Para Antunes
“nem faço muita questão da matéria do meu canto ora em
[torno de ti
como um ramo de flores absurdas mandado via postal
[ao inventor dos jardins.”
C.D.A
“– Você acredita na vida depois da morte?
– A minha sempre foi.”
Beckett
Tela branca. Palco vazio. Choro. Oscilo. Sangro. Respiro. Mas me falta ar, ainda me falta ar. Como falar para você? O assombro de falar agora para você. Inútil dizer que falo com você, há nove anos falo com você a cada batimento de meu coração, como continuarei falando até o cerrar das cortinas, ou melhor, ainda ao encontrar-te no próximo ato, onde o espetáculo continua se dando em outro tempo e espaço. Mas agora quero falar para você, preciso, grave e solene e amorosamente, responder a você. Mãos suspensas sobre o teclado, imobilidade diante do sem-fim do tablado.
A terrível responsabilidade diante da tela branca prestes a ser traçada e do palco vazio a ser adentrado: resposta ao chamado do outro, movimento que nos leva ser-para-outro/ser-outro, o outro presente e sobretudo o ausente (mas estar em presença de outrem não é sempre estar diante de uma distância infinita, de uma presença que nos escapa?), daqueles que nos colocamos no encalço de seus rastros, os mortos invocados e presentificados, o ressoar do apelo dos antepassados. Sim, é e sempre foi uma questão de morte e você mais que ninguém sabe disso.
Você agora morto, agora o outro radical, o outro total a quem me dirijo em desequilíbrio na beira do abismo: tela branca, palco vazio. Você que em vida foi minha experiência mais plena e violenta de alteridade, o outro onde se deu meu grande confronto, solo do sangrento embate a arrastar-me para longe de minha molaridade, vertigem da relação –toda relação- que é inacessibilidade e sua ultrapassagem, atravessamento, pacto, promessa de molecularidade.
Mas sim, questão de morte, vida e morte poderíamos dizer mas dizemos morte pois ela que nos foi arrancada, da vida que é extensão separada e feita -enorme violência- seu contrário, oposto inconciliável, fim irremediável. Princípio de exclusão, mortos extraditados e morte como prática vital simbólica iniciática e política abolida. Doença e decadência do ocidente. Mas se na religião os mortos foram feitos dóceis imortais a outro plano renegados e da troca concreta retirados, portanto, dessocializados, foi no teatro que encontraram resguardo. Penso em Antígona que pra mim é mesmo o próprio teatro: luto feito luta contra a razão de Estado em nome da ancestralidade, subversão da norma pela sobrevivência do pathos arcaico coletivo em rito sagrado político, nossa morte encarada de frente para que os mortos se façam presentes.
Somos todos Antígona. Mas somos mesmo? Será que todos nós do teatro nos dispomos, como ela, a morrer para que os gestos originários rasguem nossa carne perpetrando em dor compartilhada os acenos dos antigos que nos chegam e nos levam para além das fronteiras e cronologias dos livros? Será que mesmo imaginam que o figurino do ator, em toda e qualquer personagem, é o sangue, que só podemos entrar vestidos de sangue, que entrar em cena é cavucar as imemoriais feridas para tudo contaminar com genealogias desconhecidas?
Sabem que é preciso silenciar e gritar e emudecer e urrar para se ter uma voz, uma voz profética, pré-babélica (e você, grande revolucionário, trabalhou como ninguém para que “a confusão que provém da torre de Babel seja eliminada”, para que a história universal se faça) uma voz anterior ao verbo, ao horrível evento da nominação, uma voz anterior à autoridade da palavra a deixar toda natureza enlutada, uma voz que se insurge contra a tirania hierarquizada dos órgãos e corre livre pelo corpo em intensidades, uma voz que fala com os bichos e os ventos, que vem do fundo dos tempos saudando tanto o que já não mais é como o que poderia ter sido, a reverberar entre o imaginado e o vivido?
Voz trágica. Não, não sabem, ou não praticam, não a maioria, falência do teatro você constata. Você faz a distinção entre o ator dramático e o ator trágico: o primeiro é internalizado, psicológico, discursivo, burguês, individualista, cronológico e binário; o segundo é exteriorizado, ético (“em nenhum lugar da psicologia encontramos algo parecido com um sujeito ético”), poético, revolucionário, comunitário, aiônico e múltiplo.
Você nos fez trágicos. Você lutou a vida toda para por em nós a marca da morte, essa mesma que você tinha, como a tem todos os grandes poetas, essa marca de quem viu algo de insustentável para qualquer pessoa. Acho que não à toa sua tragédia favorita é o Prometeu Acorrentado, você mesmo Prometeu a roubar o fogo dos deuses para passar para nós (o respirar, o andar, o falar… toda nossa usurpada existência poética), fazendo nesse movimento com que nós mesmos nos tornássemos Prometeu e levássemos o conhecimento adiante, mesmo ao preço de termos nossas vísceras incessantemente arrancadas e devoradas por uma águia.

Prometeu que é símbolo do sofrimento, mas ainda antes, da revolta, assim como Antígona. Sim, você nos inflamou a revolta, nos fez insurgentes, sublevados, de nossos organismos organizados emancipados. Nos fez desejar a morte para que a vida – que não é seu contrário mas sua imanente e indeterminada continuidade – irrompeu em toda sua originária potencialidade poética e inventiva a nos tornar corpos utópicos ativos, agentes políticos do impossível. Você nos fez querer o impossível. “Por que nossos desejos se manifestam quase sempre no elemento da ruptura, no forçar dos limites, em uma inquietação tão viva que se poderia considerar trágica?”.
Você nos instrumentalizou para a ruptura, nos fez rebeldes contra os regimes de verdade, nos fez insurgentes contra a ordem vigente, está tão em nós entranhada a reger nossos corpos, pensamento, linguagem. Você nos fez entrar em um feroz e eterno corpo a corpo com a linguagem. Corpo a corpo com a linguagem que é sua própria substância, sua extrema vontade de potência, o próprio oxigênio de sua vida que nunca foi separada da arte e também da morte. Morte que você trazia no seu porte. Morte que nos delegou, que sistematizou como prática política e artística. Você nos deu a morte: “pequena morte, que ao quebrar-nos faz por juntar-nos, e perdendo-nos faz por encontrar-nos e acabando conosco nos principia. Pequena morte, dizem; mas grande, muito grande haverá de ser, se ao matar nos nasce.”
Você, mestre fúnebre. Significativo o fato de que em praticamente todas as sociedades originárias os rito fúnebres e de iniciação sejam irmanados, morte e nascimento como dois momentos de um mesmo termo a reinvoluirem um no outro. A iniciação que tem como base transformar os jovens em um legítimo ser social indissociável de cada membro da comunidade mas para chegar a isso quanto tortura e tormento: desde castigos físicos, isolamento, incisões e chagas revolvidas, o trilhar entre a morte e a vida, ser aos ancestrais entregues em sacrifício, ser simbolicamente morto para enfim renascer na incontornável verdade de que não há indivíduo mas coletivo. Você, mestre iniciático.
Mas esse seria apenas o limiar para nós que nos propomos a entrar em cena, a cruzar o palco a vibrar o mistério do cosmos, a transpirar no proscênio uma névoa a diluir tudo e todos em tenaz amálgama. O comediante como curandeiro supremo a transitar entre os mundos a inventar novas anatomias para que os espíritos ascendam em forma de pássaro, relâmpago, lava.
Sim, somos da linhagem dos xamãs (e não deveríamos jamais esquecer disso) pois quem senão nós a nos valer de máscaras, especiais indumentárias, música, dança, travestimentos… para abolir as demarcatórias linhas e conduzir viagens extáticas? Mas como chegar a ser artífices do desconhecido, arautos da recôndita e primordial fonte, se antes não visualizamos passivamente nosso desmembramento e o escorrer do sangue e da carne, se não enumeramos nosso esqueleto, se não somos comparados a defuntos?
E como conseguir isso sozinhos? Não, você sabe, não há xamã sem que antes o mestre nomeie cada parte de seu corpo e cuspa em sua boca ou ponha cobertores molhados sobre seu corpo nu na neve ou aplicar-lhe na pele grandes formigas venenosas e suspende-o na cabana entre cantos sagrados para que ele então penetre nas sucessivas esferas celestes…
Você, mestre xamã. É, a falsa delicadeza das “sociedades burguesas ocidentais parecem falar em uníssono para condenar toda violência”, preferem a confortável e fatal cegueira frente ao fato de que “é preciso não esquecer e respeitar a violência que temos. As pequenas violências nos salvam das grandes. […] A truculência é amor também.”
E aqui retornamos à “violência pura do herói trágico”, à Antígona insurrecta a retomar os direitos da tragédia em relação à violência: “seus direitos que não são “o direito”, já que sempre e de novo, ela nos fala apenas da desobediência às leis do Estado.” Mas como desobedecer efetivamente a essas leis se são elas a orquestrar nosso pensamento e portanto linguagem?
Você, mestre circunspecto de rigor implacável, de disciplina rígida, de método austero a assumir por tantas gerações o compromisso formativo de, como não poderia deixar de ser, caráter destrutivo. Pois “o caráter destrutivo só conhece uma palavra de ordem: abrir espaços, só uma vontade: desobstruir. Sua necessidade de ar fresco e de espaço livre é mais forte do que qualquer ódio.” Você a armar-nos de violência para destruir em nós tudo o que cheirasse a códigos normativos e repressivos, tudo o que não fosse somente possibilidade de criativa liberdade.
Tela branca. Palco vazio. Sua obsessão pelo controle total da musculatura facial (“seu lábio superior mexe por que?”), o rosto morto apagado de toda individualidade até sobrar apenas neutralidade (“o morto, o morto! o neutro, o neutro!”), traços liberados de tudo que é definido e estático, abertura a contágios externos em linhas de fuga melódicas, forquilhadas, pictóricas, gasosas, quebradas, petrificadas…
Rosto oceânico, submerso, desértico; rosto morcegos no breu côncavo da caverna, rosto colônia de bactérias na ferida aberta, rosto multidão febril rompendo os limites da calçada, rosto galáxia refletida na lagoa atravessado a nado, rosto-nada… afinal “se o homem tem um destino, esse será mais escapar ao rosto, desfazer o rosto e as rostificações, tornar-se imperceptível, tornar-se clandestino.”
Você desfez o rosto e fez com que o simples levantar de cabeça abrissem sulcos na Terra em um despertar de monstros, desatinos, quimeras. Destruir então o caráter imitativo da arte e seu desfile de rostos e corpos subjetivados, sua procissão de caracteres e significâncias, sua marcha de certezas e seguranças.
Destruir o ataque realista ao mundo para que a vida emerja no que ela tem de irrepresentável: privilégio do teatro. Destruir no pensamento tudo o que não seja adubo para a germinação de forças que não são pensáveis: “paisagens sonoras, cores audíveis, personagens rítmicas.” Você, mestre destrutivo. Mas que empreitada de vida foi essa que você se lançou? Que nos lançou? Você nos fez entrar em um violento corpo a corpo com você do qual sempre voltávamos “com os olhos vermelhos e o fôlego curto”.
Choro. O pranto como método (e houve um só dia ao seu lado em que eu não tenha chorado? Todos nós, como chorávamos! De amor e de dor, de fascínio e de raiva, de frustração e inspiração, de perdição e revelação…
E agora choramos todos de saudades), o esvair –se em lágrimas até embaçar o olhar para poder ver o que não nos é dado de imediato, o que pulsa invisível para além da objetividade da matéria: a poesia e as sobrevivências de remotas eras. O liquefazer-se até borrar os contornos do rosto, da voz e do corpo; até sermos seres livres de identidades, pelo exterior contaminados, fluxos, transitoriedade pura. Oscilo.
O desequilíbrio como seu mais emblemático exercício. Funâmbula na corda bamba inicialmente didática figura dialética a caminhar entre um termo e seu oposto buscando nos primeiros passos o equilíbrio conciliatório da síntese, trajeto concluso, almejado descanso no chão sólido das três partes do discurso identificado pela razão de Estado. Mas não, você não permite, a retórica clássica não basta, não abarca, não rompe amarras; e de novo você nos tira o chão, nos precipita no precipício a oscilar indefinidamente “entre” os termos, sobre o nada fundamental que os traga desequilibrados.
Depois nos leva a ser alga, a jogar o corpo aos ventos, alquebrados, descontínuos, para o “fora” dispostos, sermos feitos e não fazer, à completa mercê a optar sempre pelo “e”. Você sempre a nos deixar cambaleantes, espasmódicos, epilépticos, longe de qualquer equilíbrio estabilizado onde a criação não alcança, você nos lançando ao nada até sermos nada, somente vias, viabilidades, corpos aptos a triunfar sobre a gravidade.
Você nos tirou a noção corriqueira de evolução, nos fez proceder por crises, terremotos, abalos, erosões. Você, mestre sísmico. Você, mestre que nunca foi “destinado a aplainar o campo das relações, mas transformá-lo; não a facilitar os caminhos do saber, mas antes de mais nada, a torná-los não apenas mais difíceis, mas propriamente intransponíveis.”
Você, mestre cujos preceitos sempre foram pelo “desconhecido” mediados, a começar pela sua pessoa. “Ora conhecer pelo intermédio da medida do “desconhecido”, avançar para a familiaridade das coisas mantendo sua estranheza, referir-se a tudo por intermédio da própria experiência da interrupção das relações, nada mais é do que ouvir falar e aprender a falar.
A relação mestre-discípulo é a própria relação da palavra, quando nela o incomensurável se faz medida e a irrelação, relação.” Sim, é na alteridade que se encontra a grande lição de linguagem, e vice-versa. Sangro.
Em seu rastro como sempre escalpelada, atravesso essas páginas e faço das ensanguentadas pegadas tentativas de palavras. Da palavra quando faz dos signos abscesso, da gramática gangrena, das convenções decomposição; da palavra devolvida à morte, à morte que lhe foi amputada, morte ou o essencial vácuo a sugar toda tentativa de coerência e permanência das coisas, a incapturável concretude “daquilo que é”.
Você restituiu o sangue e a morte à palavra, você reencontrou nela sua natureza física e bruta e também dissoluta, fugaz, corrosiva; o vazio vermelho que a circunda, o sangue no subsolo que a funda, fundo comum dos povos, palavra que sai e entra pelos poros. Você fez sangrar a palavra, a procurou em seu nascedouro, no seu latejar na carne anterior ao seu ser soprada longe do corpo, em seu trânsito hemorrágico antes de a submeterem às formas e aos significados.
Você transfundiu o sangue à palavra em morte e nascimento; perfurou a membrana oratória, fez vazar seus balbucios e pus e silêncios; repôs-lhe a corporeidade, contingenciou seu manuseio; a fez palpável como uma flecha – palavra-gesto- a atravessar os corpos e destronar os órgãos; a desdar o rosto (“ a língua está presa a rostos que anunciam os enunciados dela […] a gramática comum nunca é separável de uma educação dos rostos.”) e a prenunciar um povo. Você minorizou a língua, a fendeu, a cromatizou, a fez gaguejar, a entrar em variações contínuas: ascendentes e descendentes, consoantes e dissonantes, precipitadas e prolongadas, expansivas e contraídas…em sussurros e bramidos e murmúrios e alaridos…Você criou línguas secretas dentro da língua (a cada texto, a cada peça, a urgência de um dialeto inédito) e também uma nova língua, uma língua universal (sim, em quatro espetáculos você realizou o sonho do Teatro em ver-se do Deus-Texto alforriado, apoteose da encenação pura), poderíamos mesmo dizer que toda sua obra “é uma máquina que transforma a linguagem humana em língua pré-babélica”.
Por isso, e não apenas por isso, seu teatro sempre foi um ensaio do “verdadeiro estado de exceção” pelo qual tanto lutamos, sempre foi um teatro jungido às genuínas lutas e festas populares em que por um instante quebram-se as divisões e as dominações; em que fende-se o tempo e no espaço abre-se hiatos; em que se faz dos corpos e linguagem outros usos e interrompe-se o curso do mundo.
O teatro, você sabe, quando exerce plenamente sua vocação é ainda mais poderoso que as outras artes pela sua natureza viva e efêmera e incapturável, pelo seu realizar-se num átimo em que simultaneidades de tempos e espaços e sentidos por todos os lados se afirmam. O teatro, como as lutas e mormente como a morte, é um acontecimento, e como tal, fugidio e indecifrável, e é nessa infiel e ingrata miragem que nos lançamos, é por essa ilusória e impermanente glória que fazemos de nossas vidas, morte.
Você nos deu a morte não apenas para sermos dignos desse prelúdio da morte que é o acontecimento teatral, esse “acontecimento de ausências” que é a práxis do palco, não apenas para nos tornar comediantes por ofício mas, antes de mais nada, para tornarmo-nos “o comediante de nossas vidas”: “Tornar-se digno daquilo que nos ocorre, por conseguinte, querer e capturar o acontecimento, tornar-se filho de seus próprios acontecimentos e por aí renascer, refazer para si mesmo um nascimento, romper com seu nascimento de carne.”
Você nos fez desejar a morte para que pudéssemos afirmar a vida em todo seu erro, para que disséssemos “sim” ao terrível, ao problemático, ao trágico; para que atravessássemos “o terror e a piedade, sermos nós próprios a alegria do eterno devir, essa alegria que contém nela também a alegria de destruir.”
Você, mestre afirmativo. Você, mestre trágico. Você nos fez querer a vida em sua imanência; a vida gozosa e dolorosa que jamais desprende-se da morte; a vida que só se realiza quando nela e por ela cria-se, luta-se, transmuta-se. Você nos ensinou não apenas admitir mas a saudar os aspectos difíceis da vida; a cruzar voragens, tempestades, sumidouros e toda sorte de riscos( haverá risco maior que um palco vazio?) com um largo sorriso. Você nos deu a morte para que a vida brote e metamorfoses espreitem e simbioses palpitem e devires se avizinhem.
Respiro. Presto perco de novo o ar que havia recuperado. O ar involuntário que faltou-me completamente quando você mudou de estatuto. E o ar voluntário carregado de eletricidade e prenhe de nebulosas e saturado de descargas de auroras que você me deu, que você nos deu. Escrevo “respiro” e com vigor alcançam-me seus olhares e gestos e palavras e a você sobremaneira estreito-me e estilhaço-me de saudades. Você, alquimista do ar, mestre absoluto do respirar. Ao final das contas sempre foi tudo sobre o ar. Sobre o rigor ético do respirar; atividade de com o outro entrelaçar-se, fundir-se, confundir-se. Só no respirar morre-se, portanto só no respirar fabula-se, isto é, vive-se. Respirar para apagar-se, no outro imbricar-se; respirar para volatizar-se, eliminar obstáculos, tornar-se trespassável: receptáculo de indivíduos e povos e animais e vegetais e minerais e microrganismos em que não se é abrigo mas com os quais forma-se um híbrido.
Respirar para rarefazer-se e “deslizar entre ordens, idades, atos, sexos, sair dos dualismos, estar-entre”, passar pela neblina, irromper como neblina. Respirar para esvaziar-se, para ser o próprio vazio com qual toda sensação compõe-se; esteio para o composto de afectos; laboratório do impossível gesto. O rosto morto, o corpo do organismo absolvido (“quando tiverem conseguido um corpo sem órgãos então o terão libertado de seus automatismos”), o não-pensável (o “atrás do que fica atrás do pensamento”) e a neutralidade, tantas e tantas mortes apenas para que com maestria manipulássemos o ar e as moléculas, para que nos expandíssemos pelas entranhas da terra e além da estratosfera.
E ressoássemos o correr do sangue e o farfalhar das árvores e o cristalizar-se do orvalho e o florescer dos vermes na carne e o infinitesimal sopro das pedras e o estalido dos ovos e o rogo dos mortos e o marulho cósmico…
Às vezes tudo isso em um único suspiro. O domínio do ar para mais que a palavra despojada e a língua inventada, uma voz, voz que recolhe e entoa vozes já findas no mesmo acorde das que jazem em espera, hipotéticas. E ainda mais que ter uma voz, que ser uma voz que contém vozes: “tornar-se um som para unir-se num único canto celeste.” Respirar até “tornar audíveis forças inauditas”. Respirar até “saturar cada átomo” e instaurar o informe espaço e o tempo não pulsado, até “eliminar tudo que é semelhança e analogia”, tudo o que nos submeta ao logos: já “não pássaro cantor mas molécula sonora.”
Respirar, ainda respirar: e o que foi oculto na superfície pulula e o prescrito em dança deteriora-se e loucas partículas em emissão arrebatam e percepções atrofiadas despertam e forças contrárias interagem e formas secretas revelam-se e a atmosfera sobrecarrega-se e dilacera-se em horizontes, dimensões, continnums cósmicos e recupera-se no teatro o perigo para tudo o que está estabelecido. Mas para tanto é necessário muita “ascese, sobriedade, involução criadora”.
É preciso muito critério e trabalho duro para adensar o ar com mil sóis a arder, esturricar, desertificar o juízo e séculos de interditos, para fazer brotar na secura a afluente e translúcida criança, a única que pode trazer o jogo ao rito: o jogo que diacroniza o tempo, Âion cuja imagem são crianças jogando dados. A criança que maneja tempos e velocidades, que com consistência sobre as formas opera, que cosmiciza forças, que carrega em seu âmago mais que o porvir de um povo mas um povo porvir. A criança, o devir-criança, que nos ensina que “só há imaginação na técnica.” Essa criança que você falava em um de nossos últimos encontros e que aos prantos eu ouvia.
Essa criança que traz solidão porque habita os altos cimos e o fundo dos abismos, que faz de seu peso o peso do mundo e por isso tem leveza alada. Essa criança que é coroada entre tufões e brisas, entre sirocos e nevascas, isto é, pelo ar respirado e controlado. Ar que você nos deu. Você nos deu o ar mas “o ar não traz nada. Não dá nada. É a imensa glória de um Nada. Mas nada dar não será o maior dos dons?”. Sim, porque só no nada tudo toma-se, transforma-se, constrói-se. Você nos deu o nada, a morte, a liberdade e as infinitas possibilidades porque nos deu o ar.
Você nos incubiu a morte como a mais urgente tarefa, a morte para respirarmos com absoluta precisão e destreza, para inspirarmos e expirarmos a travessia pelas oposições e sermos nós mesmos a neutralidade do ar onde tudo ao mesmo tempo é. Você nos deu a morte para que respirássemos até fabricar em nossos corpos seres que nos excedem, “seres que valem por si e excedem qualquer vivido.”
Seres que diferente dos seres das outras artes existem sem suporte, sem fixidez, sem efetivo registro, seres incrustados no vento e nas mais baixas cavernas, na superfície da lua e nas rochas arqueozóicas, seres interestelares, potências legendárias, seres invisíveis, anônimos e esquecidos que abastecem na eternidade com seus gestos a força do espírito para o possível e o além do possível: o impossível. Por isso, e não apenas por isso, que o teatro é o grande paradigma das revoluções, levantes e lutas, daquilo que se entende por história.
Você diz que “o homem tem saudades do homem” pois sabe que o vínculo com o mundo foi partido e que só a fé pode restituí-lo. Toda sua obra é essa restituição do homem ao mundo, do homem ao homem, do homem à escolha. Você, mestre intempestivo. Você, mestre menino. Você, mestre Sol. Mas mestre, assim te chamei e assim ainda o chamo e deveras continuarei a chamar, mas será que essa palavra realmente lhe cabe? Não, não cabe. Como também nenhuma das nomenclaturas que nós mesmos; seus discípulos, comediantes, alunos, filhos, lhe designamos.
Sim, é certo que todas lhe definem: mestre, diretor, professor, pai. Todas elas corretas porém todas carregadas de autoridade. E poderá uma autoridade quebrar muros, turbilhonar classificações, conjurar verdades, diluir fronteiras, convulsionar controles, varrer homogêneos? Ou ainda: poderá uma autoridade agenciar multiplicidades, romper dualismos, atravessar reinos e gêneros, fazer “Eus” vacilarem, exteriorizar singularidades, parir mundos? Não, não pode, nada que seja derivado do aparelho de Estado ou das instituições familiares podem dizer respeito à sua criação, isto é, vida, são forças completamente outras que você arregimenta, forças feiticeiras contrárias e hostis a elas no conteúdo e na forma. Você, mais que mestre: o Anômalo, o Outsider, o Solitário, o indivíduo excepcional com o qual nós feiticeiros formamos uma aliança, procedemos por contágio.
Nós, mais, muito mais, que grupo, elenco, turma ou família somos bando, cardume, malta, tribo, enxame, constelação, feixe, matilha. E sim, “nós feiticeiros sabemos que as contradições são reais, mas que as contradições reais são apenas para rir.” E enquanto gargalhamos as contradições, chafurdam nelas, inventamos e nos reinventamos nelas e a partir delas, deixemos aos burocratas as catalogações e acusações, aos inquisidores os julgamentos e sentenças. Nas contradições e na música por poucos ouvida continuamos a dançar: “nós espíritos livres, espíritos aéreos, espíritos alegres.”
E somos muitos, e proliferamos loucamente, epidemicamente. Somos muitos pelo seu ar semeados e frutificados, ar que ainda nos alcança, envolve e revigora pois só você sabia “gerar em torno de ti o ar forte e puro”, ar que perdura aqui e alhures; ar que sobreviverá aos anos e épocas e idades e eras; ar que frutificará gerações e gerações porvir; ar que se faz e fará presente em cada palco, sala de ensaio, em cada gesto, sopro, suspiro de todo ator seja profissional ou amador, de cada um que sele com o teatro o político e sagrado compromisso; seja diretor, iluminador, sonoplasta, dramaturgo, cenógrafo, aderecista, crítico, figurinista… e especialmente o espectador, o grande propagador da utopia coletiva.
Você, mais que homem de teatro ou mesmo mestre do teatro mas o próprio Senhor Teatro. Mas que ar sobre-humano foi esse que você gerou? Que você dedicou a vida a gerar, aperfeiçoar e doar? Ar que passou para tantos corpos libertando-os; ar que alcançou o tempo antes do Tempo, que alimentou os mortos, que responsabilizou-se pelos que ainda não chegaram, ar que realiza e profetiza o teatro que vem.
Os seus pulmões tomados é a inevitável imagem da verdade de uma vida dedicada a oxigenar e curar o teatro, a humanidade, a vida. E como eles foram fortes! Aguentaram além da conta, além do biologicamente possível. Esses pulmões que para tanta vida gerar teve que respirar todas as intempéries interplanetárias, todos mundanos cataclismas, toda humana e animal sensação, toda desgraça e todo sublime por cada criatura vivido e mesmo sonhado, nada escapou aos seus pulmões; ele recolheu e respirou todo sentimento do mundo, a pulsação de toda matéria, o despertar de todo incognoscível, o desenhar-se do inominável, todas concretizações e abstrações, todas as velocidades, temperaturas, movimentos, espaços e tempos, toda vida e morte, Vida e Morte.
Sim, foi pelos pulmões que você foi e nos ensinou a ser “artífices e poetas de nossas mortes”. Foi nos pulmões que você abrigou a morte, ela que é mesmo a fonte da vida. Foi seus pulmões, seu ar que nos ensinou que “deve não só existir morte para mim no último momento, mas morte desde que vivo e na intimidade e profundidade da vida. A morte faria portanto parte de minha existência, viveria minha vida.” Eis o agudo segredo da criação e poesia, do ser-para-outro/ser-outro, do estar na vida/ser-vida. E penso ainda que se “o verso é uma realidade pneumática” o ator não é como um atleta do coração mas dos pulmões e são com eles que com você falo, com eles pelo seu ar abastecidos ao infinito.
Eu, que tento aqui começar a roçar sua vastidão, eu que sei que a para isso precisarei de toda minha vida. Eu, sua filha anarquista, talvez sua mais rebelde discípula que nunca deixou de ser por você acolhida mesmo com tantas brigas: nove anos, três idas e vindas. E você nunca desistiu dessa que é tão torta, que quebra-se sempre e passa anos isolada, essa que nunca pôde pertencer a nada que não fosse algo entre a sarjeta e a barricada, essa que você olhou e acreditou e insistiu como ninguém ou eu mesma jamais o fiz, você que por isso é e sempre será o amor maior de minha vida, o dono dos longos braços cujo aceno é o estandarte de minha jornada, àquele a quem será dedicado todos os meus passos.
Você, que me mostrou, que nos mostrou, que “a mais alta determinação do pensamento é a escolha, esse ponto mais profundo do que qualquer vínculo com o mundo.” E é por isso que eu escolho sair do deserto e estar aqui, exposta, mesmo que trazendo o deserto comigo ( sempre trazendo o deserto comigo) escancarando minha emoção pois “uma emoção que não se dirige a ninguém é uma emoção totalmente solitária e incompreendida, não será sequer uma moção –um movimento- será somente uma espécie de sisto morto dentro de nós mesmos.”
E essa emoção por você não cabe, transborda, é vasta e é de tantos e se retroalimenta e viaja e todo universo abarca e como ele cresce. Essas minhas memórias de você são como a memória de cada um de nós, é memória que se faz “memória de vários, memória-mundo, memória-eras do mundo”, como você nos ensinou a atuar, a escrever. É o que tento aqui. É o que tentarei em todas as telas brancas e palcos vazios, esses basilares comprometimentos por você a mim delegados e que jamais deixarei novamente de exercer. E atravessarei e preencherei cada um deles até desaparecer, até que não possa mais dizer eu, até que seja outro, ouro, prata, lata, larva, poeira, arco-íris…
Até que seja Espírito que como o vento “sopra onde quer”. E para tanto te chamo e solto indefinidamente o A de seu nome, A vogal sentimento vanguarda da mais poderosa prece em fonemol e corpo respirado: Aaaaaaaaaaaaaantunes. Antunes te chamamos e se você não mais responde, é porque responde “em nós, do fundo de nosso coração, em nós mas adiante de nós, em nós diante de nós –nos chamando”, e somos muitos e respondemos e nos contaminamos e a tudo povoamos e somos muitos!
E continuo a chamar seu nome até o dia em que toda recordação se despedace, até que esteja “tão “próximo” de mim que qualquer recordação, mesmo a mais forçada, não pudesse dar-me sequer” sua imagem. Essa travessia da memória, do idiossincrático, da linguagem, do mundo interpretado é mesmo a instância última da poesia, do seu ar. Sim, te respirando, “respirando o ar mais puro, as narinas infladas como copos, sem futuro, sem lembrança…” e sem palavra, sem imagem… Respirando o nada até ser nada, respirando a morte até ser vida, vida que simplesmente é, como a flor, o cascalho, a água…Respirando com você até estar ao seu lado esquecida em silêncio, sendo silêncio, sendo música muda, molécula, radiante partícula. E enquanto tal iluminação não alcanço só posso incessantemente responder a você: te amo, te amo, te amo, te amo, te amo… E sim, eu só posso falar em meu nome. E falo em meu nome. E meu nome é legião. Tela branca. Palco vazio.
Stella Prata é atriz, escritora e dramaturga e integra o grupo Centro de Pesquisa Teatral, que era dirigido por Antunes.