Para Mariela: um espetáculo do Grupo Sobrevento
Peça de teatro inspirada na vida das crianças da comunidade de imigrantes bolivianos do Belenzinho é um convite e um lembrete para que cada um siga buscando o próprio mar
O Sobrevento, grupo de teatro formado em 1986 com especialização em animação e teatro de objetos, estreou recentemente seu novo espetáculo “Para Mariela”.
O grupo, cuja sede encontra-se no Belenzinho, busca aproximar-se da comunidade que o cerca: “a gente começou a trabalhar um conceito da ideia de quebrar os muros. Mas também temos que quebrar os nossos muros. Nós também temos que sair, conhecer o bairro, reconhecer o bairro novamente, porque depois da pandemia tudo mudou”, disse Sandra Vargas, uma das fundadoras do Sobrevento, em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil.
A partir de visitas às escolas do bairro, o grupo coletou relatos por meio de objetos pessoais das crianças da comunidade: “a gente espera que eles vão trazer objetos cheios de melancolia, não é nada disso e ao mesmo tempo são objetos carregados da mesma profundidade, da mesma estima, da mesma afeição, da mesma importância para uma criança. É bonito ver que as crianças nos revelam tantas coisas inesperadas.”
Nos últimos anos, o Belenzinho recebeu uma grande quantidade de imigrantes bolivianos, os quais se encontram em extrema insegurança por diversos fatores, como as condições de imigração e o trabalho brutal a que são submetidos. Ao entrevistar às crianças, conta Luiz André, também fundador do grupo: “ficamos muito surpresos. Realmente, tomamos uma porrada, porque não eram os objetos que a gente esperava, não eram as histórias que a gente esperava. Percebemos que a gente não sabe nada. Aquelas histórias eram de uma profundidade enorme, revelando muito o que é o mundo quando a criança fala que no fim de semana vai para o shopping, e o shopping é uma pequena galeria que tem aqui na rua Coimbra. É uma galeria de pequenas lojinhas e lá tem uma coisa, entre as quais uma garra mágica e a criança vai lá com o pai e tenta pegar um brinquedo toda semana. Ou seja, isso é um passeio. Quer dizer, isso é um cinema da família burguesa.”
Segundo ele, diante de um contexto socialmente enrijecido: “o teatro tem essa obrigação de pertencer a uma vizinhança. Um espaço físico, não por acaso, aqui na Zona Leste, não por acaso, aqui no Belenzinho, onde não existem equipamentos culturais. Tem pouquíssima coisa. O que tem é a igreja. Um espaço de convivência. O problema é que eles são fechados.”

Diante deste cenário, o grupo buscou alternativas para que as barreiras fossem quebradas e a comunidade boliviana passasse a se sentir pertencente ao Espaço Sobrevento. Mesmo durante o processo de pesquisa, o grupo foi surpreendido pelo interesse e a participação das crianças: “efetivamente, quem quebrou os muros, foram elas. Elas se atreveram, elas aceitaram o convite. Elas pegaram a família pela mão, essa coisa que a gente fala da Mariela, a Mariela veio trazida pelas suas crianças.”, complementa Sandra.
Mariela, a quem o espetáculo é dedicado, foi levada ao Sobrevento pelos filhos, onde contou sua história, sobre como tem de trabalhar exaustivamente, a ponto de não sonhar. Ao conversar com Sandra, disse que daria tudo para estar no lugar dela, e suspirou.
Em meio aos relatos coletados, surgiu também o tema do mar: “a gente sonha tanto com o mar, a gente quer tanto ter o mar, mas eu mesmo quando vi o mar pela primeira vez, achei super bonito, achei lindo, mas depois, só isso também. O mar é uma utopia. O mar é um sonho, por isso ele [um personagem do espetáculo] diz ‘mas e o que mais tem no mar?’ É pouco ter peixe, sal, mariscos, isso é muito pouco, e barco, mas é só isso? É pela conquista da dignidade, do sonho de se unir a todos os outros países do mundo por meio de um acesso ao mar. Tanto é que a Bolívia não luta por ter uma praia. A Bolívia, na história recente, pleiteia ter um acesso ao mar, sem ter que pagar taxas e sem depender da boa vontade ou generosidade de alguém”, conclui Luiz André. Mas, para as crianças, o mar ainda é um sonho.
A resposta da comunidade foi imediata na estreia. Segundo Sandra: “não imaginavamos que essas pessoas iriam vir sempre. Que elas querem estar lá naquela cena final. Elas falam umas com as outras porque elas querem estar ali, isso é muito bonito. Eles às vezes ficam aqui, principalmente os meninos aqui da esquina, ficam um pouco assim, ‘ah não vou não tia, porque tem gente muito diferente da gente’. E dizemos que ‘os diferentes são eles, não vocês, o teatro é de vocês, vocês têm que se sentir à vontade’, e é muito bonito ver agora que eles vêm, que eles se sentem à vontade. Se apropriaram deste lugar. Eles se reconhecem nessa história.”
Há uma força muito grande na relação entre o teatro e a comunidade. Se por um lado o grupo busca agir para além da performance para assegurar melhores condições de vida, por outro a comunidade também devolveu algo vital para a arte: “eu as vi arrumadas, outras falando assim, ‘eu posso ir de fantasia? Eu vou com minha fantasia’. Como uma coisa muito especial. Essa coisa do especial do pequeno, é que eu acho que eles nos devolveram. Inclusive, eu acho que eles reconhecem também o sacrifício dos pais. Eles reconhecem a importância desse teatro, e desta saída. Então essas coisas todas são muito importantes para nós, porque a gente acredita que o teatro tem que ser extraordinário. Esse maravilhamento que as crianças sentem é o que queremos que os adultos sintam também. Eu sinto que as crianças cumprem uma função natural de equilibrar as coisas, de tirar a gente do cinismo.”
O encantamento e a identificação ultrapassam a comunidade local. Ele se estende a qualquer um que se permita quebrar os próprios muros e conhecer o Sobrevento. “Para Mariela” é um convite e um lembrete para que cada um siga buscando o próprio mar.
O espetáculo ocorre às sextas, sábados, domingos e segundas às 20h no Espaço Sobrevento, até dia 14 de outubro. A entrada é gratuita.
Nanna Tariki é parte da equipe do Le Monde Diplomatique Brasil.