntese do ópio. Era originalmente reservado aos doentes com câncer em fase terminal e às cirurgias de grande porte – um mercado bem modesto. A fim de ampliá-lo, o laboratório lançou em 1995 uma campanha de lobby agressivo, que propunha repensar por completo a relação com o sofrimento do paciente. A dor, não importa sua intensidade, tornou-se o novo inimigo do corpo médico. Estudos financiados pela empresa recomendavam aos profissionais considerá-la um “quinto sinal vital”, tanto quanto a pulsação, a temperatura, a pressão sanguínea e a respiração.
No ano seguinte, a Purdue lançou o OxyContin no mercado com sinal verde da Food and Drug Administration (FDA). O laboratório pôs em campo um exército de mais de setecentos representantes comerciais para propagandear os méritos do produto junto à classe médica do país. Divulgou vídeos, folhetos e jingles dedicados ao remédio miraculoso, além de imprimir 34 mil cupons oferecendo receitas gratuitas. Em 1996, as vendas do OxyContin renderam US$ 45 milhões. Quatro anos depois, chegaram a US$ 1 bilhão, ultrapassando o recorde do Viagra. Dos gabinetes de Washington ao consultório do médico de zona rural, todos os dispositivos de segurança foram ignorados.
A carreira dupla de Evans – ele foi paramédico antes de se tornar legista – lhe oferece uma perspectiva histórica do fenômeno. “Quando saí da faculdade de medicina, no início dos anos 1980, jamais se ministravam analgésicos tão poderosos quanto o OxyContin para aliviar dores em ambulatório. No fim da década de 1990, começou-se a prescrever narcóticos para a extração de dentes do siso, para torções de tornozelo… Dores fracas davam direito a uma dose de OxyContin ou de Percocet.” Os pacientes desenvolvem rapidamente tolerância a essas doses cavalares. Evans evoca uma época delirante, em que pessoas comuns, “com uma dorzinha qualquer”, corriam ao pronto-socorro para pedir comprimidos, como se fossem bombons. “Quando o médico não lhes dava Percocet, ameaçavam denunciá-lo! Fingiam estar doentes. Algumas cortavam os pulsos só para receber os comprimidos.” Injunções do governo, exigências dos pacientes e política do satisfaction client (cliente satisfeito) do hospital: “A pressão vinha de todos os lados”.
O OxyContin está bem instalado em Ohio, seguindo a corrente dos anos 2000. Em certas cidades deprimidas pelo fechamento de fábricas, o comércio desse medicamento reanimou por algum tempo a área central, graças à multiplicação dos pontos de distribuição. As falcatruas se generalizaram por causa da precariedade da assistência social. Cidadãos pobres, beneficiários do auxílio-doença, pegavam gratuitamente comprimidos em clínicas duvidosas, conhecidas como pill mills (literalmente “moinhos de pílulas”), e depois os revendiam no mercado negro, enriquecendo paralelamente os médicos cúmplices com o dinheiro do contribuinte. Em várias cidades do sudeste de Ohio, como Portsmouth, o “Oxy” se tornou moeda corrente de troca: trocava-se com o vizinho um comprimido por todo tipo de artigo.5
O número de receitas para opioides acabou atingindo índices absurdos. Em 2012, os médicos de Ohio prescreveram 793 milhões de doses, isto é, 68 comprimidos por habitante.6 Para crescer, a Purdue Pharma teria agido como um cartel, identificando as regiões mais vulneráveis do país, onde se concentram o desemprego de operários, os acidentes de trabalho e a pobreza. Além das prescrições dos médicos honestos, mas inconscientes da capacidade do produto de causar dependência, vazamentos de documentos internos revelaram que a empresa havia, conscientemente, encorajado a proliferação de clínicas duvidosas, estabelecimentos-fantoche destinados apenas ao escoamento do OxyContin.7
Os poderes públicos tardaram a reagir, pois a classe média baixa branca, principal vítima do fenômeno, não figurava entre as prioridades dos dirigentes políticos. Quando o governo percebeu o problema e iniciou a caça às receitas complacentes, já numerosos cidadãos, privados dos comprimidos, estavam procurando satisfazer sua dependência na rua. “Depois que o paciente se vicia e a validade da receita termina, ele tem de achar sua dose em algum lugar”, explica Evans. “Um Percocet, no mercado negro, custa US$ 50 o comprimido. Um saquinho de heroína, de US$ 5 a US$ 10. Mais barato que uma caixa de cerveja. Eis como convertemos toda uma população ao culto da heroína.”
A mudança do consumo de medicamentos para a heroína se fez progressiva e furtivamente. Os vendedores de heroína mexicanos – quase sempre oriundos da região de Jalisco, especializada na cultura da papoula – investiram nesse imenso mercado rural, modernizaram suas técnicas de venda e agiram mais discretamente que os traficantes das grandes cidades. Apesar da forte concorrência, que explica o baixo preço da heroína no varejo, os traficantes do interior não precisam de armas de fogo para acertar suas contas ou defender seu território. O pó é encomendado por SMS e a entrega se faz de carro pelos vendedores, que adotaram o conceito de “cliente satisfeito”, distribuem cartões de visita e oferecem programas de fidelidade… “No começo, talvez você precise correr o risco de ir a lugares perigosos. Mas, feitas as conexões e se você for um bom cliente, é como encomendar uma pizza”, explica Barrett. Quando o consumidor tenta se abster e não telefona mais para o vendedor, o vendedor telefona para ele ou bate à sua porta, oferecendo-lhe doses.
Após a entrada no mercado do OxyContin, as ondas de drogas se superpõem como sedimentos nas margens do Lago Erie, sem que uma jamais desloque completamente a outra. Aos comprimidos com receita médica, como o OxyContin, depois à heroína, acrescentam-se agora outras substâncias sintéticas de poder aterrador. As autoridades enfrentam um monstro de várias cabeças e nenhuma delas ainda foi cortada.
Indefesa, a população assume dois tipos de atitude. “Metade está afetada pelo vício de um parente”, explica Stuber. “Sabe que a dependência é uma doença e necessita que se encontre uma solução. A outra metade acha que as drogas não têm desculpa. Estes, enquanto não veem seu próprio filho estendido sobre o tapete do quarto, pensam que o problema é dos outros.” Nas conferências de prevenção organizadas nas cidades, os profissionais ouvem com frequência que os traficantes devem morrer. “Mas o primeiro traficante é o médico de família ou a gaveta de remédios dos pais”, protesta Evans. “Oitenta por cento de nossas crianças se envolvem ao encontrar uma receita do papai ou da mamãe… Você tem 15 anos, seus amigos vêm dormir em sua casa, você rouba um Percocet. Papai e mamãe devem ser fuzilados por isso?”
*Maxime Robin é jornalista.