Palavra de especialistas
A Rand Corporation, um centro de pesquisa, publicou um estudo das sete operações de ’nation building’ (reconstrução nacional) lançadas pelos Estados Unidos desde 1945: Alemanha e Japão e, mais tarde, Somália, Haiti, Bósnia, Kosovo, Afeganistão e IraqueDominique Vidal
“É um maravilhoso manual para a estabilização e reconstrução pós-conflito. Guardei uma cópia dele para consultar assim que chegar a Bagdá e recomendo sua leitura.” Entusiasmado, o enviado do presidente George W. Bush ao Iraque, Paul Bremer, refere-se nesses termos ao recente estudo comparativo das sete operações de nation building lançadas pelos Estados Unidos desde 1945 (Alemanha e Japão, após a II Guerra Mundial e, depois, na década de 90, Somália, Haiti, Bósnia, Kosovo, Afeganistão e Iraque1). O interesse desse documento se deve também a seu editor: a Rand Corporation, um centro de pesquisa criado em 1948 pela Aeronáutica norte-americana e que, embora tenha se tornado independente, continua sendo parte interessada nas discussões que preocupam o executivo norte-americano.
Os casos da Alemanha e do Japão, conforme explicam os pesquisadores, mostraram que “a democracia era transferível”, que “algumas sociedades podiam, em certas circunstâncias, ser incentivadas a se transformarem, elas mesmas, de modo duradouro”. Essas duas operações representam, “em matéria de reconstrução nacional imediatamente após um conflito, um padrão que não foi igualado desde então”. De fato, as quatro décadas seguintes conheceram “poucas tentativas de repetição desses sucessos”. Das 55 operações de paz montadas desde 1945 pela ONU, 41 – ou seja, 80% delas – ocorreram depois de 1989.
As críticas do candidato Bush
“Com o fim da guerra fria, os EUA ficariam livres para intervir e para conduzir transformações mais fundamentais em sociedades devastadas pela guerra”
“Durante a guerra fria”, continua o documento da Rand, “os Estados Unidos e a União Soviética tinham, cada um deles – e mesmo ambos, em alguns casos – apoiado um certo número de Estados fracos por razões geopolíticas. [?] Privados de tal apoio, esses Estados e outros se desintegraram. [?] Depois do fim da guerra fria, os Estados Unidos ficariam livres para intervir, não só para manter um cessar-fogo ou restaurar um statu quo, mas também para conduzir transformações mais fundamentais em sociedades devastadas pela guerra”.
Mas “os custos e os riscos da reconstrução nacional continuaram altos. Foi por isso que os Estados Unidos não investiram nela levianamente”. Abandonaram a Somália em 1993 ante a primeira resistência. No ano seguinte, em Ruanda, preferiram apostar em esforços internacionais. Em seguida, hesitaram antes de se juntar aos europeus na Bósnia e, depois, antes de se engajar militarmente no Kosovo. E, no entanto, cada uma dessas intervenções “foi mais ampla e mais ambiciosa que a anterior”.
Em 2000, o candidato George W. Bush criticara o demasiado número de frentes de nation building iniciadas pelo governo Clinton. Obrigado a enfrentar “um desafio semelhante no Afeganistão”, o presidente Bush adotou, então, objetivos “mais modestos”, antes de se aventurar, com o Iraque, numa situação de “amplitude comparável às tentativas ainda em curso na Bósnia e no Kosovo e cuja escala só pode ser comparada às anteriores invasões norte-americanas da Alemanha e do Japão. A reconstrução nacional é, aparentemente, uma responsabilidade a que a única superpotência do mundo não pode escapar”.
Unidade de comando e participação militar
“Os custos e os riscos da reconstrução nacional continuaram altos.” Por isso, os EUA abandonaram a Somália em 1993 e, no ano seguinte, Ruanda
Os êxitos do pós-1945 resultaram, é claro, da economia altamente desenvolvida dos países implicados. O essencial, contudo, não é “a reconstrução econômica, mas a transformação política”. A incapacidade, por parte dos Estados Unidos, de “instalarem democracias viáveis” na Somália, no Haiti ou no Afeganistão, por exemplo, explica-se também pelas “divisões étnicas, sócio-econômicas ou tribais” Entretanto, os pesquisadores observam que “os ódios intercomunitários” são “ainda mais acentuados na Bósnia e no Kosovo, onde o processo de democratização teve, apesar de tudo, algum progresso”.
A verdadeira diferença, conclui o documento da Rand, está nos “esforços dos Estados Unidos e da comunidade internacional”. Washington e seus aliados investiram, no pós-guerra, vinte e cinco vezes mais dinheiro e cinqüenta vezes mais tropas no Kosovo do que no Afeganistão. E, por habitante, o Kosovo recebeu 800 dólares, ao invés dos 200 dólares na Alemanha?
Mas os Estados Unidos, que representavam a metade do Produto Bruto mundial em 1945, totalizam, em 1990, apenas 22% dele. Conclusão: “A partilha internacional dos custos tornou-se mais importante politicamente para os Estados Unidos e, ao mesmo tempo, mais aceitável para os outros países”. Por este motivo, ao longo da década de 90, Washington “debateu-se com este problema: como conseguir uma grande participação nos processos de reconstrução nacional preservando, simultaneamente, uma unidade de comando adequada?” Na Somália e no Haiti, os Estados Unidos quiseram a substituição rápida de uma força internacional financiada pela ONU. Na Bósnia e no Kosovo, combinaram unidade de comando e ampla participação militar através da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).
Operações multilaterais e unilaterais
“A reconstrução nacional é, aparentemente, uma responsabilidade a que a única superpotência do mundo não pode escapar”, afirma o estudo da Rand
O Kosovo aparece, certamente, como “o melhor amálgama surgido até hoje de leadership norte-americano, participação européia, ampla divisão dos custos financeiros e grande unidade de comando”. Apesar de os Estados Unidos terem conseguido “manter um papel dirigente satisfatório, pagando por isso apenas 16% dos custos de reconstrução e fornecendo somente 16% das tropas de manutenção da paz”. Tal sucesso depende essencialmente da “capacidade dos Estados Unidos e de seus principais aliados para chegarem a uma visão comum dos objetivos do empreendimento e elaborarem, assim, uma resposta das instituições envolvidas – principalmente a Otan, a União Européia e a ONU – em relação aos objetivos definidos”.
Chegando às conclusões, os pesquisadores pesam as vantagens e os inconvenientes das operações multilaterais e unilaterais, respectivamente. As primeiras, observam eles, são “mais complexas e exigem mais tempo que os esforços unilaterais, mas são também muito menos caras para os participantes”. Porém, “a unidade de comando e uma ampla participação” só são “compatíveis” se “os principais participantes partilham uma visão comum e podem dar forma, com base nesta visão, a instituições internacionais”. Outra condição diz respeito aos meios empregados: “Parece haver uma correlação inversa entre o porte da força de estabilização e o grau de risco. Quanto maior a proporção de tropas de estabilização, menor o número de vítimas sofrido ou infligido.”
O investimento da aventura iraquiana
A aventura iraquiana, considera o documento da Rand, “exigirá, por muito tempo, um grande investimento de recursos financeiros, humanos e diplomáticos”
Faltava o essencial: a aplicação dessas conclusões ao Iraque, “o programa de reconstrução nacional mais ambicioso desde 1945”. Porque a herança desse país apresenta, escrevem os pesquisadores, desafios perigosos: ausência de tradição democrática; divisões étnico-religiosas; crime organizado; desaparecimento da classe média. Mas o Iraque também não deixa de ter trunfos: seu governo nacional reduzirá, uma vez reconstruído, o fardo internacional. Sem falar das riquezas petrolíferas do subsolo…
Entretanto, “as divisões de antes da guerra dentro do Conselho de Segurança tornam mais difícil para os Estados Unidos a aprovação do modelo de divisão dos custos adotado na Bósnia, no Kosovo e mesmo no Afeganistão”. Além disso e pelas mesmas razões, Washington foi “incapaz de começar, antes da guerra, qualquer tipo de preparação para facilitar a transição do pós-guerra”.
É por isso que a aventura iraquiana, considera a Rand, “exigirá, por um longo período, um grande investimento de recursos financeiros, humanos e diplomáticos”. Em resumo, os Estados Unidos – para esta quinta operação em um país muçulmano em pouco mais de uma década – não poderão “permitir-se pensar em estratégias de desengajamento rápido nem deixar o trabalho pela metade. A verdadeira questão não é saber com que rapidez eles poderão sair, mas com que rapidez e até que ponto poderão dividir o poder com os iraquianos e com a comunidade internacional, conservando, entretanto, poder suficiente para supervisionarem uma transição duradoura para a democracia”.
O escândalo da pilhagem do Iraque
A pilhagem do Iraque por grupos ligados a dirigentes norte-americanos do alto escalão constitui, atualmente, um escândalo de primeira grandeza
A mensagem, portanto, é clara: diante do caos iraquiano, a Rand luta pela manutenção da operação norte-americana, mas sob uma forma tão multilateral quanto possível a fim de garantir o comando de Washington e, ao mesmo tempo, a divisão dos custos.
Como acontece em muitos documentos do gênero, os silêncios desse estudo esclarecem seu sentido tanto quanto o clamor de suas afirmações. Sua leitura mostra dois impasses que impressionam. O primeiro é a ausência dos povos dos países envolvidos: nunca aparecem nas considerações dos pesquisadores da Rand, como se eles não tivessem nenhum papel a desempenhar na reconstrução de seu próprio país – exceto no caso da Alemanha e do Japão, para se assinalar que “os sobreviventes não estavam dispostos a contestar sua derrota”. O segundo é o silêncio que pesa sobre os lucros obtidos nessas operações por um certo número de empresas norte-americanas. Ora, a pilhagem do Iraque – e dos impostos dos cidadãos norte-americanos – por grupos que, na maioria das vezes, são ligados a dirigentes norte-americanos do alto escalão constitui, atualmente, um escândalo de primeira grandeza.
Na verdade, o Centro para a Integridade Pública revelou, no fim de outubro de 2003, que as setenta principais empresas beneficiárias, em dois anos, de 8 bilhões de dólares de contratos no Afeganistão e no Iraque, tinham “dado mais dinheiro a Bush para sua campanha do que a qualquer outro político há 12 anos”. Aparecem em primeiro lugar, com 2,3 bilhões, a Kellogg e a Brown & Root, filial da Halliburton, dirigida por Richard Cheney de outubro de 1995 até sua chegada à Vice-Presidência dos Estados Unidos.
“Desde então, rompi qualquer vínculo com a empresa”, garantiu o interessado. No entanto, ele recebeu da Halliburton 205.298 dólares em 2001 e 162.392 em 2002 – sem contar os 34 milhões de indenização quando deixou a companhia. Continuará recebendo durante dois anos, a título de seus “salários atrasados”, e por possuir ações da sociedade no montante de 433.333 dólares, valor que poderia chegar, no ritmo atual, a
Dominique Vidal é especialista em Oriente Médio e membro sênior da equipe editorial de Le Monde Diplomatique (França).