Pânico moral como estratégia conservadora
O conservadorismo há muito acusa as minorias sexuais de terem operado as verdadeiras mudanças políticas e relacionais dos últimos anos. Apesar do cataclismo e invencionismos de toda sorte, há sim um ponto importante: como a moral sexual impacta o campo do político, e como o capitalismo coopta as lutas das minorias sexuais, e de outras minorias no geral, a fim de pervertê-las, objetificá-las e convertê-las em lucro.
Dentre as notícias que surgiram recentemente em sites fofoca, a mais escandalosa e cotada para ocupar também os cadernos de política e de comportamento é o livro “Quero Scat”, publicado por Gustavo Scat, pseudônimo do ator e comediante que interpreta Zecão em um dos live actions da franquia Turma da Mônica.
Que fique claro aqui, que se meter em um assunto escatológico sem se sujar, talvez seja querer demais, mas sigamos neste exercício especulativo das possíveis consequências (que podem nunca ocorrer) destes dois incidentes seguidos: a publicação do livro “Quero Scat”, e a saída forçada do anonimato que o ator sofreu.
“Vazaram meu nome”. Opto aqui por nomear o ator em questão somente como Gustavo Scat, porque o texto é sobre o acontecimento midiático em torno deste fetiche praticado por uma pessoa relativamente conhecida. Ademais, assim como o ator mencionou em um de seus stories do Instagram, após uma conversa com sua psicóloga, o fetiche é só uma parte de quem ele é.
Uma vez que a temática veio à tona e está sendo debatida a partir do nojo e do deboche, duas formas privilegiadas de se lidar com o horror, é muito provável que num futuro pouco longínquo psicólogos, psicanalistas e teóricos queer/feministas sejam convidados a falar sobre a prática. E em se tratando de psicologia, esta é muito convocada pelo senso comum e os dispositivos de patologização, ao passo que a psicanálise hoje em dia mal tem se furtado de dizer sobre qualquer assunto.
Somos tão responsáveis pelo o que não dizemos quanto pelo o que falamos, portanto, sobre o ator, comediante, sujeito, pessoa jurídica em questão, não há nada a ser dito. A questão que importa mais é como essa temática circula, mostrando um primeiro consenso aparente que Scat, a escatologia, é uma prática nojenta, bizarra e doentia, cometida por sujeitos doentes, perversos e quiça perigosos – inclusive por trazer a pauta para a vida pública.
Sobre a prática em si, se algo for permitido ser dito a partir da psicanálise, Freud faz um movimento interessante ao nomear toda sorte de práticas sexuais consideradas abjetas em sua época, não para dizer que elas eram normais, mas que, pelo contrário, a sexualidade humana é sempre perversamente orientada, para fins que nada visam a reprodução, e polimorfa, na medida em que se dá numa infinidade de práticas e de objetos.
Afinal, até mesmo em parcerias amorosas e sexuais, seja entre duas ou mais pessoas, é através da fantasmagoria de um objeto que se dá a relação, e isso quando o objeto coincide. Freud salienta a parcialidade de um fetiche ao comentar sobre um paciente que percebe um traço comum entre suas parceiras, “um certo brilho no nariz”. Esse objeto assexuado e destacável pode muito bem se encontrar na realidade, a ponto de se destacar totalmente do corpo do outro em que o sujeito investe sua libido; podendo inclusive em versões mais fixadas, existir “como se” o outro estivesse totalmente ausente.
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As fezes como objeto de desejo remetem à cenas infantis, desse dejeto que fora uma vez demandado pelos pais como um presente: o controle do esfíncter e as satisfações sádico-anais. Ocorre, porém, que as fezes coincidem com um dejeto a ser expurgado e com o qual não se deve manter relações. Corta para a cena que muitas crianças vivenciam de serem convidadas a darem “Tchau” para o cocô, essa parte que se desprendeu de seus corpos e que não deve retornar.
Se o cocô não retorna pelas tubulações do esgoto, é o retorno do recalcado que vem com a publicação do livro de Gustavo Scat, que traz em cena o nojo como defesa de narcísica que não necessariamente deve ser confrontada, e o humor como defesa de um superego muito rigoroso, que triunfa sobre esse mal-estar mostrando não ter parentesco algum com ele.
Admitindo que as estratégias de defesa que o ego recorre para lidar com um conteúdo que pode ser, para um número de pessoas que o censo ainda não investigou, sensível, são válidas; é preciso então interrogar como a direita se serve desse mesmo nojo para criar uma situação de pânico moral, aliando as pautas abjetas sexuais à esquerda, para depois pensar como a esquerda pode agir coletivamente, mas não uniformemente, diante este tipo de acusação.
Ainda que Gustavo Scat não tenha se pronunciado em momento algum como alinhado politicamente à esquerda, tampouco se servido de seu fetiche enquanto identidade sexual ou minoria sexual a ser reconhecida e incluída nas pautas sobre direitos –, visando com o livro fomentar um debate sobre autoaceitação; em qualquer exercício de futurologia baseado num passado ainda muito recente e dolorido é bem capaz que esta se torne mais uma “pauta cultural”, um evento espetacularizado a fim de demonizar a esquerda.
Afinal, o terrível incidente do ex-presidente Jair Bolsonaro, “What is golden shower?”, ocorreu durante seu mandato e com fins explícitos de ataques às esquerda e minorias sexuais. Bolsonaro se referia então à uma performance de artistas presentes durante o carnaval em que um dos atores urinava no outro.
Para além do escândalo organizado pela mídia, e pela repulsa que sentimos diante excrementos no geral, o argumento propagado girava em torno de um pânico moral que consistia em dois atos: o primeiro, de que aquela degenerescência era consequência dos 16 anos de governo dos Partidos Trabalhadores e segundo, que era preciso impedir e recrudescer os avanços de todas as pautas sexuais levantadas por mulheres, minorias sexuais e artistas para que nada do tipo ocorresse novamente.
Afinal, o que organiza o pânico moral é a ideia de que toda vez que as normas relativas ao campo da sexualidade são afrouxadas, elas logo mais irão explodir por inteiro. Uma barbárie sexual nunca antes prevista, violenta, imunda, desarmônica, fora do casamento heterossexual consagrado, o fim da família, a institucionalização compulsória de práticas como pedofilia, zoofilia, escatologia, necrofilia, e o que mais vierem à inventar.
Tal pânico revela que a sexualidade é tema de grande interesse social, e mais, que para além das distinções epocais sobre o que é considerável saudável ou não no sexo, há também uma série de hierarquias que valoram diferentemente tudo àquilo que é jogado para a vala da abjeção.
Não é à toa que até mesmo entre as minorias, minorias sexuais, e praticantes de formas menos convencionais de sexo, há rechaço entre grupos que defendem que certas “outras minorias”, mais abaixo na escala, estão querendo manchar o bom nome de um grupo que muito lutou para mostrar sua semelhança com aqueles que se encontram mais próximos da norma.
O movimento feminista, por exemplo, já incorreu (e em alguns segmentos ainda incorre) numa série de exclusões de mulheres lésbicas, mulheres trabalhadoras do sexo e mulheres trans. De toda forma, para além da estratificação é preciso lembrar que, até mesmo nos segmentos mais progressistas dos debates sexuais, há alguns horizontes mínimos de normatividade estabelecidos.
Ou seja, para afirmarmos quais práticas tornamos mais ou menos assimiláveis, continuam existindo, ou sendo inventadas, práticas que estão excluídas da norma, principalmente aquelas que visam romper com o consentimento para a sua realização. Uma vez que a temática da escatologia entra para o debate é preciso perguntar se há aí uma minoria sexual, um grupo tão soterrado e alijado da vida que é levado à reivindicar o reconhecimento de sua existência.
Como bem lembra Butler, não se trata de celebrar qualquer existência, mas de pensar possibilidades de existência menos violentas para as formas de vida aqui presentes. O paradigmático do caso de Gustavo Scat é que a violência ocorreu junto à visibilidade, a exposição de seu nome, o que coloca em perspectiva que a invisibilidade é também uma estratégia para algumas formas de vida, que pode ser tão útil, senão mais, quanto a visibilidade.
Se Gustavo Scat é ou não de esquerda, não importa. A correlação existe por falsa causalidade, porque não há como determinar a negatividade do sexual pela positivação esquerda ou direita, mas há correlação entre projetos sociais distintos pelos quais a esquerda e a direita se interessam.
O conservadorismo há muito acusa as minorias sexuais de terem operado as verdadeiras mudanças políticas e relacionais dos últimos anos. Apesar do cataclismo e invencionismos de toda sorte, há sim um ponto importante: como a moral sexual impacta o campo do político, e como o capitalismo coopta as lutas das minorias sexuais, e de outras minorias no geral, a fim de pervertê-las, objetificá-las e convertê-las em lucro.
Contudo, os livros de ficção como Libido Dominandi: Libertação sexual e controle político ajudam a propagar a ideia de que há um plano maligno orquestrado pela esquerda de flexibilizar a sexualidade a ponto de tornar a pedofilia, entre outras atividades sexuais criminosas, legalizadas.
Daí a menção reiterada que fazem às criancinhas toda vez que uma situação que gera pânico moral emerge como notícia do dia. “Haviam crianças na rua” durante a performance carnavalesca noticiada pelo então presidente ao mundo inteiro. Esta é tanto uma forma de incitar cada vez mais a privatização dos cuidados das crianças como restritos ao lar, à família, e de preferência, é óbvio, junto à mãe, ao mesmo tempo que ignora as crianças em situação de rua que veem fome, frio, violência e descaso por parte do Estado.
A questão é que há relação entre os segmentos progressistas sexuais e a esquerda desde sua origem. Desde o momento em que se dispuseram a pensar os direitos das mulheres, o fim da família, o amor camarada, o direito ao divórcio, a responsabilidade estatal de criação de creches, orfanatos e escolas, o direito ao aborto, até o reconhecimento jurídico de nomes sociais, parcerias sexuais e formas de parentesco.
Reconhecido que há uma ligação, é notável como a esquerda se defende dessas mesmas pautas que lhe interessam através de discursos alimentados pela moral, e mais, visando rechaçar a qualquer custo essa aproximação, dizendo que este debate nada tem de político e que deve ser evitado, ou respondendo a partir de outro lugar moral: do bom cristão que não quer ofender, preocupado com a saúde mental de Gustavo Scat, não em decorrência da prática, como alguns podem supor, mas pelas reverberações após seu nome ter sido vazado.
Talvez caiba à esquerda outra alternativa que não a recusa ou a inclusão em nome da inclusão, talvez algo possa ser feito até mesmo na defesa, e para além da autonomia moral sobre o corpo deste sujeito. De uma prática que pode sim existir no privado, entre 4 paredes, fora do olhar e do crivo público, de um grupo que não sofre violência. Essa invisibilidade estratégica não precisa, e não sejamos ingênuos, se dar somente no privado, mas numa série de outros espaços liberados que possibilitam a prática, o encontro e até mesmo o anonimato dos interessados.
De todo modo, uma reflexão a ser colocada sobre a autonomia moral que um sujeito possui sobre o próprio corpo, e sobre o que é coletivamente afirmado como aquilo que deve ser excluído para que vivamos em sociedade é necessária.
Tanto no sentido de que um sujeito pode sim, usufruir de seu corpo, sem enxovalhá-lo, mas que é preciso pensar em formas de autonomia que não se deêm puramente na legislação de si, ou no entendimento de si como puro objeto de gozo, de si mesmo, ou de um outro, à ponto que o sujeito se exponha à violências e processos de dessubjetivação –, um dos limites que a noção de consentimento encontra.
Como intervir em processos do tipo sem incorrer em uma nova violência é certamente um desafio, mas um desafio diante o qual não devemos nos imobilizar. O mesmo vale também para questionarmos os limites da noção de consentimento. É possível consentir com a própria exploração, degradação e até mesmo com o próprio extermínio, o que não impede que crimes e abusos sejam cometidos. Ademais, os contratos que firmamos excluem a negatividade do desejo, algo que é muito mais difícil de ser assimilado juridicamente, mas que importa, e muito; basta pensarmos os casos de estupro marital, por exemplo, em que muitas mulheres consentem com uma atividade sexual que não desejam.
Encerro aqui o meu argumento através da noção de heteronomia sem sujeição como alternativa à autonomia moral que tanto defendemos em casos como este. A possibilidade de que nós, enquanto coletividade, possamos nos posicionar e intervir uns nos outros, sem produzir nenhuma forma de assujeitamento, mas de reflexividade capaz de reconfigurar o campo da norma sem nos servirmos da violência e da humilhação.
A defesa de uma autonomia moral se deu justamente em contraposição às tiranias do Estado. Durante a Revolução Francesa, ao combater as práticas institucionalizadas de tortura, o argumento de autonomia moral serviu não só para se deter na inviolabilidade dos corpos, mas também para salientar um individualismo que toma o corpo como posse de um ser que, ao mesmo tempo em que é um corpo, supõe ter esse corpo.
Decorre que muitas pautas alavancadas pela esquerda, como a descriminalização das drogas, do aborto, e da eutanásia utilizam o mesmo argumento que muitos se servem para dizer sobre práticas sexuais tidas como abjetas: de que o corpo é de x, e que x pode fazer com o corpo o que bem entender —, “meu corpo, minhas regras”.
Contudo, esse corpo não se encontra completamente sozinho num espaço inócuo, e as ações no plano da realidade, bem como as alterações formais no campo do direito, transformam aquilo que vivemos e consideramos possível.
É preciso pensar para além das figuras morais que criticam o vício, e aqui incluo na figura do vício as práticas sexuais consideradas abjetas, pelo modo como os potenciais trabalhadores se tornam improdutivos e propensos à formas informais de trabalho, como o crime; ou que bradam em defesa irrestrita à vida, a ponto de condenar qualquer prática de interrupção da mesma —, sem oferecer alternativas para a viabilidade de existência e de uma vida boa para aqueles que escolhem, diante as condições a eles impostas, a interrupção.
Essa moralidade está presente também no argumento pela irrestritas liberdades individuais, que acaba se tornando, paradoxalmente, a principal via para a violência nos discursos de ódio contra as minorias sociais.
Para ultrapassar a dicotomia individual/social é mister nos valermos de uma heteronomia sem sujeição. Ou seja, uma heteronomia que ainda que este sujeito preserve algo de sua autonomia, essa não se dê a partir de um autolegislar em que o corpo é submetido à mente, ao mesmo tempo em que esse “heteros” como “outro” não se imponha de forma a sujeitar os corpos, minando suas potencialidades de agência.
É preciso criar, coletivamente, e não via o fortalecimento de um Estado que também comete suas violências, possibilidades para que diferentes formas de vida, e até mesmo formas de interrupção da vida, se tornem viáveis, sem fazer disso um meio para um fim, tendo em vista que não se trata de normalizar toda a sexualidade, mas de reconhecê-la como inerentemente patológica – o que não significa que não há limites a serem estabelecidos como tentativa de organizá-la.
O pânico moral mobilizado denuncia o modo como os corpos que se encontram mais próximos da norma, e que gozam do status de humanos, se sentem ameaçados pelo campo da abjeção, assim que a mídia faz do abjeto o objeto de seu espetáculo. Revela-se então a violência que organiza atualmente o campo das normatividades, em que uma forma de vida aparece como demasiado ameaçadora para outras individualidades.
Uma heteronomia sem sujeição visa a possibilidade de existências mais suportáveis, menos submetidas à violência, abrindo espaço para outro tipo de construção coletiva de normatividade, em que a exclusão de determinadas formas de vida não se deêm pelo assassinato, exílio, ostracismo ou confinamento em prisões, hospitais e nas versões atualizadas de manicômios.
Este mesmo pânico moral a ser revisitado a cada edição da Parada Gay deve ser combatido não por medidas pedagógicas —, que talvez seja a estratégia moral favorita da esquerda, e que acaba por fomentar maior antipatia que esclarecimento. Mas pelo debate franco de que os espaços guetificados não são necessariamente criminosos, ainda que invariavelmente criminalizados.
Se o anonimato, somado à invisibilidade ainda são o meio que torna possível a existência de certas práticas e identidades sexuais, é porque a norma não pode abarcar tudo — e certamente, caso pudesse, o faria de modo a positivar, normalizar e “limpar” as sexualidades dissidentes.
As “novas” formas de vida, que sempre existiram, estão ganhando as ruas. Se toparmos que isso é motivo de pânico e que a esquerda não tem nada a ver com isso, é porque compramos a estratégia narrativa da direita, do total desregramento social que nos levaria ao pior.
Ao invés de disputar com o Espetáculo dirigido pelo conservadorismo, cabe pensarmos coletivamente quais práticas e existências são compreendidas como possíveis dentro da normatividade social, não para expulsarmos certas formas de vida e pessoas do convívio, e nem para incluirmos tudo na norma ou para acabarmos de vez com ela, mas para excluirmos da própria norma a violência, a moralidade, o utilitarismo e os efeitos de segregação que eles produzem.
Maíra Moreira é psicanalista, doutora em Psicologia pela PUC Minas, e autora dos livros “Fins do Sexo: como fazer política sem identidade” (Autonomia Literária, 2022) e “O feminismo é feminino? A inexistência da Mulher e a subversão da identidade” (Scriptum, 2021).