#Paris2024, orientação política e cultural da rebeldia
O sucesso da abertura dos Jogos Olímpicos de 2024 é um bom exemplo sobre como a crise na qual estamos é tudo menos estética por si só. Ela representa as tensões entre o secularismo e o conservadorismo
“Citius, Altius, Fortius – Communiter”. Mais rápido, mais alto, mais forte – juntos.
O lema olímpico voltou a ecoar quando os 33 Jogos Olímpicos da Era Moderna tiveram início, em 26 de julho, em Paris, capital francesa. As Olimpíadas se ressignificaram ao longo do tempo e sempre mobilizam um valor simbólico relevante, visando construir a confraternização universal. Contudo, o lema não ecoou uníssono. Na abertura, vieram à tona as contradições dos nossos tempos.
Paris subverteu a tradição. Pela primeira vez, a abertura dos Jogos ocorreu fora dos estádios. Na linguagem do entretenimento, levantou-se o debate público sobre temas fundamentais para a democracia moderna. Um dos momentos marcantes foi um quadro artístico intitulado “Festividade”. Tudo começou com a imagem de um grupo sentado junto a uma mesa, no qual estavam várias drag queens célebres, como Nicky Doll, Paloma e Piche. A cena lembrava a “Última Ceia”, de Jesus Cristo com seus apóstolos, retratada por Leonardo Da Vinci. Com música da DJ francesa Barbara Butch, militante feminista e lésbica, várias modelos, entre elas Raya Martigny, uma mulher trans, desfilaram depois com trajes desenhados por talentos emergentes da moda.
Após uma coreografia que evoca como nasce o desejo, interpretada por dançarinos com roupas nas cores do arco-íris, dois homens se beijaram. Depois, um trio se abraçando apaixonadamente em um quarto, antes de um ménage começar.
Veio a fúria. A Igreja Católica na França criticou, chamando de escárnio e zombaria. Da ultradireita, a deputada francesa no Parlamento Europeu, Marion Marechal, sobrinha de Marine Le Pen, reagiu em seguida. Sob um viés racista, atacou a cantora pop franco-malinesa Aya Nakamura, a estética do beijo gay e de várias Maria Antonietas guilhotinadas, segurando a própria cabeça. “Saibam que não é a França que está falando, mas uma minoria de esquerda pronta para qualquer provocação”, postou.
Se pronunciaram, no tribunal digital, outros líderes da direita nacionalista europeia, como o italiano Matteo Salvini. No Brasil, o bolsonarismo se expressou em peso, aglutinando a crítica em torno da “encenação do diabo”, nas palavras do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ). Elon Musk, dono do “X” e apoiador do candidato do Partido Republicano à presidência dos Estados Unidos, Donald Trump, também atacou na mesma direção. Respingou até o líder do Governo Lula no Congresso, o senador Randolfe Rodrigues (PT-AP), que, em uma mensagem ambígua, considerou a abertura quase impecável, mas a encenação bíblica com drag queens “ofensiva”. Ele é católico e, no mesmo post, disse que é preciso amar seus inimigos e abençoar aqueles que te amaldiçoam.
Os responsáveis pela performance no rio Sena já se pronunciaram dizendo ser uma referência a Baco, o deus do vinho, e às festas pagãs do monte Olimpo. Não era um ataque aos cristãos e nem à obra de Da Vinci. Não importa. As intenções por trás de uma performance ou obra de arte não anulam as interpretações que o público fará delas.
As raízes medievais do conservadorismo e o apelo da direita nacionalista
Ao contrário do que parece, as raízes do pensamento conservador e da ultradireita são bem antigas e estão fincadas no catolicismo e na Idade Média. Um erro bastante comum é procurar entender esses temas e problemas como se tivessem começado ontem. Doutrinas religiosas, ideológicas, políticas, econômicas e até mesmo estéticas surgem em determinado tempo para se contrapor a formas de pensar anteriores.
Na esteira do secularismo, estavam os ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade que aboliram o Absolutismo, estabelecendo um divisor de águas na História. A Revolução Francesa embalada pelas efervescências do século XVII e XVIII, definiu a soberania popular como base de toda a política baseada em direitos. Aí se tem o impulso para a Declaração de Direitos destinada a toda a cidadania. Mas então veio o Termidor, e ganhou força a denúncia dos “direitos humanos”, na escrita dos opostos às conquistas dos séculos XVII e XVIII revolucionários.
Na França, nos Estados Unidos e na Inglaterra do século XIX, adquiriram força os discursos contrários ao Estado democrático. Como colocou o professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, Roberto Romano, todos os teóricos conservadores, ao refletirem sobre as revoluções modernas, por eles identificadas como herdeiras de Lutero, Calvino e das Luzes, pregam o retorno da hierarquia e da ordem, cujo modelo foi posto na Idade Média católica. Segundo Louis De Bonald (1754-1840), arauto da extrema direita francesa, “a Revolução começou com a Declaração dos Direitos do Homem; só terminará com a Declaração dos Direitos de Deus”.
Carl Schmidt, católico durante um bom tempo e teórico nazista, disse que a Igreja é um “complexo de opostos”. Nela, podemos encontrar quase todas as ideologias e doutrinas sociais e políticas. Mas, a sua administração segue o rumo dado pelo dirigente máximo, o Papa. No direito natural católico, cada nível social usufrui o direito correspondente à sua dignidade. Mesmo o setor mais progressista da vida eclesiástica retoma semelhante hierarquia jurídica e política. Não de modo explícito como antes, a ideia de mobilidade social como pecado ainda paira no pensamento da Igreja, o que dificulta enunciar ali um direito humano universal.
O que é “natural” para o pensamento conservador? A escala vertical das dignidades e direitos. Não existem “direitos humanos”, mas apenas o divino encarnado no plano natural. No Brasil, com Jair Bolsonaro, se conhece bem o significado de “Deus acima de todos”.
Como os indivíduos são aberrações revolucionárias, não existe direito individual. Toda pessoa com a visão aristocrática do Antigo Regime, só existe em sua família, em seu sentido heteropatriarcal. A receita política reacionária, além de retomar a ideia de que a família é o núcleo essencial de todo coletivo, propõe “conservar a família e consumir os indivíduos”, disse De Bonald. Eis a lei diferenciada, inscrita nos Estados segundo o status familiar ou institucional, no caso eclesiástico.
Assim, os valores republicanos assentados na liberdade e na igualdade produzem “desmandos” por aqueles que estão embaixo na hierarquia social. Nesse contexto, é preciso que o governo “venha de cima” para colocar o freio de arrumação. Nasce o Estado jurado na fé jurada do povo ao governante. Os direitos humanos, frutos de longos e sofridos processos sociais, tiveram como inimigos os teóricos da contrarrevolução ocorrida no século XIX.
Essas teses se espalharam e conduziram a vida pública aos maiores horrores experimentados pela Humanidade: os totalitarismos do século XX. No século XXI, o nacionalismo, com sua massa cinza e gélida, apela ao fundamentalismo religioso e contesta o conceito básico de democracia – a nação como um pacto político.
O sucesso de uma cantora pop franco-malinesa, as guilhotinas, o beijo gay, drag queens reconstruindo a “Última Ceia” e uma modelo trans na abertura dos Jogos Olímpicos de 2024, são um bom exemplo sobre como a crise na qual estamos é tudo menos estética por si só. Ela representa, principalmente, as tensões entre o secularismo e o conservadorismo.
Um modo de vida versus a fórmula dos privilégios
A ascensão e a reorganização internacional da ultradireita derivam, antes, de questões nacionais. Diferenças quanto às questões econômicas, sociais e de política externa não são incomuns. Há, contudo, elementos unificadores que se aglutinam em uma agenda conservadora compartilhada: a “cultura”, a “história” e a “religião” que ameaçam a laicidade do Estado, salientando as hierarquias, o mando pessoal e a recusa de costumes “contrários à natureza”. Assim, repousa sobre o manto da nação e da pureza, o ódio contra os movimentos feminista e queer, os imigrantes e refugiados, negros, indígenas e tantos outros.
Estamos em uma disputa que diz respeito, sobretudo, à autonomia. A abertura dos Jogos Olímpicos em Paris foi muito bem-sucedida para fazer da arte o meio para reivindicar a totalidade das diferenças, cujo poder está em produzir os sentidos sobre o próprio mundo. A performatividade é política na medida em que faz da arte o meio pelo qual se questiona aquilo que o projeto moderno prometeu e não entregou: liberdade e igualdade como universais.
A indignação dos setores conservadores, que invocam a nação e a religião, carrega consigo elementos como “história” e “cultura”, cuja ação discursiva merece ser decifrada. A “História” reflete, geralmente, processos em permanente mudança social. Na linguagem da direita que reivindica a nação, contudo, “história” diz respeito a um passado mítico, idealizado e inventado que se reitera no tempo.
Para a antropologia, a “Cultura” pode indicar o diálogo complexo que as sociedades travam consigo mesmas e com outras sociedades, produzindo a troca fecunda de crenças e valores. Para as direitas nacionalistas, “cultura” é uma essência imutável e impermeável no tempo, incapaz de compreender o mundo compartilhado que revê, ressignifica, constrói e desconstrói seus próprios sentidos.
Compreender a modernidade cultural permite ver como as sociedades produzem respiradouros, formas de resistência e alternativas aos fechamentos que a própria modernidade produz. A modernidade produz reificação social, mas também luta contra ela. A modernidade produz patologia social, mas também movimentos sociais.
É o que faz do projeto moderno irrenunciável. A Revolução de onde nasceu o secularismo e a soberania popular ultrapassa a própria Revolução, porque marca a formação da cultura política democrática da qual fazemos parte e da qual aspiramos para consolidar o Estado de direito democrático.
Os sinais dos tempos não dão ventos favoráveis aos direitos. A cristalização da borra autoritária alimenta na direita nacionalista a ideia da nação como facção, fundamentando os conceitos de nacionalidade e cidadania na “cultura”, na “religião” e no “sangue”.
É simbólico, no lugar onde caiu a Bastilha, o movimento queer enraivecer o conservadorismo, ao mesmo tempo em que deu um bom puxão de orelha em setores progressistas de todo o mundo. Lembraram que os valores republicanos de liberdade e igualdade impulsionam o sentido normativo da democracia. Ela não é apenas um regime político, mas o estilo de vida em que a universalidade se expressa na sua diversidade. É nisso que se inscreve a orientação política e cultural da rebeldia.
Rafael Pepe Romano é bacharel em Direito, graduando em Ciências Sociais na FFLCH-USP e educador popular no Cursinho da FFLCH.