Papicha: resistência, criação e redirecionamento da libido
A discussão sobre resistência e redirecionamento da libido pode parecer absurda quando frente ao autoritarismo e ceticismo científico bolsonarista. Mas cientes disso, e entre outras coisas, para resistir é necessário ser Papicha.
Os últimos anos têm sido de emoções à flor da pele. Em 2018, mesmo com debates nas ruas, com nossas famílias, amigos e conhecidos, um candidato da extrema-direita ganhou força na corrida eleitoral. Muitos de nós, e falo especialmente a partir do movimento estudantil, fomos incansáveis. Nossa energia e ação política moveram-se no espaço público, nas redes sociais e no ambiente particular-familiar para mostrar a barbárie que era concordar e votar em um candidato explicitamente violento, misógino e preocupado com ganhos individuais e de uma elite branca. Passadas as eleições, com Jair Bolsonaro presidente, sentimos dor e ressentimento, quando não angústia. Entre as diversas consequências do discurso de Bolsonaro e seus apoiadores, as violências discursivas geraram, para muitos, o sentimento de impotência e cansaço diante da realidade: um candidato fascista havia sido eleito presidente do Brasil.
Após as eleições continuamos nos dedicando a expor a barbárie que Bolsonaro e seu governo representam. O esforço era imenso e contínuo para mostrar as artimanhas populistas e ao mesmo tempo com caráter opressivo do presidente em seus posicionamentos e ações. Víamos (e ainda vemos) companheiros e companheiras exaustos, quando não psicologicamente afetados pela soma da energia dedicada a organização política para construir a resistência com as cotidianas tentativas de controle do debate que vinham de Brasília: “uma fraquejada”, “e daí”, “não sou coveiro”, “aluno de universidade faz tudo, menos estudar”, e a lista segue – quase infinita.
No pós eleições e nos meses que seguiram, circulou um texto publicado no Le Monde Diplomatique chamado “Pequeno manual de conduta e resistência ao controle do discurso e da libido” do psicanalista Marcos Donizetti de Almeida. O autor argumentava a necessidade de não ficarmos espumando pela boca ao ler e ouvir notícias sobre a política nacional, mas usar nossa libido, o ânimo gerado pela angústia – esse sim, finito – como combustível para mobilizar forças e elaborar a resistência.
Papicha, de Mounia Meddour (2019)
A angústia enquanto combustível para criação ficou palpitando em minha cabeça – era uma tentativa de defesa para não sucumbir ao ressentimento gerado pela política nacional. Com isso em mente, em janeiro de 2020, em uma semana de escancaradas demonstrações do ideário fascista bolsonarista, dessa vez por meio de seu secretário da cultura, fui até um cinema local assistir ao filme Papicha, da diretora franco-argelina Mounia Meddour (2019).
Encontrei em Papicha um filme potente. Ele encanta e ao mesmo tempo estarrece. Tem personagens femininas bem construídas, conversas e brincadeiras entre mulheres, riso, cenas atraentes, afazeres e dores que só a mulher num país periférico (ou na pobreza) vivencia todos os dias. Possui a delicadeza dos detalhes cotidianos. Ao mesmo tempo, em contraste, apresenta um conflito político que assola as pequenezas, expresso por forças políticas que, pelo interesse de exercer o poder estatal, buscam apagar a arte, a alegria e agência das mulheres – e, diria mais, do próprio povo.
Visualmente, o filme também traz contraposições: meninas indo para um festa, divertindo-se e, repentinamente, um grupo armado barra o carro em que as garotas estão, cortando toda a efervescência; Papicha, Linda (irmã de Papicha) e a mãe brincam com um tecido de seda e algodão e, repentinamente, Linda, a irmã jornalista que reportava as violências do governo, é assassinada. O clímax do filme, o desfile dos vestidos criados por Papicha, acaba com mortes de diversas colegas da universidade, companheiras que segundos antes estavam em júbilo por vivenciarem juntas a arte de Papicha na universidade. Esses contrastes resultam em uma montanha russa de sentimentos: ódio, orgulho (por Papicha e suas amigas), carinho e, assim como no Brasil bolsonarista, angústia.
O longa, que se passa nos anos 1990, durante a guerra civil argelina, é também um filme sobre resistência, sobre mulheres que se mantêm firmes enquanto desmoronam os caminhos conhecidos. Nesse contexto, Papicha é um filme feminista. Nele, as mulheres, além de reivindicarem o próprio corpo frente à violência dos grupos armados, dizem “não”. Não ao casamento por um visto francês, não ao trancafiamento feminino, não a violência do namorado, aos homens que importunam na rua e a trocas de favores por sexo. Tudo isso, evidentemente, com um custo doloroso para as mulheres do filme, que, ao mesmo tempo, ressignificam constantemente a própria existência nessas situações opressivas. Elas (re)existem “sendo Papicha”, a partir da criatividade, da organização e do afeto.
A menina Papicha, por exemplo, é uma artista convicta, vê-se como tal mesmo em um regime político e uma sociedade que a oprimem rotineiramente, diminuindo as melhores versões dela mesma. Quando questionada sobre a persistência de Papicha, a diretora Mounia Meddour, que quando adolescente vivenciou o conflito argelino, comenta que era com esperança e humor (e música) que as pessoas tinham seu momento de liberdade; mesmo na guerra, encontravam maneiras de amar, de rir e de brincar. Assim surge Papicha, um filme sobre continuar criando em situações adversas.
Papicha: da mulher argelina para a mulher brasileira
O filme acontece na Argélia dos anos 1990 e, infelizmente, lembra o Brasil de 2020.
Fiquei emocionada durante maior parte do filme. Um dos motivos era que a realidade brasileira, sem querer, vinha à tona. Como estudante de Relações Internacionais, estou ciente que comparar os dois países intuitivamente é tarefa arriscada (se não refutável), portanto, não o faço. Comparo, contudo, as percepções e sentimentos das personagens universitárias femininas com o “ser mulher estudante no Brasil” e as ações e sentimentos frente ao radicalismo conservador dos grupos no exercício do poder ou em busca de exercer poder pelo Estado – sobretudo ao corpo das mulheres.
O longa de Meddour expõe questões dolorosas, que nós, enquanto estudantes, militantes, mulheres feministas, temos nos preocupado rotineiramente. A perseguição do regime à liberdade de pensamento, a violência do Estado sem abertura para diálogo e o controle patriarcal estão explícitos em diferentes cenas. Com elas, tristeza. No Brasil de 2020 a morte enquanto política (necropolítica, conforme define Mbembe) é uma realidade; o Estado, em sua forma mais violenta expressa pelo poder patriarcal e racista – de controle de corpos – decide quem pode morrer. Diferente do contexto argelino, contudo, em nosso país é na periferia e ao corpo negro que a política da morte se impõe. A morte enquanto política ainda não chegou nas universidades. Mas já há perseguição ao movimento estudantil e às áreas que constroem um conhecimento crítico ao governo, como as ciências sociais e humanas. Além disso, está explícito no país, assim como em Papicha, a violência, perseguição e marginalização das minorias enquanto escolha política. O governo brasileiro prega ódio às mulheres ao rechaçar a educação sexual e os direitos reprodutivos; censura o pensamento livre das amarras do mercado e dos homens ao criar um projeto voltado para o lucro chamado “future-se”; além, com a desconsideração do que a comunidade científica no país reivindica para a política de saúde pública quanto a Covid-19, permite a morte de milhares, especialmente da população mais vulnerável. Resultado: não há espaço para a construção de vida digna, nem para a igualdade de gênero, classe e raça se nos basearmos nos homens que governam o Brasil de 2020. Sobra, por consequência, mais angústia. Como no filme, está armado um cenário de subjugação das minorias pelo medo, em especial das mulheres mais vulneráveis.
Como resistir?
A discussão sobre resistência e redirecionamento da libido pode parecer absurda quando frente ao autoritarismo e ceticismo científico bolsonarista. Mas cientes disso, e entre outras coisas, para resistir é necessário ser Papicha.
Queremos agir, expressar o que sentimos. Ao mesmo tempo, antes da quarentena já estávamos cientes que mulheres sentiam medo ao andar na rua expressando opiniões políticas progressistas (fosse na forma de vestir, nos dizeres estampados em camisetas, em falas públicas e protestos, etc.). Com o fascismo e a extrema-direita em plena ascensão, além de dor e ódio pela perda de nossa liberdade, sentimos verdadeira raiva pelo aumento da repressão a jornalistas, militantes de direitos humanos, ativistas ambientais e mulheres periféricas. Além disso, com a diminuição do financiamento às universidades, quando pesquisadoras, vemos nosso trabalho (pesquisar) ser desmoralizado, o que parte tanto do governo, quanto da sociedade. O sentimento de impotência duplica-se, estamos exaustas pelos constrangimentos presentes na vida pública e pessoal, que, sabemos, caminham juntas.
Novamente, como resistir?
Criação e redirecionamento da libido
Paulo Freire pensava a existência humana a partir da esperança e luta pela liberdade – tanto nossa, quanto dos opressores. Ao falar disso, argumentava as possibilidades que temos de sermos seres históricos, agentes de mudança. Em Pedagogia do Oprimido, Freire insistiu que a desumanização, que se expressa sobretudo pelo neoliberalismo, não é destino dado, ainda que realidade concreta, argumentando a necessidade de luta constante pela humanização, ou seja, pela dignidade humana e suas potencialidades. Eliane Brum emprestou a ideia de libido política e, como Donizetti, demarcou a necessidade de reorganizarmos nosso ânimo em tempos conservadores para a ação pública coletiva, direcionando-nos para além dos truques discursivos do bolsonarismo que esgotam nossa energia nas redes sociais. Brum defendeu, na época (2019), que houvesse um fortalecimento do “desejo pulsante para se arriscar ao convívio das ruas”.
Em fevereiro de 2019, Débora Diniz já havia saído do Brasil por conta das ameaças que sofria por ser uma pesquisadora feminista. Contudo, no 8º Encontro Nacional de Pós-Graduandos, em fevereiro de 2019 em Salvador, foi com choro de alívio que, por vídeo, a ouvi dizer para nós, universitárias, não desistirmos. Débora inspirou ao demarcar que nas universidades ainda temos a “cautela da pesquisa”, temos a “possibilidade de fazer perguntas”, de sermos criativas, de questionar para provocar mudança. Pouco mais de um ano depois, inicio a leitura de “Amanhã vai ser maior”, de Rosana Pinheiro-Machado. Com esse livro, sou novamente instigada para o redirecionamento do ânimo para a luta. Nele, a escritora demarca que as formas de resistência possíveis nesse momento político de conservadorismo vêm da criatividade e, também, da esperança na transformação.
Juntamente a essas autoras e autores inspiradores, o filme Papicha nos lembra de dedicar nossa potência para que mudanças possam acontecer, para descobrir e criar saídas em momentos que querem nossos corpos sem vida, tristes e cabisbaixos, angustiados e paralisados pelo medo, sem esperança. Papicha tem raiva das perseguições do regime, mas é obstinada, não gasta sua energia remoendo e odiando aqueles que não querem ela e outras mulheres vivas. Ela redireciona constantemente a libido para fora das ações violentas de quem tem o poder das armas e do Estado. Para nós, mulheres e militantes brasileiras, o filme ensina, sobretudo, as possibilidades de resistência no Brasil de 2020. Ensina a necessidade de redirecionamento do ânimo, da nossa libido política – conforme utilizado por Eliane Brum e aprofundado por Donizetti – para a criação crítica e resistência. Esse ânimo, como dito anteriormente, não é infinito, e quando dedicado exclusivamente para o ressentimento e ódio com o presidente e suas falas estapafúrdias pode resultar em: nada. Nada criado, nem sonhos de futuro (utopia), nem organização coletiva.
Nos espaços coletivos e na universidade, a cada dia do governo Bolsonaro, evidencia-se mais que para resistir ao bolsonarismo é necessário ser Papicha. É importante estarmos cientes das violências discursivas, que materializam-se em mortes e desigualdade, mas precisamos nos direcionar para além do esgotamento político e pessoal que geram as frases de efeito do presidente.
É necessário redirecionar nossa libido para a organização política; para ler autoras e pesquisadoras inspiradoras; para criação e compartilhamento de arte; para pesquisas e uma educação comprometidas com a realidade desigual brasileira; por fim, para a movimentação das ruas e dos nossos corpos por direitos (ou dos espaços de discussão pública, em tempos de Covid). Assim resistiremos: elaborando desde a própria angústia força criativa para as mudanças que queremos, que para nós, pesquisadoras-militantes ou amadoras engajadas, como se descreve Débora Diniz¹, guiam-se pela superação das desigualdades de classe, raça e gênero e todas as violências que dessas advêm.
Alessandra Jungs de Almeida é mestra e bacharela em Relações Internacionais. Estudante-militante na Associação de Pós-Graduandos da UFSC (APG-UFSC), gestão “Pra não lutar só” (2018-2019).
¹ Débora Diniz se descreve enquanto “amadora engajada” por ser uma pesquisadora que tem paixão pelo que faz, mas que, ao mesmo tempo, faz pesquisas nas interfaces de diferentes saberes – não sendo, portanto, uma especialista tal como se espera da formação acadêmica em cada campo de atuação.
BRUM, Eliane. Eu + UM + UM + UM +: A responsabilidade de cada um na luta contra a destruição do Brasil. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/15/politica/1557921007_146962.html>. Acesso em: mai. 2020.
DINIZ, Débora. Débora Diniz, homenageada da Mostra Científica. 2019. (10min50s). Disponível em: <https://www.facebook.com/anpgbrasil/videos/484692088726010>. Acesso em: 16 fev. 2019.
DONIZETTI DE ALMEIDA, Marcos. Pequeno manual de conduta e resistência ao controle do discurso e da libido. Dezembro 2018. Le Monde Diplomatique Brasil.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2017.
MBEMBE, Achille. Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: n-1 edições, 2018.
MEDDOUR, Mounia. Interview with Papicha director Mounia Meddour. Disponível em: <https://womeninfilm.org/interview-with-papicha-director-mounia-meddour/>. Acesso em: mai. 2020.
PINHEIRO-MACHADO, Rosana. Amanhã vai ser maior: o que aconteceu com o Brasil e possíveis rotas de fuga para a crise atual. São Paulo: Planeta do Brasil, 2019.