Se fossemos indagar às pessoas o que elas consideram ser uma vida digna, variadas seriam as respostas, mas alguns elementos em comum, certamente, apareceriam, tais como o acesso à moradia, ao transporte, à segurança, à educação e à saúde. Direitos um tanto mais difusos, como o acesso a um meio ambiente preservado e amor à vida ainda são muito novos para entrarem neste consenso, infelizmente, mas embora já tenha passado da hora de incluirmos esses e outros conceitos na lista de nossas prioridades e de práticas renovadoras na execução de políticas públicas, em casos como esses temos que ter paciência, o que não exclui tentarmos agilizar o processo de nova conscientização porque quanto mais o tempo passa, mais o meio ambiente vai sendo agredido e mais difícil se torna sua recuperação.
O mesmo raciocínio vale para o questionamento sobre o que é suficiente e necessário, posto que outras variáveis devem ser consideradas aqui, como o contexto cultural e material onde os indagados nasceram e vivem, sua formação familiar e humanística etc. Não obstante, alguns consensos também podem ser pensados para estes outros dois conceitos vitais como, por exemplo, pactuar o que é necessário, aquilo que é preciso, e suficiente, aquele mínimo que devemos atingir para viver, afinal, com dignidade.

De acordo com estimativas do Banco Mundial, a recessão causada pela pandemia da Covid-19 terá forte impacto negativo por anos, a ponto de levar a pobreza extrema a avançar no mundo pela primeira vez, significativamente, e em todo o mundo e não apenas nos países em que ela sempre avançou, em mais de duas décadas. Só em 2020, técnicos do Banco Mundial estimam que, no mínimo, algo entre 110 e 120 milhões de pessoas estejam sendo empurradas para a situação de miséria absoluta, número que pode crescer para 150 milhões em 2021. Isso no cenário mais positivo traçado. Pelo critério do Banco Mundial (BIRD), a miséria absoluta é caracterizada por uma renda diária de até US$ 1,9 (cerca de R$10, ao câmbio brasileiro de julho/agosto de 2020).
Com o aumento acima referido, a pobreza extrema passará a afetar o equivalente a algo entre 9,1% e 9,4% da população mundial até 2022, de acordo com o relatório Poverty and Shared Prosperity Report (Relatório sobre Pobreza e Prosperidade Compartilhada), publicado a cada dois anos pelo BIRD. Repito e friso: quase 10% da população mundial tornar-se-á extremamente miserável. Pouco? Bem, se o mundo está com aproximadamente 7.5 bilhões de habitantes, 9.4% dá alguma coisa como 705 milhões de pessoas miseráveis! Continua a achar pouco? Certo, esses são os miseráveis, mas se levarmos em consideração que mais da metade do mundo, não sendo miserável, é pobre, percebemos que o mundo humano é um lugar extremamente inóspito à vida, apresentando-se de modo cruel e insensível, muito embora não o seja, senão na medida de nossa insensatez. A maioria, no mundo, e no Brasil não é diferente, sendo alijada das benesses que a civilização já poderia proporcionar a todos, ao menos, o mínimo acima mencionado que, tornado suficiente, levaria dignidade às pessoas, mantendo a necessária preservação ambiental.
Antes da pandemia, a estimativa do BIRD era que a pobreza cairia para 7,9% em 2020. O Brasil, entretanto, vale frisar, já vinha experimentando aumento da pobreza extrema nos últimos cinco anos, notadamente de 2016 para cá. Conforme os dados de pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), intitulada Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios Contínua (PNAD), realizada em 2019, 13.88 milhões de brasileiros viviam na condição de miséria, além dos mais de 60 milhões extremamente pobres e outros tantos “apenas” pobres”. É esse o país que desejamos? Muito pouco, sendo benevolente, foi efetivamente realizado, em termos de políticas públicas, de 2016 para cá, com o objetivo de resolver essa situação de modo estrutural e não apenas para criar e/ou manter os assim chamados “currais eleitorais”.
O presidente Michel Temer, depois do golpe institucional de 2016, agora por ele admitido, apenas “tocou” o dia a dia da administração federal, além de propor medidas que retiraram direitos sociais duramente conquistados ao longo de décadas, como as primeiras medidas da reforma trabalhista. O presidente Jair Bolsonaro, que está acabando a tarefa de triturar esses direitos, e outros mais, imiscui-se na gestão pública apenas para destruir o Estado Democrático de Direito, ignorando o sofrimento do brasileiro, buscando eliminar o dissenso, inclusive, eliminando fisicamente quem sente e pensa diferente e só pensa na reeleição, fugindo da gestão. Assim, vamos de mal a pior – e parte dos brasileiros, inacreditavelmente, aplaudindo isso tudo, em nome dogmas em que se aprisionaram.
Na outra ponta da pirâmide social, a dos abastados, os bilionários do mundo viram, também segundo estudos do BIRD, sua fortuna crescer durante a pandemia. Só entre abril e julho deste ano, de acordo com um relatório do banco suíço UBS (outubro de 2020), o aumento foi de 27,5%, com um acúmulo monetário (concentração de renda) estimado de US$ 10,2 trilhões, uma cifra recorde. Segundo o estudo, esses ultra-ricos se beneficiaram especialmente ao investir no mercado acionário na baixa, entre março e abril deste ano, quando o mundo entrou em quarentena, e lucraram em seguida com a recuperação do preço das ações. Especulações puras, onde sempre ganham e o povo, com dinheiro público, sempre paga, com os juros elevadíssimos que nos são cobrados, à custa, por exemplo, da nossa previdência e dos nossos empregos. E para ficar ainda mais clara, a situação, ainda de acordo com o BIRD o qual, para deixar claro, não é uma instituição comunista, o número de bilionários mundiais também atingiu um novo recorde: agora, em 2020, calculados no total de 2.189, contra 2.158 em 2017.
A pandemia não foi, deste modo, tão ruim assim para uns tantos afortunados. A mescla entre pandemia e pobreza está ampliando o fosso entre privilegiados e deserdados das justiças sociais, o que está aprofundando o que podemos chamar de “Sindemia Exposta da Crueldade Humana”. Sindemia é um termo criado pelo antropólogo médico norte americano Merril Singer para designar uma interação mutuamente agravante entre problemas de saúde e o contexto sócio-econômico de populações. Em outras palavras, é um conceito que, no geral, engloba variáveis diferentes que concorrem para o mesmo resultado desastroso, seja na saúde pública, como é o caso das medidas genocidas do governo federal brasileiro em relação às políticas sanitárias sobre a Covid-19, seja na economia pública, como os fatos aqui narrados e que parecem não mover do sofá da sala, muita gente que acha que sua “bolha de conforto” irá livrá-la do inferno, contentando-se com o purgatório medíocre de suas vidas egoístas. Até quando?
Carlos Fernando Galvão, geógrafo, doutor em Ciências Sociais e pós doutor em Geografia Humana, cfgalvao@terra.com.br