Para que e a quem serve o Ministério do Turismo
A análise sobre o que Álvaro Antônio tem feito pela pasta sob seu comando nos últimos vinte meses deixa dúvidas sobre a verdadeira função atribuída pelo governo ao setor, pois os principais instrumentos da atual política de turismo foram concebidos em gestões anteriores
O Ministério do Turismo foi criado em 1º de janeiro de 2003 pelo presidente Lula, cujo gesto apontava para a importância atribuída por seu governo a este setor. Sua história, entretanto, durante e depois de Lula, é marcada por controvérsias e contradições de diferentes naturezas as quais colocam em xeque o real papel deste Ministério na estrutura organizacional do Estado e nos jogos de poder inerentes à política. A análise sobre o atual momento alimenta este questionamento.
Assim como com outros ministérios (Meio Ambiente, Cidadania, Agricultura, por exemplo), fica claro, no caso do Turismo, o completo alinhamento ideológico entre o ministro Marcelo Álvaro Antônio, filiado ao PSL desde 2018, e o governo Bolsonaro. Vale lembrar que o mesmo foi indiciado pela Polícia Federal, em outubro de 2019, por crime eleitoral e associação criminosa, acusado de ter participação em um possível desvio de recursos por meio de candidaturas-laranja, quando ainda presidia o PSL em Minas Gerais. Álvaro Antônio é ministro desde 1º de janeiro de 2019 e o presidente declarou publicamente, por mais de uma vez, que ele permanecerá no cargo durante a apuração da PF. O processo corre sob segredo de justiça.
Por outro lado, a análise sobre o que Álvaro Antônio tem feito pela pasta sob seu comando nos últimos vinte meses, desde que a assumiu, deixa dúvidas sobre a verdadeira função atribuída pelo governo ao setor, pois os principais instrumentos da atual política de turismo, a título de exemplo, foram majoritariamente concebidos em gestões anteriores, a começar pelo Programa de Regionalização do Turismo (2004); um dos principais instrumentos da política nacional para o setor, cujas diretrizes vigentes foram estabelecidas no primeiro mandato de Dilma Rousseff, em 2013.
Interessante também notar que o Programa Qualificação no Turismo é composto por sub-programas integralmente concebidos por governos anteriores: Pronatec Turismo (2011), Brasil Braços Abertos (2016), ADS China (2017), Rede de Inteligência de Mercado no Turismo (2018), Gestor de Turismo (2018), Política Nacional de Qualificação no Turismo-PNQT (2018), Médio Tec, uma modalidade do Pronatec Turismo (2018), todos elaborados durante os governos de Dilma (2011-2016) e Temer (2016-2018).
Particularmente no caso da Política Nacional de Qualificação no Turismo-PNQT, chama a atenção sua recém re-publicação, reproduzindo-se integralmente o conteúdo da versão anterior, de 2018, mas alterando-se sua Ficha Técnica, na qual aparecem em primeiro plano os nomes do presidente Jair Bolsonaro e do ministro Álvaro Antônio. Mais que isso, o texto da PNQT publicado no site do Ministério há poucos dias apagou da referida Ficha Técnica, entre outros, os nomes daqueles que contribuíram para a realização da pesquisa que dá origem à PNQT, como professores coordenadores das pesquisas de campo e pesquisadores graduados, mestrandos, doutorandos e especialistas tal como consta no documento original. Uma espécie de plágio institucionalizado! Ressalte-se que as mensagens de abertura do “novo” documento, de autoria do ministro e do secretário nacional de Desenvolvimento e Competitividade do Turismo, lançam mão de uma elipse narrativa[1] que deixa dúvidas sobre a autoria da política, cuja preparação iniciou-se no governo Dilma e concluiu-se no governo Temer, sendo agora reproduzida, sem retoques, pela atual gestão.
Não queremos dizer com isso que programas de governos anteriores não devam ter continuidade, pois este costuma ser um equívoco administrativo muito comum nas práticas de gestores públicos quando assumem seus postos, nas diferentes instâncias administrativas. Todavia, no caso específico do atual governo, que discrimina e ataca permanentemente seus antecessores, é no mínimo inusitado e evidentemente contraditório que o Ministério do Turismo esteja assentado, quase dois anos depois do início da atual gestão, sobre programas majoritariamente criados por governos anteriores, entre os quais Lula e Dilma, esta última achincalhada pelo presidente durante o processo de impeachment.
Entre as escassas medidas do Ministério do Turismo de Bolsonaro encontra-se a formulação do documento “Investe Turismo: parcerias para transformar destinos”, lançado em maio de 2019, o qual começa com a falsa afirmação de que “pela primeira vez um governo percebe todo o potencial da atividade para o desenvolvimento econômico da Nação”. Ora, o reconhecimento da importância do turismo para o desenvolvimento do país resulta de um processo histórico cuja origem certamente não está em 2019. Getúlio Vargas, por exemplo, foi quem criou, em 1939, o primeiro organismo oficial de turismo da administração pública federal, a Divisão de Turismo, ligada ao Departamento de Imprensa e Propaganda, diretamente vinculada à presidência da República[2]. Mas podemos também falar do general Castelo Branco, em cujo governo, primeiro da ditadura, foi colocado em prática o Sistema Nacional de Turismo e criado um Conselho Nacional para o setor, assim como a então Empresa Brasileira de Turismo, a conhecida Embratur. Collor de Mello, por seu turno, efetivou em sua gestão o maior programa de infraestruturas para o turismo no país, o Prodetur-NE. Fernando Henrique Cardoso é outro entre os presidentes que compreendeu a importância do turismo para o desenvolvimento econômico e social do país, o que está expresso na sua Política Nacional de Turismo 1996-1999 e no seu programa de governo, segundo mandato, intitulado Avança Brasil. E o ex-presidente Lula, que não apenas alçou o turismo à condição de Ministério, este que Bolsonaro cogita extinguir, mas também proveu o mesmo de recursos financeiros necessários à efetivação de suas políticas para o setor.
É interessante também olhar para a distribuição dos recursos do Fundo Geral do Turismo (Fungetur),[3] principal linha de fomento à atividade, na gestão de Álvaro Antônio. Em 2019, por exemplo, 150 projetos de diferentes naturezas (obras, capital de giro, entre outros, conforme normas que regem o Fundo) foram financiados em Minas Gerais contra apenas 2 no Espírito Santo, 6 em Sergipe, 7 em São Paulo, 10 em Santa Catarina, 11 no Rio Grande do Sul e 12 no Paraná. Dos 150 citados, cerca de um terço está em Belo Horizonte, reduto eleitoral do ministro. Com relação ao volume de recursos, entre janeiro de 2019 e agosto de 2020, o BDMG foi a segunda instituição com mais projetos financiados, atrás apenas do Banco Regional de Desenvolvimento, que atende os três estados da região Sul do país.[4] Importante ressaltar que a distribuição concentrada dos recursos do Fungetur para os estados mais ricos configura desvio em relação à Lei do Turismo (n.11.771, 17/09/2008), que dispõe sobre a Política Nacional de Turismo-PNT e define seus objetivos, entre os quais, conforme Artigo 5o:
“II – reduzir as disparidades sociais e econômicas de ordem regional, promovendo a inclusão social pelo crescimento da oferta de trabalho e melhor distribuição de renda;
VI – promover, descentralizar e regionalizar o turismo, estimulando Estados, Distrito Federal e Municípios a planejar, em seus territórios, as atividades turísticas de forma sustentável e segura, inclusive entre si, com o envolvimento e a efetiva participação das comunidades receptoras nos benefícios advindos da atividade económica”.
Esses objetivos estão presentes na Política Nacional de Turismo – 2018-2022, mas o que o gráfico da distribuição dos recursos do Fungetur 2018-2020 revela que ocorre exatamente o contrário do previsto na Lei do Turismo e na PNT, com uma evidente e estrondosa concentração dos recursos em alguns dos estados mais ricos da nação, atendidos por instituições de fomento como Badesul, BDMG, BRDE e Desenvolve SP. Como se pode ver, o Ministério do Turismo do governo Bolsonaro está dando sua parcela de contribuição para a manutenção das desigualdades regionais no Brasil.
Fonte: Ministério do Turismo
Ressalte-se, também, que, recentemente, em 3 de setembro, sob os holofotes da imprensa, Álvaro Antônio entregou, simbolicamente, um cheque de R$ 390 milhões do Fungetur ao presidente do BDMG, em uma cerimônia em Ouro Preto com a participação do governador Romeu Zema, reconhecidamente simpatizante do governo Bolsonaro. Não há notícias de que o mesmo gesto de magnanimidade tenha se repetido recentemente em outras Unidades da Federação.
Além de servir para atender a interesses políticos de seu ministro, o Ministério do Turismo também vem desempenhando um papel estratégico para Bolsonaro, como parte de seu projeto desmantelador da gestão da cultura no país. Extinto o Ministério da Cultura na reforma administrativa realizada no primeiro dia do governo, já um duro golpe para o setor, a pasta, convertida em Secretaria Especial, ficou, primeiramente, subordinada ao Ministério da Cidadania, da qual foi desvinculada em novembro de 2019 após polêmicas de diferentes naturezas envolvendo nomeações de secretários, como o excêntrico Roberto Alvim, e ações que supostamente poderiam manchar a imagem do presidente. É aí que o Ministério do Turismo mostra, mais uma vez, para que e a quem serve.
A página oficial do Ministério do Turismo é um retrato do descaso do ministro com sua pasta e, também, com a sua subordinada Secretaria Especial da Cultura.
Entre os banners disponíveis, encontra-se o Prêmio Braztoa de Sustentabilidade de 2016, com inscrições até o dia 3 de outubro daquele ano! Além disso, o site, apesar de acessível na linguagem de Libras, o que é de grande relevância social, não está disponível em inglês ou espanhol! Como o mais importante órgão da administração pública federal que tem, entre outros objetivos, contribuir para a atração de mais turistas estrangeiros ao país, pode manter uma página na internet apenas em português?
Quanto à Secretaria Especial de Cultura, não se encontra um link de acesso no site do Ministério ao qual a mesma está subordinada. Há apenas e tão somente um atalho na página inicial – “Auxílio Cultura”, o último de uma lista de 18, e que remete exclusivamente à recente lei Aldir Blanc. Fica evidente, portanto, que o Ministério do Turismo serve, também, para eclipsar, obliterar e diminuir a gestão da cultura no atual governo.
Exemplo crasso disso foi a nomeação por Álvaro Antônio, em abril, da blogueira Monique Aguiar para um cargo de coordenação no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), um órgão público com mais de oitenta anos de história e com grande respeitabilidade no país e fora dele. Após uma grita geral de especialistas ligados à área patrimonial e de a Controladoria Geral da União manifestar-se afirmando que a indicada não teria qualificação profissional para o cargo, o ministro voltou atrás, suspendendo sua nomeação em junho. Mas, em uma demonstração de força e ao mesmo tempo desprezo com a posição de técnicos e pesquisadores ligados à área, o ministro logo depois indicou Larissa Peixoto, formada em Turismo e Hotelaria e funcionária de carreira do Ministério do Turismo, para a presidência do Instituto, enquanto Monique Aguiar recebeu um cargo de coordenação na Fundação Nacional de Arte (Funarte).
Daí a metáfora utilizada no chapéu deste artigo. Conta a história que Gregório Potemkin, um marechal russo, teria mandado construir cenários de belas aldeias na região da Criméia, no século XVIII, visando ocultar problemas, entre os quais a pobreza de vilarejos ao longo do Rio Dnieper, para impressionar a então imperatriz da Rússia, Catarina II, durante sua visita à região.
Isto é o que o Ministério do Turismo tem sido neste governo, uma fachada, por trás da qual Bolsonaro busca ocultar parte daquilo que lhe incomoda – afinal, no interior de seu projeto político-ideológico não há espaço para a natureza emancipatória genuína do campo cultural – e, também, por trás da qual presidente e ministro pavimentam seus projetos eleitoreiros, ainda que disso resulte o fomento às “disparidades sociais e econômicas de ordem regional”.
Rita de Cássia Ariza da Cruz é docente do curso de Geografia e do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana, e coordenadora do Laboratório de Estudos Regionais do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
[1] Primeiro parágrafo da mensagem do ministro: “Almejar excelência dos serviços turísticos brasileiros e contribuir para consolidar o setor como uma das vertentes da economia brasileira. Essa é uma das prioridades do Ministério do Turismo para fortalecer o setor e, com esse objetivo, contamos com a estruturação da Política Nacional de Qualificação no Turismo, que foi desenvolvida pelo MTur em parceria com a Universidade de Brasília, empresários e trabalhadores” (p.10). Primeiro parágrafo da mensagem do Secretário Nacional de Desenvolvimento e Competitividade: “Em 2014, o Ministério do Turismo assumiu o importante desafio de ampliar a qualificação em turismo no Brasil. Buscou parceria com a Universidade de Brasília (UnB) e desenvolveu as Diretrizes Nacionais para Qualificação em Turismo (DNTQ). Essas diretrizes já apontavam caminhos para o desenvolvimento do tema. No entanto, foram encontradas diversas limitações para o cumprimento de metas estabelecidas nos Planos Nacionais de Turismo. Em busca de solucionar esses impedimentos, foi então realizada a Pesquisa Avaliativa dos Arranjos Territoriais Possibilitadores da Qualificação. Uniu-se então a pesquisa desenvolvida ao DNTQ, que resultou na construção da Política Nacional de Qualificação no Turismo (PNQT)” (p.11).
[2] Decreto-Lei 1.915 de 27 de dezembro de 1939.
[3] O Fungetur foi criado em 1971, pelo Decreto-Lei 1191.
[4] Vide planilha de desembolsos das Instituições financeiras parceiras do Fungetur.