Varrendo as ruas de pedra de Paraty - Le Monde Diplomatique

TRABALHO OU PATRIMÔNIO

Varrendo as ruas de pedra de Paraty

por Tais Ilhéu
26 de julho de 2018
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Os vendedores ambulantes da cidade que abriga a maior festival literário do Brasil já não exibem seus tradicionais doces, bebidas, artesanatos com a mesma tranquilidade de antes. Acusados de poluírem “o bem tombado” e causarem “danos ambientais e à saúde da população”, os pequenos comerciantes vivem sob a ameaça de uma condenação que os varreu para fora das ruas do centro histórico de Paraty (RJ)

Todas as noites, quando começa a cessar a movimentação de pessoas, é possível ver na praça da matriz, em Paraty, barraqueiros se organizando para deixar o local. O esforço não é pequeno, ainda mais depois de um dia de trabalho: é preciso desmontar e retirar do Centro Histórico toda a estrutura de suas barracas, trailers ou carrinhos. De vez em quando, pedem reforço. Mônica Salles de Medeiros, doceira do Centro, conta que já viu famílias, com suas crianças, reunidas no monta e desmonta de algumas barracas.“Se deixar, eles [a guarda-municipal] prendem e levam para o pátio”, relata uma das vendedoras. O medo de ficar sem poder trabalhar, como aconteceu nas quase três semanas seguintes ao carnaval deste ano, ainda assombra não só os barraqueiros da praça, como a grande parte dos vendedores ambulantes do centro histórico de Paraty. Mônica conta que, desavisados, receberam a ordem de que teriam que parar, de um dia para o outro, de vender nas ruas do centro histórico — onde alguns já trabalham há dez, vinte, trinta anos. A decisão que parece repentina é, na verdade, resultado de um longo processo que durou quase uma década e foi encerrado, em definitivo, apenas em setembro do ano passado. Dez anos marcados pelo diálogo escasso, contradições e “maus-entendidos” por parte de todas as instituições públicas envolvidas.

O ônus da questão

O início desse processo catastrófico para os ambulantes de Paraty já virou quase lenda entre eles, especialmente por conta da identidade do autor da denúncia que o desencadeou: tido como anônimo pela maioria, já que em momento algum seu nome foi divulgado à população, há quem especule que o morador sem nome seja funcionário do IPHAN, da prefeitura ou então que sequer haja denunciante algum. O paratiense, no entanto, não só existe como tem nome, sobrenome e consta nos autos do processo. Por meio de uma denúncia minuciosamente formalizada, como a lei pede, endereçada ao Ministério Público Federal e dirigida ao Excelentíssimo Senhor Procurador da República, em 2004, Antônio da Mota Ferreira se apresentou como cidadão e residente em Paraty e, indignado, expôs o motivo pelo qual escrevia: a presença de vendedores ambulantes no centro histórico da cidade, que, segundo ele, “poluem o bem tombado” e causam “danos ambientais e à saúde da população”. Ao fim, pedia a cassação da autorização dos ambulantes para comercializar no centro e a abertura de inquérito contra a gestão municipal e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), o primeiro responsável pela concessão das autorizações, e o segundo conivente com o que ele chamou de “desrespeito ao patrimônio tombado”.

De fato, a prefeitura de Paraty foi responsabilizada.  Em 2008, o Ministério Público Federal entrou com uma ação contra o município, exigindo, em um primeiro momento, a retirada dos ambulantes que estivessem causando danos ao patrimônio tombado e atrapalhando a ambiência do centro histórico — em outras palavras, todos aqueles que estivessem causando algum dano, físico ou não, às suas construções e entorno. Uma das questões apontadas foi que as barracas localizadas na lateral da igreja da matriz impediam a total visualização da construção.

O município, no entanto, não pareceu satisfeito, à época, que o IPHAN, também acusado pelo morador denunciante, não estivesse junto dele no banco do réu, mas sim prestando assistência ao autor do processo. Por isso, gastou apenas metade de sua contestação defendendo o direito dos ambulantes, “pessoas de origem humilde e notável senso de organização”; na outra, se ocupa em convencer de que o IPHAN, e não ele, deveria estar sendo julgado, e que o mesmo estaria habilmente conduzindo o MPF de forma a fazer com que a prefeitura exercesse uma função que não lhe deve, lidando por fim com o maior ônus da questão: se indispor com a população.

Procurada e questionada pela contestação aparentar, antes de tudo, uma resposta ao escritório do Instituto em Paraty e não ao denunciante ou ao Ministério Público — que de fato eram quem se opunham a ela no processo — a prefeitura volta a reafirmar que a função de fiscalizar e ordenar os ambulantes do Centro cabe ao Instituto — embora tenha sido ela a responsável, até então, pela concessão de alvarás de funcionamento, além de ter criado e conduzido ao longo da última década outras leis e projetos que visavam a regulamentação dos ambulantes, o mais recente intitulado Paraty, quem ama cuida, que segundo a prefeitura visa a preservação da ambiência e visibilidade do conjunto arquitetônico e o ordenamento do Centro Histórico, “mas de forma a buscar meios para que a integração entre trabalho e preservação seja possível”.

Luiz Claudio Jardim, procurador do município à época, não titubeia ao afirmar que “o IPHAN obriga o município a trabalhar para ele”. O município se dirige a este na contestação porque embora a denúncia tenha partido de um morador, o respaldo para se fazer cumprir teria vindo do IPHAN. Jardim abre, no entanto, a ressalva de que o escritório técnico da Costa Verde, por meio do qual o IPHAN atua no município, conta com poucos funcionários, que não conseguem cumprir com as demandas de Paraty. De acordo com ele, falta estrutura para agir.

Ambulantes fixos?

Longe de ser uma exceção, esta é apenas uma dentre as tantas inconsistências ao longo dos últimos dez anos. A central, talvez, é a determinação de quem de fato seriam os “ambulantes” referidos no processo. Entre a contradição e o pleonasmo, a confusão já começa pela tentativa de dividi-los em dois grupos: os ambulantes fixos e os ambulantes móveis. A prefeitura, quando se pronuncia ao longo do processo, escolhe a dedo seus vendedores ambulantes, aqueles que usaria para se defender perante a justiça: as doceiras, os artesãos, os indígenas.

Quanto aos do IPHAN, é mais difícil afirmar quem seriam. Já depois do encerramento do processo, este apresentou, em outubro, um parecer (nº 21/2017), no qual afirma que apenas as estruturas fixas e permanentes representariam danos ao patrimônio tombado e que os carrinhos de doces e comidas caseiras poderiam ser tolerados nas ruas do centro, desde que em constante movimento, assim como seriam aceitáveis também os trailers e barracas, desde que em períodos pré-determinados e obedecendo a algumas determinações quanto à estrutura.

Após a sentença, a Prefeitura Municipal de Paraty começou a remover todos os ambulantes que atuam no centro, sem considerar o exposto ao longo dos anos, evidenciando assim a necessidade premente de buscar esclarecer sobre que estruturas o IPHAN está se referindo desde do início e, é claro, tratar a situação atual do Centro Histórico que foi tão diversa ao longo desses anos”. Para o IPHAN, a situação dos ambulantes móveis não era pauta no processo, mas sim as barracas fixas de artesanato que, à época, estavam instaladas nos arredores da Igreja da Matriz e ao longo do rio Perequeaçu, onde posteriormente, segundo eles, também se instalaram barracas de vendas de alimentos que utilizavam gás para cozinhar.

E de fato, a primeira decisão da justiça, em dezembro de 2008, determinava que o município retirasse os ambulantes e trailers instalados na cidade de Paraty que estivessem interferindo na ambiência e visibilidade do conjunto arquitetônico, especialmente aqueles localizados nas regiões que o IPHAN havia apontado. Colocava ainda a obrigação do município em destinar uma área apropriada para a instalação dos mesmos.

A sentença final, no entanto, não deixa espaços para “quês” ou “poréns”. Em 2014, a juíza federal Ana Carolina Vieira de Carvalho determinou que a prefeitura retirasse todos os ambulantes existentes no centro histórico, impedindo ainda a instalação de novos sob pena de multa diária de R$ 5 mil. Na fundamentação da sentença, sustenta que a presença dos ambulantes “impede de forma patente a visualização dos imóveis tombados e prejudica a beleza existente no Centro Histórico” e que “a proteção ao patrimônio é medida que indiretamente os beneficia, pois quanto mais preservado o conjunto arquitetônico da cidade, mais incrementado será o turismo e maior será o número de eventuais consumidores”. Não há como determinar em que momento o processo passou a abarcar todos os ambulantes, já que o próprio procurador Jardim afirmou que, inicialmente, o processo se referia às estruturas fixas. Procurada, a juíza não quis conceder entrevista.

Dez anos de instabilidade ou tiros no pé

A doceira Mônica conta que acompanhou de perto o vai-e-vem dos ambulantes ao longo da última década. Se lembra de quando a prefeitura mandou remover os chamados barraqueiros (ou os tais ambulantes fixos do processo) e os realocou para fora do centro — assim como relembra que, afrouxada a vigilância, aos poucos foram retornando.

Nos autos do processo o município declarou pela primeira vez, em 2009, que teria cumprido a medida e retirado os ambulantes apontados pelo IPHAN, afirmando ainda posteriormente, em 2011, que os teria instalado na rua Domingos Gonçalves de Abreu e depois às margens do Rio Perequeaçu (em acordo com o IPHAN), abrindo precedente para que, alguns anos depois, a juíza apontasse na fundamentação de sua sentença ser perfeitamente possível que os ambulantes exercessem suas atividades fora do centro, como comprovado pela prefeitura.

Antes da rendição, o réu, que a princípio defendia a manutenção dos ambulantes, tentou ainda uma outra medida um tanto concessiva: pediu à justiça que os ambulantes pudessem trabalhar ao menos durante grandes eventos festivos, como a Flip, justificando que a total paralisação de suas atividades nestas ocasiões representaria uma “verdadeira tragédia à vida cultural do município”.

Para Mônica, ambas as medidas (tanto a remoção do centro histórico, quanto a delimitação aos períodos de festa), afetam suas atividades e diminuem significativamente a rentabilidade. Para quem costuma visitar a cidade em eventos como a Flip, não é preciso muita explicação: basta uma volta pelo centro histórico e outra pela região do centro comercial, onde ficam os supermercados, bancos, e os restaurantes mais reclusos,  para perceber onde os turistas mais consomem.

Diuner Mello atuou em diversos cargos na prefeitura de Paraty, entre eles secretário da cultura. Hoje aposentado, conta que acompanhou de longe o caso dos ambulantes. Para ele, que não responsabiliza o IPHAN, falta boa vontade da prefeitura para resolver o impasse. Árduo defensor do patrimônio histórico,  Mello se incomoda com o fato de a sentença não estar sendo cumprida. Afirma que não vê a necessidade de retirada dos carrinhos das doceiras, mas sim de uma ordenação do espaço urbano. Quanto aos ambulantes fixos e aos artesãos (a maioria deles indígenas, que vendem seus artefatos em esteiras no chão), acredita que o ideal seria que fossem realocados para outros lugares. A presença dos indígenas nas calçadas, segundo o ex-secretário, atrapalha a rotina dos moradores e comerciantes do centro histórico, que precisam circular por ali. Quanto aos comerciantes dos trailers e barracas, afirma haverem outros locais fora do centro histórico onde poderiam ser instalados e critica o fato de alguns destes continuarem trabalhando como ambulantes mesmo depois de “crescerem na vida” e adquirirem outros modos de ganhar dinheiro: “Deveriam dar oportunidade e espaço para outras pessoas”. Para ele, a gestão destes ambulantes fixos poderia se tornar inclusive um programa de assistência social, de modo que o espaço fosse cedido a um ambulante até que ele conseguisse um emprego. Tudo isso, é claro, fora do centro histórico.

Higienização humana

Para além da ambiência, Diuner destaca que a presença dos ambulantes causa, muitas vezes, danos físicos à estrutura das construções tombadas. Lembra de já ter visto, por exemplo, artesãos colocando pregos nas portas para pendurar seus produtos. As dificuldades de mediar a relação entre o elemento humano e o bem físico tombado não é exclusividade do centro histórico de Paraty, tampouco novidade no Brasil. As vezes, a solução mais fácil é fazer de uma vez por todas uma “faxina”. E a corda pende para o lado mais fraco. Fernanda Craveiro, arquiteta que atua na área de preservação do patrimônio tombado, aponta que o ideal seria trabalhar com a educação patrimonial, orientando os ambulantes, por exemplo, quanto ao cuidados com a estrutura das construções e descarte adequado do lixo.

Quando perguntada sobre se o IPHAN ou qualquer outro órgão municipal realizava um trabalho semelhante com os ambulantes, Mônica afirma que não, e que o primeiro pouco manteve diálogo com os ambulantes durante os meses mais conturbados deste ano, quando foram expulsos do centro.

Fernanda ressalta que nos próximos meses, o município de Paraty estará novamente sob holofotes, já que em setembro recebe a visita técnica da Missão de Avaliação de especialistas do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos), órgão assessor da Unesco, que pode lhe render já no ano que vem o título de Patrimônio da Humanidade, na categoria de sítio misto, por seu valor cultural e natural. Esta é a terceira vez que o município pleiteia fazer parte da lista — na denúncia contra os ambulantes feita pelo morador, em 2004, ele já mencionava logo no início a tentativa de tombamento em nível mundial.

Em 2009, o comitê avaliador apontou a necessidade de resolução do problema de saneamento básico do município que, de acordo com o IPHAN, ainda é a principal questão do Centro Histórico. Não é possível saber ao certo como é a Paraty que encontrarão dessa vez. Talvez ainda sem uma rede de esgoto e em falta com o saneamento urbano, mas em dia com o “saneamento humano”, como ironicamente aponta Fernanda. “Patrimônio nada mais é do que identidade e memória, que juntos moldam nossa cultura. Paraty sem ambulantes volta a ser cidade cenográfica”.

Depois do período de exílio, os ambulantes voltaram aos poucos a circular com receio pelas ruas do centro histórico de Paraty.  “Foram feitas passeatas e manifestações e conseguimos voltar a trabalhar”, relata uma das vendedoras ambulantes que, assim como a maioria dos contatados, preferiu não se identificar. “Voltamos aos pouquinhos né, cada final de semana aparecia um carrinho, mas todo mundo com muito medo. Não acredito que a gente está garantido não”, conta uma outra. De acordo com Mônica, tramita também na justiça um processo movido pela Associação de Vendedores Ambulantes de Paraty, na tentativa de legalizar a presença destes e reverter a situação. A doceira conta ainda que os ambulantes também especulam sobre a tentativa de tombamento como patrimônio mundial. “Cidade pequena sabe como é, cada hora é um boato diferente. Tem gente que acha que estão só esperando o pessoal da UNESCO vir para depois nos tirar de novo. A gente espera que Paraty não consiga esse título, porque se tombada só aqui no Brasil já está assim”. A prefeitura, por sua vez, afirma oficialmente que estuda propostas de realocação dos trabalhadores.

Taís Ilhéu é jornalista e escreve de Paraty



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