Paisagens antes da guerra
Indesejáveis para o regime turco, os curdos são tolerados pelo governo de Teerã (existem 10 milhões no Irã, quase 15% da população do país). Seu sonho é um só: que Bush bombardeie logo o Iraque para poderem voltar para sua terra…Michel Verrier
Próxima do Irã, a cidade de Van desce em suave declive para as margens do lago, um verdadeiro pequeno mar interno de 37 mil km². Desde o fim dos confrontos entre o exército turco e a guerrilha do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), é perceptível o alívio na região, que continua sofrendo um controle cerrado do exército. “O exército está aqui simplesmente porque somos curdos e porque ser curdo é não ser gente de bem”, comenta, sarcástico, Hamdi Demir, dirigente do Hadep, um partido pró-curdo ameaçado de dissolução. Este homem, de mais ou menos sessenta anos de idade, vestido de terno, tem o porte de um sábio, a fala simples e penetrante.
Do menor vilarejo às grandes cidades, não há um único teto sem parabólica. As famílias curdas que vivem no Leste da Turquia assistem à Medya-TV, a televisão “próxima do PKK” segundo Ancara. Militarmente, Ancara ganhou a batalha. Depois da prisão em 1999 e do apelo para o cessar-fogo de Abdullah Öçalan, seu chefe, os guerrilheiros, que tinham ido para as montanhas desde o início da década de 80, caíram fora e se retiraram para o norte do Iraque. Mas o Estado turco perdeu a guerra midiática, a batalha das telas, após haver tentado, durante anos, confiscar as antenas via satélite. O exército controla as estradas, mas não as ondas.
Os obstáculos do ensino da língua
Em vigor há décadas na região curda, o estado de emergência foi suspenso em junho de 2002, na Turquia, três anos após a guerrilha abandonar a luta armada
Num quarto decorado com fotografias de curdos, cerca de dez universitários, rapazes e moças, tomam chá e reconstituem a história de sua mobilização pela língua curda que, desde o último inverno, é falada em 53 universidades. “Nossa reivindicação é clara”, explica Huseyin, 20 anos. “Queremos ter o direito de aprender o curdo como segunda língua, do mesmo modo que o inglês, o espanhol, o persa ou o árabe. Para nós, não se trata de transformar o curdo em língua de ensino em detrimento do turco. É o governo que apresenta dessa maneira nossa reivindicação, para nos desacreditar. Em Van, havíamos coletado 2.000 assinaturas. Queríamos transmiti-las ao reitor da universidade. Mas impuseram-nos que viéssemos entregá-las individualmente.”
A sentença saiu dois meses depois: “O movimento de vocês é uma campanha do PKK.” Vários ativistas foram presos e expulsos da universidade. Após uma greve de fome, em maio, alguns foram julgados e condenados no dia 18 de agosto pelo Tribunal Superior de Segurança, de Istambul. Nesse meio tempo, o Parlamento de Ancara havia, no entanto, reconhecido o direito de estudar as línguas “minoritárias”, votando, no dia 3 de agosto, um pacote de medidas compatibilizando as leis e a Constituição com “os critérios de Copenhague” – normas a que se devem submeter os países candidatos à adesão à União Européia. Mas, segundo o texto oficial, o ensino das “línguas e dos sotaques (sic) falados pelos cidadãos turcos” – “curdo” continua sendo um termo tabu – continuará privado e “os cursos não devem infringir os princípios, a Constituição e as leis da República Turca, nem questionar a integridade do país e da nação”. Duas “correções” que podem reduzir a nada as novas leis.
Desemprego chega a 80%
A cidade de Van, na região curda, tem uma taxa de desemprego de 80%. Expulsos do meio rural, os camponeses se amontoam em campos de refugiados
No decorrer da discussão, nossos interlocutores questionam a mudança de estratégia do PKK. Através da Medya-TV, a maioria deles acompanhou os episódios da evolução do partido rebelde. O fim da era da guerrilha, em proveito da adoção de uma estratégia pela democracia nos quatro países em que vivem os curdos – a Turquia, o Iraque, a Síria, o Irã. A criação do Kadek (Congresso do Curdistão pela Democracia), sobretudo, lhes convém. “O mundo muda, é preciso viver com nosso tempo”, comenta Cemal, que está mergulhado na leitura do livro escrito por Öçalan em sua cela, na ilha de Imali.
Em vigor há décadas na região curda, o estado de emergência foi suspenso no dia 20 de junho de 2002, três anos após o fim da guerrilha, sendo prolongado por mais quatro meses nas províncias de Diyarbakir e de Sirvan. Quase não se percebe a mudança. Em Bingol, cerca de trinta organizações políticas, associações e ONG, no dia 2 de julho, constatavam em comum: “Ainda que o estado de emergência tenha sido suspenso há três anos, a repressão contra as instituições e as organizações democráticas continua.”
Van tem uma taxa de desemprego de 80%. Os aldeões expulsos do meio rural se amontoam na cidade, em campos de refugiados. De 520 vilarejos destruídos na região – acusados de apoiar a guerrilha -, apenas noventa foram devolvidos a seus habitantes. Nos outros, Ancara quer realojar os expulsos em novos prédios, construídos para agrupar várias aldeias e freqüentemente longe das terras que cultivavam antes. Eles recusam e preferem ficar na cidade, inativos, incapazes de retomar a agricultura e a criação, dois dos recursos essenciais da região.
A intervenção “inevitável” dos EUA
Décadas de guerra, de militarização e de um status especial na região deram origem a uma hidra burocrática em que os clãs e a máfia fizeram seu ninho
As milícias de guardas de vilarejo, constituídas pelas tribos curdas pró-Ancara e encarregadas de perseguir os guerrilheiros, continuam ativas e, algumas vezes, se apropriaram das terras das famílias deslocadas, atiçando seu descontentamento.
Vinte anos de guerra e décadas de militarização e de um status especial imposto à região deram nascimento a uma hidra burocrática e militar onde os clãs e a máfia fizeram seu ninho. Desde o fim da guerrilha, a reconversão é difícil. O monstruoso aparelho é hostil a qualquer tomada de poder pelos curdos na região deles e, por extensão, à sua participação no poder central em Ancara, no âmbito das instituições da República Turca. As eleições antecipadas, convocadas na Turquia para 3 de novembro, irão permitir que a maioria desejada pelos eleitores no Leste do país coincida com a maioria institucional no Parlamento? O Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP, partido islâmico moderado) e o Dehap, partido pró-curdos que substituiu o Hadep, ameaçado de interdição, aparecem bem colocados nas pesquisas de opinião. Uma combinação que irrita de modo particular o Estado-Maior militar turco, que conserva até hoje seu poder institucional.
Uma intervenção militar lançada pelos Estados Unidos contra o Iraque, neste outono ou no inverno, poderia congelar a situação na Turquia, com o exército reassumindo a condição de protagonista do espetáculo. O temor de uma fragmentação do Iraque e da proclamação de um Estado curdo independente em suas fronteiras é uma verdadeira obsessão para Ancara, que impôs quatro condições para participar da “inevitável” intervenção dos Estados Unidos, quando da visita do secretário adjunto da Defesa, Paul Wolfowitz, no dia 17 de julho: a revogação de uma dívida militar de quatro bilhões de dólares; a atribuição dos créditos indispensáveis à redução dos efeitos econômicos de uma nova intervenção para a economia; a garantia da integridade territorial do Iraque; a recusa de qualquer Estado curdo e mesmo do simples controle pelos curdos da região de Kirkouk, sua capital histórica, rica em petróleo.
Deputados curdos no Irã
Em Van, a rebelião dos curdos iraquianos na primavera de 1991, ao final da guerra do Golfo, seguida por seu êxodo, aos milhões, para as montanhas, conturbou a região. Os curdos da Turquia acompanham com mais atenção ainda a evolução da queda-de-braço entre Washington e Bagdá. “Se visa somente a suprimir Saddam para colocar um outro ditador em seu lugar, a intervenção norte-americana será negativa”, avalia Hamdi Demir. “Porém, se for para permitir uma solução democrática em Bagdá, ótimo. Nesse caso, nada a temer: os curdos do Iraque não fugirão das montanhas para tentar se refugiar aqui…”
Com freqüência, os curdos vivem sua história por procuração, além das fronteiras que os separam. As famílias e as tribos têm parentes e pessoas próximas em cada lado das fronteiras. Dois dos irmãos e uma irmã de Demir, por exemplo, moram no Irã. Uma situação que é comum na região. “Lá a vida é mais fácil para eles”, observa Demir. “Tanto no plano econômico como no plano cultural. Eles podem se expressar livremente enquanto curdos. Até elegeram deputados para o Parlamento de Teerã.”
“Curdistão norte”: o cartaz, na avenida periférica que contorna o centro da capital iraniana, pode parecer anódino. No entanto, tais placas são inimagináveis em Ancara, onde a simples palavra “Curdistão” pode sempre provocar a ira da justiça.
O fim da luta armada
Uma intervenção militar dos Estados Unidos contra o Iraque poderia congelar a situação na Turquia, com o exército reassumindo o comando do espetáculo
O Irã tem mais de 10 milhões de curdos, de um total de 70 milhões de habitantes. Eles já se beneficiam de uma parte significativa dos direitos elementares que, até este verão, eram recusados aos curdos da Turquia. O Centro Cultural Curdo de Teerã organizava, aliás, nos dias 30 e 31 de maio de 2002, a primeira conferência científica sobre o ensino da língua curda. Uma pessoa próxima do presidente Mohamad Khatami, que assistia à reunião, convidou especificamente os participantes a empreenderem a elaboração de um livro de ensino do curdo.
“Nossa luta vem de longe”, frisa Bahran Valadbaigi, diretor do Centro. “Os curdos do Irã fundaram, em 1945, a República de Mahabad, esmagada um ano depois pelo governo central. Participamos da revolução de 1978 contra o Xá. Mas, na época, não conseguimos os direitos a que deveríamos ter acesso.” Os combatentes do Partido Democrático do Curdistão do Irã, de Abdul Rahman Ghassemlou, libertariam novamente sua região antes de serem atacados e, depois, militarmente derrotados pelos pasdarans.
Porém, como na Turquia, uma parte significativa do movimento curdo iraniano decidiu abandonar definitivamente a luta armada. “É uma questão de geração”, afirma Valadbaigi. “Nossa nova estratégia leva em conta as mudanças no mundo: a queda do muro de Berlim, a dissolução dos blocos, a globalização, a Internet. Baseia-se na cultura, nos filmes, na língua, na busca da democracia.”
Em busca de um “divórcio amigável”
“A guerra continua, mas substituímos a Kalashnikov pela caneta”, resume sorrindo Bakhtiar, um jovem curdo de Sanandaj. Vinte e dois deputados curdos representam seus concidadãos no Parlamento de Teerã. Eleitos como deputados independentes, não têm liberdade de se juntarem num partido em prol dos curdos. “Mas queremos participar do exercício do poder central”, insiste Valadbaigi. “Não aceitamos mais ser postos de lado.”
Aqui se acompanha, com carinho, a experiência dos vizinhos curdos do Iraque, donos de sua própria região. Para os curdos do Irã, ela aparece um pouco como uma reedição da República de Mahabad. Uma intervenção dos Estados Unidos para derrubar Saddam Hussein representaria, antes de tudo, “uma medida de precaução”, intervém Valadbaigi. O regime de Bagdá “dizimou nossos irmãos e não hesitou em usar qualquer meio, inclusive armas químicas”, insiste. “Nada garante que não o tente fazer de novo.”
Sanandaj, a 250 quilômetros de Teerã, é a capital da região iraniana oficialmente denominada Curdistão. Diante de um imponente edifício dos pasdarans, Kayvan, um dirigente curdo, confia: “Não é nosso mundo, mas tivemos que nos adaptar.” Sua esposa, que a contragosto usa o véu negro, concorda com ele. “Os checos e os eslovacos pelo menos chegaram a um divórcio amigável: separaram-se sem lutar. Por que não podemos fazer a mesma coisa? A gente vota, a gente escolhe, é um direito.”
Divergências no Curdistão autônomo
O Irã tem mais de 10 milhões de curdos – que se beneficiam de alguns direitos elementares que, até este verão, eram recusados aos curdos da Turquia
A força das manifestações de apoio que se reuniram aqui, quando da prisão do líder do PKK, foi surpreendente. “Em Sanandaj houve trinta mortos”, conta um jovem curdo. “A manifestação descambou sob a pressão de jovens, que começaram a gritar slogans em favor de Abdullah Öçalan e depois continuaram reivindicando liberdade para os curdos do Irã, atacando o governo de Teerã e a República islâmica.” “Antes de ir bombardear Bagdá”, solta um de seus companheiros, “os Estados Unidos podiam passar primeiro por aqui e lançar algumas bombas sobre nosso regime.”
Montanhas peladas, pequenas cidades incrustadas com avenidas cheias de palmeiras, estradas estreitas. À medida que se aproxima da fronteira iraquiana, a rodovia Kermanchah-Bagdad é ladeada por destroços de tanques e de carros blindados, vestígios da guerra entre o Irã e o Iraque (1980-1988). Atrás dos fios de arame farpado e dos sacos de areia, soldados armados continuam a postos. Em Quasre a Sinji, a fronteira com o Iraque é aberta dois dias por semana.
Com sua bandeira verde e rosa, a União Patriótica do Curdistão (UPK), partido de Jalal Talabani, recentemente admitido no quadro da Internacional Socialista, é onipresente nessa área do norte do Iraque. A região curda vizinha, ao lado da Turquia e da Síria, é controlada pelo partido de Massoud Barzani, o Partido Democrático do Curdistão (PDK). Depois dos anos de confronto entre as duas facções, reina a calma. Uma “guerra suicida” que fez cerca de 3 mil mortos. A chave das divergências que dividiram o Curdistão autônomo, continua sendo, segundo Baran Saleh, primeiro-ministro do governo regional, a coleta pelo PDK de impostos alfandegários na fronteira Iraque-Turquia e sua distribuição em proveito da região por ele controlada.
Uma fila de carros à porta…
Mas, supervisionada por Londres e Washington desde 1998, a reconciliação entre os dois partidos foi concluída. No dia 6 de agosto, delegações das duas organizações se reuniram em Koisinjaq para reativar o funcionamento da Assembléia Nacional Curda Unificada, eleita em 1992. Depois, no dia 7 de setembro, Barzani recebeu em Saladdin, seu feudo, Talabani, que voltava de uma viagem a Washington, Londres e Ancara, onde participara de encontros da oposição iraquiana reunindo principalmente curdos, xiitas e oficiais do exército iraquiano que fugiram de seu país durante a última década. Os dois homens decidiram convocar novamente o Parlamento curdo em Erbil, no dia 4 de outubro, e unificar as posições de seus partidos quanto ao futuro do Iraque, o federalismo, a democracia, as relações de seu país com os países vizinhos e na arena internacional.
Porque “a situação atual do Curdistão do Iraque continuará instável enquanto o regime de Saddam Hussein reinar em Bagdá”, afirma Saleh, “E enquanto ele não for substituído por um poder democrático, reconhecido pelos iraquianos e do qual os curdos serão parte interessada. O Estado iraquiano atual está completamente falido. Os árabes sabem disso e já se colocam a questão de governar com os curdos.”
Alto, testa larga, vivo e de gestos amplos, Saleh, de mais ou menos quarenta anos, mora no centro de Suleymanieh, numa ruazinha com as extremidades barradas por uma grade denteada. Peshmergas armados fazem a guarda. Em março de 2002, escapou de um atentado. Seus seguranças foram mortos. Diante de sua porta está alinhada uma fila de carros que brilham de novos e que são idênticos, por medida de segurança. Quando se desloca, nunca se sabe em qual deles está.
Jornais, rádios e canais de televisão
Como na Turquia, uma parte significativa do movimento curdo iraniano decidiu mudar de estratégia e abandonar definitivamente a luta armada
Saleh já se vê em Bagdá e recusa esse “realismo político de visão estreita”, segundo o qual os curdos correriam um grande risco se participassem de uma intervenção norte-americana contra o regime de Saddam Hussein. Não se trata, evidentemente, de se associar a “qualquer plano ou aventura”. Ao contrário da Aliança do Norte no Afeganistão, antes da queda do regime dos talibans, as organizações curdas já controlam cerca de um terço do país. “Tínhamos 804 escolas em 1991; hoje temos mais de 2.700. Em dez anos, construímos duas vezes mais escolas do que foram construídas em sete décadas. Multiplicamos por quatro o número de médicos. O nível de vida aqui é muito superior ao das regiões controladas por Bagdá.” E acrescenta: “Ninguém vive com o temor de ser acordado pela polícia secreta batendo à porta no meio da noite.”
Às 18 horas, as calçadas de Suleymanieh e as aléias do bazar, que transbordam de mercadorias, estão repletas de gente. No câmbio, na compra do dólar, a moeda iraquiana do Curdistão vale dez vezes a moeda iraquiana oficial reconhecida em Bagdá. Os cambistas são numerosos. A cidade possui um banco central, mas não tem acesso ao circuito bancário internacional.
A informação é livre. Encontra-se uma quantidade enorme de jornais, quase sempre ligados a um partido. Estes também possuem, quase sempre, seu canal de televisão, sua rádio. Portanto, seria prematuro falar de imprensa independente. Mas os habitantes podem assistir ao canal de televisão de sua escolha e navegar à vontade na Internet. A imprensa do PDK está disponível em Suleymanieh. Ora, depois da guerra entre as duas facções, o partido de Barzani não tinha mais representação oficial nos territórios controlados pelo partido de Talabani. E vice-versa.
Direitos das minorias étnico-religiosas
Uma intervenção dos Estados Unidos para derrubar Saddam Hussein significaria, para um dirigente curdo iraniano, antes de tudo, “uma medida de precaução”
Na grande avenida que leva ao centro da cidade, hotéis e restaurantes ficam lado a lado com lojas em que se vendem livremente bebidas alcoólicas. Algumas mulheres usam o véu preto sobre suas roupas, mas muitas se vestem “à moda ocidental”. O véu não é proibido, como na Turquia, nem obrigatório, como no Irã. “As liberdades individuais se impõem”, assegura Saleh. “Constam da lei. Nenhuma ideologia oficial deve ditar a quem quer que seja o modo de viver.” A poligamia foi proibida. Os assassinatos de honra – uma tradição que “tolera” que a família mate as mulheres que não respeitam suas injunções matrimoniais – agora são proibidos e “passíveis das penas mais pesadas”, insiste nosso interlocutor. Aplica-se a mesma política em relação a essa questão na região controlada pelo PDK.
Turcomanos, assírios e cristãos caldeus, assim como os curdos yazidis, têm seu lugar claramente definido e gozam de seus direitos de minorias étnicas ou religiosas. Uma condição prévia para qualquer desenvolvimento democrático. Mas, na região de Halabja, próxima da fronteira iraniana, grupos de Ansars El Islam – ligados à Al-Qaida, segundo as autoridades regionais curdas1 – se enraizaram em vários vilarejos. É uma ameaça política séria para o governo regional. A liberdade de pensamento, o laicismo instaurado na região, como o livre acesso ao álcool ou a ausência de pressão quanto às vestimentas, podem dar margens à crítica “radical”. E com mais razão ainda nas camadas pobres da população, que não podem se permitir o modo de vida ocidental apreciado pelos dirigentes.
Saddam Hussein está “chegando ao fim”
No campus da universidade, em contrapartida, os fundamentalistas islâmicos não têm, aparentemente, qualquer influência. São 6 mil alunos, rapazes e moças. O ensino é em língua inglesa para as matérias científicas e em árabe para as matérias literárias, história, geografia. Em compensação, desde 1991 e depois que os curdos assumiram o controle da região, o ensino primário e secundário em língua curda generalizou-se. No instituto universitário de “curdologia”, da Universidade de Suleymanieh, trabalha-se pela unificação da língua curda2, explica Kamal H. Khoshnaw, reitor da universidade: “Pensa-se em adotar o alfabeto latino, que os curdos já utilizam na Turquia, abandonando o alfabeto árabe, atualmente em vigor no Iraque e no Irã.”
“Ao longo de nossos anos de guerra, depois que tomamos o caminho da guerrilha e das montanhas, em 1975, sempre nos dissemos: no próximo ano, estaremos em Kirkouk. E estávamos enganados”, explica Jalal Talabani. “Mas desta vez, acredito nisso: no ano que vem estaremos em Bagdá.”
Com a bandeira verde e rosa, a União Patriótica do Curdistão, recentemente integrada à Internacional Socialista, é onipresente na área do norte do Iraque
Segundo o líder da UPK, a era Saddam Hussein está chegando ao fim. Porém, se decidiram derrubar o regime de Bagdá, os Estados Unidos ainda não escolheram quando nem como. “E enquanto essas duas questões não forem resolvidas, não podemos dizer se apoiaremos sua intervenção”, esclarece o dirigente curdo. E acrescenta: “Saddam Hussein está totalmente isolado da população iraquiana, ele é incapaz do menor gesto de abertura. Nem a Internet nem as antenas satélites são admitidas em Bagdá. As palavras do presidente são lei, mesmo que a Constituição diga o contrário. É o reino absoluto do terror, da força. Se você não concorda com a situação, você é enforcado.” Cerca de três ou quatro milhões de iraquianos tiveram que fugir do país para escapar da ditadura.
Como “na Alemanha do pós-guerra”
Para Talabani, o futuro do Iraque passa pela instauração de uma república – laica, democrática e federativa. “Gostaríamos, acima de tudo, que esse novo Estado fosse instaurado pacificamente, através do diálogo, como se deu a transição, por exemplo, no Leste da Europa.” O Parlamento de Bagdá acaba de confirmar Saddam Hussein em suas funções de presidente para um mandato de sete anos. Pseudo-eleições terão lugar no dia 15 de outubro. Talabani quer dar uma última chance ao regime, lançando um apelo ao presidente iraquiano “para que ele ponha fim ao reinado do partido único, constitua um governo representativo de todo o povo iraquiano e abra caminho para eleições livres.” Mas se tal proposta for rejeitada, “a intervenção norte-americana será inevitável.”
Esta poderia consistir, inicialmente, numa campanha de ataques aéreos concentrados sobre os últimos pilares do regime – as casernas da guarda republicana e as tropas da guarda pessoal de Saddam Hussein. “Nesta hipótese, essas forças resistiriam provavelmente duas, ou mesmo três semanas, no máximo”, avalia Saadi Pira, responsável pelas relações internacionais da UPK. Quanto ao exército regular iraquiano, considera-se, entre os curdos, que não defenderia o regime diante de uma ofensiva de Washington. Sofreria uma onda de deserções e de insurreições de regimentos maior ainda que durante o fim da guerra do Golfo.
Caberia aos iraquianos, curdos e árabes, derrubar o regime, considera a oposição iraquiana. Ela garante poder contar com pelo menos 200 mil homens armados e deseja evitar qualquer desembarque em massa de tropas estrangeiras em seu território. Depois de assumir o controle da capital e das principais grandes cidades, “a situação seria mais ou menos idêntica à da Alemanha após a guerra”, observa Saadi Pira, germanista e que viveu 15 anos na Áustria. “Devemos partir do princípio de que a maioria dos membros do partido Ba?ath não podia ter outra saída. Será necessário reintegrá-los no contexto da nova legalidade que implantaremos.”
O fantasma de um “novo Chipre”
Ao contrário da Aliança do Norte no Afeganistão – antes da queda do regime taliban -, as organizações curdas já controlam cerca de um terço do Iraque
“Se o regime de Saddam Hussein for derrubado, então haverá liberdade, democracia”, garante Talabani. “Todo mundo irá às urnas e depois decidiremos. Quanto a nós, temos boas relações com todos os partidos: comunista, sunitas, xiitas, nasseristas, liberais, democratas. É o governo de Bagdá que divide as pessoas e joga-as umas contra as outras.”
O líder da UPK não teme, absolutamente, a instauração de uma região fundamentalista no sul do Iraque: “Mohammad Bakir Al-Akim, dirigente do Conselho Supremo da Revolução Islâmica, não mandará seu pessoal ao Curdistão para fechar os locais em que se vendem bebidas alcoólicas.” Ele se mostra partidário de um regime parlamentarista. Todos os xiitas, aliás, estão longe de ser fundamentalistas. Os nacionalistas e o Partido Comunista tinham muita força na região xiita do sul do Iraque, lembra nosso interlocutor. “Evidentemente”, conclui, “os curdos sonham sempre com um Curdistão unificado. Mas isso significa que não se leve em conta a realidade. Para isso seria necessário, ao mesmo tempo, mudar o Iraque, a Turquia e o Irã. Nós sonhamos com um Iraque democrático. Deixemos que primeiro este sonho vire realidade.”
Um tal abalo poria à prova os países vizinhos. O acesso dos curdos ao poder em Bagdá fortaleceria a reivindicação curda no Irã e na Turquia. A instauração de uma região autônoma no âmbito de um Estado federal iraquiano se tornaria fonte de referência. No fundo, é isso que teme Ancara, que já se arroga o direito de fiscalizar a configuração de um novo Iraque, particularmente no que se refere à região de Kirkouk, em nome da minoria turcomana que ali vive. “Será dos Estados Unidos a responsabilidade de evitar a criação de um ?novo Chipre? na região”, dizem em Suleymanieh.
Busca da democracia ou manipulação?
Caberia aos iraquianos, curdos e árabes, derrubar o regime, diz a oposição iraquiana, que garante poder contar com pelo menos 200 mil homens armados
O Irã, por sua vez, não lamentará o regime de Bagdá que foi apoiado, por baixo do pano, pelos Estados Unidos na guerra que dilacerou os dois países durante uma década. Se têm a preocupação com o fato serem o próximo alvo na lista norte-americana, os dirigentes iranianos mantêm relações contínuas com os curdos e os xiitas – que pesarão sobre o desenrolar do novo governo em Bagdá. E Al Hakim é um familiar da capital iraniana, onde mora desde o início da década de 80.
A substituição do regime de Saddam Hussein por um governo aliado aos Estados Unidos coroaria, na região, a redistribuição das cartas começada com