Para além da apropriação cultural
A Prada está comercializando, mediante valores que ultrapassam R$ 4.000, sandálias de couro semelhantes àquelas atribuídas à produção artesanal de Caruaru
Um dos objetivos que constitucionalmente fundamenta a República Federativa do Brasil é o de erradicar a pobreza e a marginalização, reduzindo as desigualdades sociais e regionais. Nossa Constituição, fundada em amplo conhecimento sobre a formação econômico-social do país, construiu mecanismos vários que, frente às nossas deficiências estruturais advindas da condição de país com passado colonial, buscam a superação do subdesenvolvimento.
Nesse sentido, importante ressaltarmos o caráter do texto Constitucional de 1988 que, enquanto mecanismo jurídico, teve um papel de repactuação nacional e internalizou os conflitos da época, propondo diretrizes claras em seu texto. Tal fato remete ao caráter regulador do Direito, que, a despeito de nas universidades país a fora ser ensinado enquanto mera ferramenta contenciosa, tem resgatado, no seio de nossa Constituição, o potencial de ferramenta central de planejamento, execução e governança estatal.
A independência nacional, sabemos, não foi capaz de erradicar por completo as estruturas arcaicas resultantes do nosso processo de formação social. Essa herança persistente pode ser observada nas variadas formas com que o imperialismo ainda vitima e explora o povo brasileiro, seus bens naturais e patrimônio cultural.
A cultura conforma relevante parte da identidade nacional e é elemento primordial para se pensar um projeto nacional de desenvolvimento inclusivo, e com potência para mobilizar cidadãos em torno de sua construção. No Brasil, a despeito da inequívoca e internacionalmente reconhecida vastidão e beleza cultural, a pauta ainda sofre de muita negligência tanto de políticas estatais coordenadas e eficientes visando sua proteção, quanto objetivando seu impulsionamento.
Tal postura negligente do Estado brasileiro conversa, em muito, com a reflexão trazida ao início deste texto. Isso porque nossa gigantesca desigualdade regional mina o potencial das regiões mais atingidas pela miséria, contrariando frontalmente o ímpeto constitucional de superação do subdesenvolvimento.

A polêmica em torno da notícia de que a Prada está comercializando, mediante valores que ultrapassam R$ 4.000, sandálias de couro semelhantes àquelas atribuídas à produção artesanal de Caruaru, oportuniza discussões sobre o tema. A necessidade de internalização dos centros decisórios fica evidente, inclusive para reivindicarmos e organizarmos nossa produção local, possibilitando, consequentemente, que a riqueza advinda de produtos tradicionais seja destinada não a conglomerados internacionais da moda, mas ao povo que o concebe e produz.
Não existem dúvidas acerca do caráter exploratório da indústria da moda internacional e de todas as outras que utilizam-se do subdesenvolvimento para ampliar suas margens de exploração do capital humano e cultural do povo. Entretanto, ao nos encapsularmos em uma narrativa paralisante, apenas de denúncia sobre eventual apropriação cultural, nos furtamos da responsabilidade de – por meio da criatividade humana – propormos saídas possíveis, o que torna a crítica inócua.
Que haja denúncia, pois a forma mercadoria de fato se deriva em todo tipo de relações e torna tudo passível de compra e venda, reduzindo o mais belo das relações humanas à mera coisa. Entretanto, há um ponto anterior que é: tais produtos já são comercializados por artesãs(ãos), ou seja, a forma mercadoria já estava colocada anteriormente à venda dos produtos pela Prada.
Assim, ao que nos parece, as questões centrais do debate são duas e situam-se tanto no campo produtivo, quanto no ideológico: 1. Por que as(os) artesãs(ãos) brasileiras(os) não estão organizadas(os) em um processo produtivo e de circulação mais eficiente que possa enfrentar a Prada no comércio internacional? 2. Por que as pessoas se interessam ao ver a sandália da coleção da Prada, mas não consomem o produto produzido nacionalmente?
No que se refere à questão número um, imperioso elucidar que apenas em 2015 a profissão de artesão foi oficialmente reconhecida no país e, três anos depois, foi regulamentada pelo Programa do Artesanato Brasileiro. A partir desse reconhecimento, com a colaboração de profissionais e instituições do setor, o Conselho Nacional de Políticas Culturais elaborou um plano de desenvolvimento para integrar o artesanato brasileiro no Plano Nacional Cultural.
Nesse bojo, o Colegiado Setorial do Artesanato desenvolveu o Plano Setorial do Artesanato (pensado para o período de 2016 a 2025), que tem como desafios formular estratégias para estruturação, crescimento, fortalecimento e comercialização desta atividade, que é a materialização da diversidade cultural brasileira e de nossas regionalidades.
Uma das demandas dos artesãos e pesquisadores da área, que emergiu no contexto de sua elaboração, foi a necessidade de definir com maior precisão as responsabilidades dos agentes envolvidos, pois a existência de atribuições esparsas em diversas esferas e pastas governamentais ocasiona sensação de insegurança e dúvidas em relação às figuras que devem ser cobradas a respeito.
Nesse sentido, e respondendo à segunda questão levantada, apenas políticas coordenadas local e nacionalmente, e de caráter fiscal e monetário, criam verdadeiras condições de impulsionamento da produção e distribuição de tais bens, não só viabilizando seu comércio em território nacional e internacional, mas operando enquanto política de valorização cultural apta a arregimentar ideologicamente o interesse por essa produção nacional.
Referenciado numa pesquisa do IBGE feita em 2001, o Plano Setorial estima que 8,5 milhões de pessoas viviam da produção artesanal e faziam gerar uma arrecadação bruta nacional de R$ 52 bilhões ao ano. Apesar da falta de levantamentos atualizados, acredita-se que este número tenha aumentado por causa de um crescente investimento público no setor por parte do Estado e parceiros (como Sebrae e o Programa do Artesanato Brasileiro). Ou seja, trata-se, definitivamente, de um setor economicamente relevante com alto potencial tanto de crescimento, quanto de ferramenta de enfrentamento da desigualdade regional.
Uma das estratégias do Plano Setorial é estimular o diálogo entre artesanato, design e moda para valorização da cultura por meio de ações integradas entre essas áreas. O intuito é a valorização de preceitos criativos, simbólicos e econômicos do artesanato brasileiro. Outra estratégia, agora pensada como incentivo à comercialização e distribuição do artesanato, é a criação de políticas públicas que visem a venda, exposição e distribuição de bens artesanais brasileiros no exterior.
O artesanato brasileiro se depara com inúmeros desafios e potencialidades, dentre eles a transmissão inadiável de técnicas tradicionais seculares, tendo em vista a expectativa de vida dos mestres artesãos que detêm o conhecimento bem como questões relativas à qualificação, gestão e comercialização com circulação suficiente para cobrir toda produção nacional.
Assim, a valorização e a promoção da comercialização dos frutos dessa atividade artística – que não é apenas uma atividade que expressa nossa cultura, mas também é caracterizada pela produção atemporal, destreza manual, consciência ambiental e pela predominância da organização coletiva – torna-se imperiosa tanto por seu valor simbólico quanto por seu valor comercial.
Diante disto, fica claro o esforço, mesmo que recente, de planejar estratégias para o desenvolvimento e impulsionamento do setor. Entretanto, tanto quanto as máximas constitucionais, qualquer forma de plano, ou dispositivo jurídico não tem execução espontânea. Instalar um “dever ser”, por si só, não assegura que o ser, de fato será. Na realidade concreta a política se impõe e não nos deixa esquecer que, apesar das formulações positivistas que pautam nosso ideário, o fenômeno jurídico encontra-se em plena disputa de destinos.
Tal disputa de destinos fica evidente ao nos depararmos com um total descompasso, por exemplo, entre a política econômica pensada constitucionalmente – a qual vislumbra o desenvolvimento nacional baseado na industrialização, proteção do mercado interno, garantia de direitos sociais que assegurem a coesão social e distribuição de renda – e a política econômica passiva e austera que se instalou na tradição do Estado brasileiro.
Retomando as considerações iniciais, reforçamos a importância de não examinar a questão unicamente pelo prisma filosófico e cultural, mas também a partir dessas intersecções com a dimensão jurídica e política. Afinal, o Estado brasileiro é constitucionalmente incumbido da tarefa de capitanear a direção do processo econômico geral e o faz mediante dispositivos jurídicos.
A legislação nacional possui instrumental apto a garantir não apenas o registro de marcas nacionais, mas a valorização de produtos regionais. Um exemplo é a figura do Registro de Indicação Geográfica, introduzido no Brasil pela Lei de Propriedade Industrial nº 9.279/96. Referido artefato é uma certificação que busca imprimir notoriedade e excelência a produtos locais, através da procedimentalização dos métodos de produção. O selo serve como proteção aos produtores, na medida em que garante a exclusividade de uso daquela marca e agrega valor a produtos exclusivamente brasileiros, com características regionais.
Nos anos 1990, a Embrapa Uva e Vinho de Bento Gonçalves, ciente da importância de regular a produção regional, protagonizou esse debate no Brasil ao incentivar e oferecer suporte técnico para a conquista de registro de Indicação Geográfica a produtores de vinhos da região. Esse esforço trouxe resultados práticos na proteção e qualificação da produção local, abrindo o caminho para que vinhos brasileiros ganhassem mercado.
A experiência acima e iniciativas semelhantes evidenciam a relevância de intensificar o debate sobre a construção de saídas jurídicas para a proteção histórico-cultural e a valorização de produtos nacionais, com características regionais. Ampliar a oferta de crédito, intensificar pesquisas e o mapeamento do setor e estimular o turismo cultural associado ao artesanato são exemplos de atividades juridicamente reguladas e oportunas para fortalecer as cadeias produtivas da economia da cultura no Brasil.
O uso desses instrumentos dinamiza a atividade econômica, promovendo a inclusão social e a redução de desigualdades por meio da arte, da cultura e da capacitação de mão de obra. Os desafios e obstáculos enfrentados em sua mobilização, por outro lado, sinalizam a complexidade de operacionalizar um projeto de desenvolvimento regional.
Já há algum tempo grandes juristas têm denunciado uma crise do pacto político-social sintetizado no texto constitucional de 1988, diante da dinâmica neoliberal que vem pautando a política econômica brasileira e nos impondo um destino antinacional, no qual não só o desenvolvimento regional encontra-se minado, mas o desenvolvimento nacional como um todo.
Inadiável, assim, denunciarmos a apropriação cultural, não obstante, urge pensarmos sobretudo saídas na dimensão da produção, circulação e consumo, pautadas pela recolocação do Estado brasileiro no seu devido papel de promotor da transformação da estrutura econômico-social.
Melissa Cambuhy é professora e pesquisadora graduada em Direito, e mestra em Direito Político e Econômico, pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Beatriz de Santana Prates é graduada em Direito e mestranda do Programa de Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Laís Ribeiro é graduada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, é advogada e atua como produtora cultural.