Para o projeto bolsonarista a Antropologia é inútil ou perigosa?
Este artigo reflete sobre como, no bojo do projeto ideológico bolsonarista, o pensamento socioantropológico é visto como ameaçador ou perigoso aos padrões de poder vigentes no Brasil
Tomou posse no dia 16 de julho o quarto ministro da Educação do governo Bolsonaro. Milton Ribeiro é um teólogo e pastor que defendeu publicamente, em 2016, a associação entre ensino e dor. Na campanha eleitoral de 2018, Bolsonaro já avisava em seu plano de governo – melhor seria desgoverno – que usaria a Educação como plataforma para divulgar e implementar as ideias da extrema direita no Brasil. Este documento define como um dos objetivos para a educação “[expurgar] a ideologia de Paulo Freire”. No período eleitoral, Bolsonaro disse o seguinte sobre o perfil de seu futuro ministro da educação: “ser alguém que chegue com um lança-chamas e toque fogo no Paulo Freire”.
Em 1964, Paulo Freire foi preso e teve que deixar o país ao ser acusado pela ditadura empresarial-militar de promover “atividades subversivas”. Não é por acaso que Bolsonaro, reconhecido admirador desse período ditatorial, continuou a perseguição às ideias de Freire em seu mandato. A alteridade, segundo o pensamento freireano, tem um papel fundamental na Educação, assim como a noção de que sua função constitutiva seria não uma transmissão mecânica de conteúdos disciplinares mas suscitar uma curiosidade epistemológica. O trabalho do educador, nesta perspectiva, deve ser dialógico, libertador, humanizador, democrático e emancipatório. O oposto do que propõe o governo de Bolsonaro e dos militares hoje no poder.
Cumprindo a promessa de campanha, Ricardo Vélez Rodríguez, indicado por Olavo de Carvalho, foi nomeado ministro da Educação e, em menos de quatro meses, foi substituído por Abraham Weintraub que seguiu a pauta de desmonte da educação pública. Como esperávamos, constantes ataques foram feitos às universidades, aos institutos e aos colégios federais durante sua gestão. Contingenciamentos orçamentários; lançamento de um projeto de incentivo à privatização do ensino superior, intitulado “Future-se”; paralisação do Fundeb; acusações de que as universidades federais eram lugares de “balbúrdia” e de que nelas havia plantações de maconha e laboratórios de produção de drogas sintéticas ilícitas; nomeação de interventores para reitorias e direções de Instituições de Ensino Superior; foi vasto o repertório de ações para a corrosão da educação pública no Brasil por parte de Weintraub antes que sua saída do cargo fosse provocada por ter sido divulgado vídeo em que afirma que mandaria ministros do Supremo Tribunal Federal para a cadeia.
Mesmo diante da demissão do ministro da Educação – na verdade um processo, já que para manter seu status de privilégio diplomático não teve seu desligamento do governo efetivado imediatamente – seguimos ocupados em compreender as perspectivas que são subsídios para a performance pública de Weintraub. Não por si própria – já que a pequenez do ex-ministro já está mais do que reconhecida por diversas vertentes políticas – mas pelo o que ela significa enquanto produtora de discursos que possuem eficácia e adesão no espectro ideológico do que podemos chamar de bolsonarismo.
Ameaça
Partimos, assim, dessa agenda de retrocessos no campo da Educação para refletirmos sobre como, no bojo do projeto ideológico bolsonarista, o pensamento socioantropológico é visto como ameaçador ou perigoso aos padrões de poder vigentes no Brasil. Este campo de conhecimento foi muitas vezes referenciado no atual governo e, particularmente, pelo o ex-ministro, Abraham Weintraub, que citou a antropologia, a sociologia e a filosofia como áreas que não deveriam ser financiadas pelos recursos públicos, ou segundo sua retórica personalista e rasteira, pelo “dinheiro dele”. Tais profissões são tratadas como inimigos a serem combatidos e derrotados, desimportantes resquícios de uma sociedade pretérita, inúteis para a contemporaneidade. É possível supor que outras áreas das humanidades entrariam no rol do ódio a campos do pensamento que se ocupam da reflexão e da crítica a respeito da vida coletiva. Esse ódio, contudo, nos leva à questão: caso desempenhássemos tarefas realmente residuais e irrelevantes, teríamos sido lembrados com tal nível de energia? Acreditamos que não; nem tampouco seríamos apontados como fração ocupacional que deveria desaparecer à força da lei.
No mundo em que vive Abraham Weintraub e muitos que estão imersos no caldo ideológico do bolsonarismo, só há espaço para as ciências que desempenhem alguma utilidade para suas necessidades imediatas: dentistas, engenheiros, médicos. Nessa visão estreita sobre o conhecimento, Weintraub também rebaixa essas ciências aplicadas que, destituídas de seus significados sociais, são vistas como atividades de mera repetição, de reprodução de certos adestramentos. Qual o sentido da medicina, sem que este ofício esteja acompanhado de uma reflexão sobre o significado e o valor da vida? Questão esta que é central para as humanidades que reúnem as reflexões mais consistentes a esse respeito.
Weintraub e as frações ideológicas do bolsonarismo, instruídos no charlatanismo de Olavo de Carvalho[i], nutrem verdadeira aversão às ciências humanas. O discurso do ex-ministro da educação propõe um embate com estes campos de conhecimento. E não se entra em combate com um inimigo já derrotado. O discurso bolsonarista sobre a vida universitária, em geral, e as humanidades, especificamente, é um indicador da relevância desses campos e das instituições neles implicadas.
Aqueles a quem historicamente nos juntamos em defesa de uma sociedade mais justa e plural foram os primeiros alvos do atual governo, com políticas explícitas de avanço do extermínio dirigida a indígenas, negros, as/os contemporaneamente (auto)classificados/as por meio da sigla LGBTQI+. O esvaziamento de suas reivindicações corporifica a tentativa de destruição de suas diferenças em nome da farsa de uma comunhão ou unidade nacional (“Brasil acima de todos”). Trata-se, contudo, de nada mais do que a construção de uma obediência unitária e cega a um projeto de desenvolvimento econômico que privilegia em abundância elites muito estritas em detrimento da avassaladora maioria. A adesão a esse projeto é garantida, contudo, pela opacidade produzida pelo ódio a essas populações, transformando-o em exercício político cotidiano que mina a possibilidade de olhar criticamente para questões estruturais.
Por fomentarmos reflexões sobre o contexto social nas universidades, espaços construídos no país para esse propósito, é que somos vistos como perigosos e improdutivos. No atual governo, as funções de tais instituições, bem como outros espaços associativos, como os movimentos sociais, vêm sendo deturpadas para servirem cada vez mais de instrumento à reprodução de certas práticas de poder. Vejamos em linhas gerais em quais exercícios reflexivos residem essa oposição e deslegitimação operadas pelo governo brasileiro de extrema-direita.
Reflexão
Aprendemos e ensinamos, desde um ensaio seminal de teor antropológico de Michel de Montaigne (1533-1592), que as diferenças sociais demandam a reflexão sobre os pontos de partida. As avaliações sobre o que é externo a nós mesmos, assim, estão sempre inscritas em ordens de pensamento e em relações de hierarquia, sejam as arbitrárias fundadas majoritariamente em violência, sejam aquelas fundadas em legitimações grupais. Em uma das seções dos Ensaios, o pensador reflete sobre as reverberações na Europa das narrativas sobre as práticas de comer a carne de inimigos mortos em conflitos por habitantes do outro lado do mundo, da então chamada França Antártica, hoje Brasil. Algo que soava eloquentemente chocante aos moradores dos burgos em gradual crescimento e adensamento populacional. Formas de vida coletiva cada vez mais enredadas em um processo civilizacional baseado na sedimentação do Estado-nação de vasta abrangência territorial, bem como na obediência a monarcas encastelados e ausentes aos olhos dos seus súditos. Impressionantes, exóticas e atraentes aos olhos dessas populações, as narrativas de viajantes e cronistas preenchiam uma parte significativa do mercado editorial europeu logo após o início de um contato que foi também, e principalmente, o início de uma ocupação e de um saque de caráter imperialista.
Durante uma festa de rua em Rouen, no mesmo século XVI, na qual se faziam desfilar exemplares humanos dessas narrativas editoriais, Montaigne se dirigiu, com a ajuda de um intérprete, a três desses habitantes, indagando o que lhes parecia estranho nesse continente para eles desconhecido. Ressaltaram sua estranheza ao observar que “tantos homens importantes, de grandes barbas, fortes e bem armados como aqueles que rodeavam o rei (é muito provável que se referissem aos Suíços da guarda real) rendessem obediência a uma criança em vez de escolher entre eles um para os comandar” (Montaigne, 1980: Capítulo XXXI do Livro 1)[ii]. Em segundo lugar, repararam que havia naquela terra recém conhecida “pessoas cheias e fartas de comodidades de toda ordem, enquanto a outra metade mendigava às suas portas, descarnada de fome e de miséria; e que lhes parecia também singular como essa outra metade podia suportar tamanha injustiça sem estrangular os demais e lançar fogo a suas casas” (Idem). Montaigne ponderou, ainda, neste ensaio, que havia “mais barbárie em comer um homem vivo que morto, dilacerar com tormentos e martírios um corpo ainda cheio de vitalidade, assá-lo lentamente e arrojá-lo aos cães e aos porcos, que o mordem e martirizam” (Idem), se referindo a práticas de punição de cunho religioso adotadas por seus concidadãos. Se atribuirmos a este ensaio de Montaigne um dos primeiros movimentos de um campo de reflexões sobre a alteridade que desaguaria na antropologia, temos que sublinhar que nosso campo de conhecimento se ocupa, fundamentalmente, da crítica de uma visão colonial de mundo.
Ao invés de consistir em uma atribuição acrítica e inexoravelmente positiva das moralidades tais como se apresentam, esse exercício seminal de jogo de espelhos, em Montaigne, dialoga com considerações sobre o caráter instável e múltiplo da verdade e do real que estão presentes em variadas reflexões filosóficas, como entre os sofistas, no próprio Sócrates, e, principalmente, entre os céticos. A verdade, nessas discussões não se apresenta como antônimo de “falso”, mas como adensamento de juízos coletivos que se articulam com noções de bem comum. Este nexo profundo entre filosofia e política na antiguidade é central para os ofícios antropológicos e sociológicos contemporâneos.
A ideia da busca do bem comum foi também o pano de fundo epistêmico das diversas batalhas e conflitos no continente de Montaigne nos séculos posteriores, cujos habitantes e suas sucessivas gerações atravessaram períodos de transformações sociais drásticas, sobretudo a partir do século XVIII, com suas revoluções. Esses processos históricos foram marcados por horizontes de mudanças radicais nas relações de poder entre estratos e classes sociais. Foram construídas outras formas de reprodução social, valendo-se das práticas nascentes na Inglaterra de cercar terras e atribuí-las donos, proprietários. Este novo modo de produção se opunha às relações feudais de controle e produção, nas quais os camponeses trabalhavam para o senhor feudal e em suas próprias terras. Essa imensa transformação, iniciada há pouco mais de quatro séculos[iii], fundou novas e radicais formas de relações sociais de parentesco e entre nações e impérios, aprofundando já antigas hierarquias e violências, e inaugurando outras. Essas revoluções ou contrarrevoluções, sobretudo no seio do coletivismo que as engendravam, fizeram emergir novas formas de pensar. Todo modo de organização social e de relações de poder demanda visões de mundo que lhes legitimassem e atribuíssem sentido. A ampliação de uma visão de mundo, para além do pensamento religioso foi, assim, a marca distintiva dessa emergente dialética: ao invés de um todo onipotente e onipresente, o mundo social era construído no tempo histórico, na escala humana. O processo histórico passava a operar a partir de ações executadas por grupos e pessoas em permanentemente fluxo, em produção e reprodução, portanto inacabadas e impreterivelmente abertas a desvios e inversões.
Se desde a Aufklärung[iv], especialmente na sua versão kantiana, um interesse pelo presente pode ser identificado, é com os desdobramentos dela devedores que vemos surgir perspectivas intelectuais que pretendem explicar o mundo tendo como horizonte sua constituição. O pensamento dialético – tanto em sua versão hegeliana como no materialismo histórico de Marx e Engels – mostrou o sentido histórico do nosso presente para percebê-lo não como algo passível apenas de desvendamento, mas também de transformação. Essa versão do pensamento crítico viu-se desdobrada em projetos político-intelectuais. Aprendemos e ensinamos desde as dialéticas de Proudhon e Marx[v] a perscrutar no seio de processos radicais as transformações sociais que os articulavam, procurando descrevê-los, analisá-los pormenorizadamente, antevendo a possibilidade de intervir sobre a realidade a que davam corpo. Vemos a vida social imersa em processos nos quais os conflitos e a mudança são fundamentais e, portanto, somos avessos a regimes de verdade ditados pelo dogmatismo e pela negação da diferença. É também a partir da reflexão acumulada sobre e para as revoluções, numa tentativa de formular respostas para as drásticas mudanças, que vemos os pensamentos afeitos à sociologia e à antropologia adquirirem formas tal como conhecemos hoje. Trata-se de disciplinas que procuram conciliar e articular os conhecimentos sobre a vida no mundo em seus múltiplos espaços e contextos, descrevendo as camadas de elementos dessas experiências, apontando sínteses que articulam aspectos locais a globais.
Desconstrução
Com Franz Boas aprendemos no raiar do século XX, e ainda ensinamos, a desconstruir a noção biológica de raça, na qual se respaldavam a partir do campo científico todas as ocupações coloniais de então, conciliando tais narrativas com a estrita violência. Essa perspectiva racista constituía-se logicamente impossível mesmo em seus próprios termos, na medida em que o rastreamento de unidades raciais requereria aceitar a refutável hipótese da endogamia e de um sedentarismo milenar e constante de povos inteiros, cujas práticas migratórias e preponderantemente exogâmicas já se faziam conhecidas e amplamente registradas. Mas o mesmo Boas assinalava que essa noção biológica de raça operava amplamente como demarcador de distinções sociais, e que deveriam ser objeto de atenção, descrição e análise por parte da ciência social nascente. Ele se refere sobretudo à interlocução entre teorias racistas no interior da comunidade científica (Boas era um físico de formação) e a implementação de políticas de domínio colonial amparadas em uma determinada percepção do que era o “progresso”.
A geração posterior de antropólogos manteve uma preocupação, a sua maneira, com essas questões. O pragmatismo sui generis de Malinowiski, que afirma que “raça é o que raça faz”, também articula a importância dos usos sociais desta – e de outras – categorias. No mesmo esteio – mas com outra perspectiva –, Marcel Mauss, no seminal texto “As técnicas do corpo”, nos lembra que mesmo as diferenças que poderiam ser associadas ao natural são culturalmente produzidas. E se olharmos para essa mesma quadra histórica, mas com o Brasil como alvo, devemos reconhecer o posicionamento da antropologia de Edgar Roquette-Pinto, do Museu Nacional, que advogava por uma não hierarquização entre raças.
O pensamento antropológico soa para a ideologia totalitária bolsonarista como ofensa e ameaça, porque suas questões mais triviais lhe repudiam. A antropologia oferece ferramentas que se dirigem para a produção da diferença em múltiplos planos: o questionamento dos usos da raça no sentido biológico, a crítica das dominações inerentes às manipulações em torno de demarcações preconceituosas, além da identificação do caráter histórico do modo de produção hegemônico bem como a abordagem descritiva sobre a coexistência de outras formas de organização social e econômica no presente e no passado. Esses horizontes constituem, efetivamente, um conjunto de saberes que ameaçam o projeto de país e visões de mundo bolsonaristas. Essa oposição se assenta principalmente na capacidade que a antropologia demonstrou em mobilizar esse arcabouço para colocar impedimentos à livre execução de violências por diferentes governos no Brasil. A antropologia feita no país possui uma trajetória de um aprendizado acumulado por sua atuação associativa junto às populações indígenas para a formulação de importantes artigos na Constituição de 1988, bem como da mobilização de suas garantias legais para proteção e autoproteção, além da defesa dos setores historicamente marginalizados no país.
As dificuldades e impasses da conjuntura atual demonstram que, ao contrário do desejo bolsonarista, os conceitos e formas de pensar da antropologia encontram-se em pleno reflorescimento pelos questionamentos que estimula. Urge, porém, uma reflexão sobre os métodos políticos e educacionais, de maneira articulada, eficaz e moldada à realidade contemporânea, para que o acúmulo de seus debates, etnografias e teorias sejam amplamente apropriados pela sociedade brasileira, e sobretudo pelos que estão nas margens, como antídoto contra o avanço do autoritarismo e do apagamento das diferenças no país.
Isis Ribeiro Martins é antropóloga e cientista social, atualmente pesquisadora vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) / UFRJ
Caio Gonçalves Dias é antropólogo e produtor cultural, atualmente pesquisador vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) / Museu Nacional / UFRJ
Aline Moreira Magalhães é antropóloga e cientista social, atualmente pesquisadora vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia e Saúde Pública (PPGESP) ENSP / FIOCRUZ
[i] Olavo de Carvalho não tem título universitário, mas se autointitula filósofo.
[ii] Montaigne, M. Ensaios. Abril Cultural, Coleção Os Pensadores, 1980.
[iii] O primeiro Inclosure Act (Inglaterra) data de 1604, porém a política de cercamentos adquire sistematicidade conforme o aprofundamento da Revolução Industrial no século XVIII.
[iv] Expressão alemã que pode ser traduzida (ainda que imperfeitamente) por “Esclarecimento”, o que também é conhecido na historiografia por “Iluminismo”.
[v] Gurvitch, G. Dialética e Sociologia. Biblioteca Vertice, 1987 [1962 1ª ed.].