Paulo Scott: ‘desde muito cedo, percebi que existir é construir linguagem’
Escritor lança reedição de ‘Marrom e Amarelo’, livro indicado ao International Booker Prize e vencedor do Jabuti
Foi numa ida a um sebo em Ribeirão Preto (SP), em 2008 ou 2009, que tive meu primeiro contato com a literatura de Paulo Scott. Na estante de poesia, um exemplar de A timidez do monstro me chamou a atenção. A capa roxa e a ilustração que não entendi muito bem me atraíram como nenhum outro livro naquele dia. Abri em páginas aleatórias e fiquei desconcertado diante daquelas poesias curtas com tanto a dizer. Na época, eu tinha 16 ou 17 anos e queria ser poeta.
De lá pra cá, não me afastei mais da produção literária do autor. Li com olhos atentos algumas das narrativas mais emblemáticas da literatura brasileira contemporânea – como Voláteis e Habitante Irreal – e acompanhei, por meio de reportagens ou relatos de amigos em comum, um escritor generoso e comprometido com questões políticas e sociais.
Entre tudo que li de Paulo Scott, Marrom e Amarelo segue como meu livro preferido. A obra, que acaba de ganhar uma reedição pela Alfaguara, conta a história dos irmãos Federico e Lourenço e discute temas como discriminação racial, violência estatal e traumas de infância. O livro foi indicado ao International Booker Prize 2022 e venceu o Prêmio Jabuti 2023, na categoria Livro Brasileiro Publicado no Exterior.
A reedição do romance, publicado originalmente em 2019, traz um conto adicional à narrativa, intitulado O livro de Roberta. Em entrevista concedida ao Le Monde Diplomatique Brasil, Paulo Scott fala sobre essa história, critica as forças armadas e as polícias militares e celebra o atual momento da literatura brasileira. Confira na íntegra:
A nova edição de Marrom e Amarelo traz um conto inédito: O livro de Roberta. Por que decidiu incorporá-lo ao romance agora?
O conto é um exercício a que eu nunca havia me permitido: retomar elementos de uma narrativa longa de ficção para compor um novo universo. Marrom e Amarelo é um contexto que se resolve em si. A história permanece e o seu final – para muitas leitoras e leitores, em aberto (leitura super válida, da qual, entretanto, discordo) – permanece lá.
Um número razoável de mensagens falando sobre o destino de Roberta me chegaram ao longo desses cinco anos. Como eu já disse, ela é uma personagem-sol. Sem a modulação de um filtro adequado, de uma contenção adequada, sua presença na história ofuscaria a presença de todas as demais personagens, inclusive a voz narradora em primeira pessoa que conduz e articula as duas linhas narrativas da trama.
Sendo a presença do futuro apontado no final do romance, imaginei que ela poderia protagonizar um conto que formaria um universo autônomo ao mesmo tempo em que ordenaria novas possibilidades de sua subjetividade propositalmente enigmática (diante do olhar do seu tio Federico e talvez não tão enigmática para o olhar de sua avó, que divide com ela o protagonismo do conto e é a personagem que nos oferece a chave de virada, o baque, o susto) e, pretensamente, acrescentaria novas camadas de possibilidades ao volume já considerável de questões, piadas internas, entrelinhas, teses e antíteses e histórias ocultas embutidas em Marrom e Amarelo.
Nesse sentido, exercita e oferece uma, digamos, diversão (também uma irresponsabilidade poética) ao processo de narrar que não houve na construção do romance dos dois irmãos de fenótipos distintos – O livro de Roberta não traz a expansão social verificada no romance, é uma sala fechada (é sintetizada dentro de um clima claustrofóbico e gera uma claustrofobia de confessionário).
O conto é, assim, a conversa (mais uma conversa cometida no interior do labirinto de sua cumplicidade) entre duas mulheres sobre as imperfeições e segredos que compõem a assustadora dinâmica disso que chamamos de vínculo familiar.
Sua inclusão à reedição do livro se dá também pelo fato de o romance no século XXI ser este palco que admite (e induz a) todo tipo de performances (fotos, desenhos, gráficos, dicções ensaísticas etc.), inclusive o aderir intempestivo de um conto em voz narradora diversa (no romance é primeira pessoas, no conto é terceira).
Desse modo, o conto, mesmo não sendo parte do romance, é também o romance.
Na apresentação de O livro de Roberta, você escreve: Quando imaginei Roberta, imaginei-a como parte de uma subjetividade composta de três presenças, de três buscas: a dela, a de seu avô e a de seu tio autoexilado em Brasília. E para você, Paulo? Quais são as buscas que guiam a sua vida e a sua literatura?
Escrevo para me conhecer e – buscando me encaixar aos processos de construção ética que se apresentam na minha caminhada e aos que eu mesmo tento formular – conhecer um pouco mais as outras pessoas e, talvez, meu lugar na vida.
Desde muito cedo, percebi que existir é construir linguagem – foi, a propósito, essa leitura que me tornou uma espécie de ser cativo da poesia.
Busco linguagem e, nela, proximidade com as outras pessoas (sobretudo as que não compreendo). E, nesse jogo que inicia sempre pela poesia e só depois se estende aos outros gêneros, razão para viver.
Questões relativas ao racismo e às injustiças recorrentes no Brasil aparecem em Marrom e Amarelo desde as primeiras páginas. Há, inclusive, cenas em que a violência vem do Estado, seja por meio da burocracia ou das forças armadas. Existe no Brasil um preconceito institucionalizado? No caso do Exército, por exemplo, é possível que haja uma transformação real nos valores enraizados?
As Forças Armadas e as polícias militares são o braço da violência exercida pela nossa elite (elite como sendo o menos de um por cento da população que consegue controlar e manipular todo o resto). Seu modo de funcionar, parte do modo de funcionar do nosso Estado, é a violência-matriz de todas as outras violências cometidas neste nosso território – um território que se agita, que se debate, para tentar não ser colônia e, apesar de toda essa agonia, não consegue se desenredar.
No livro, penso, está a premissa de que se você retirar o racismo e a paixão apocalíptica, inclusive de repercussão institucional, que ele produz, o Brasil como o conhecemos se desmancharia no ar. Ainda vivemos para atender à visão de quem nos colonizou – nossa elite suicidária (a das grandes extensões de terra e a que controla a máquina financeira, dos bancos aos principais empresários) funciona sob essa regra, essa ética torta até os dias de hoje.
O Exército é o cão do Capitalismo de saque que, gerando medo com sua presença quase inútil em termos de defesa contra ameaça externa, organiza e ordena nosso país. Marrom e Amarelo trata dessa ordem a partir da intimidade e das idiossincrasias de uma família negra que não abaixa a cabeça para a branquitude que espelha a permanente ambição de nossa elite brasileira (uma elite enrijecida, perversa e preguiçosa) e conta com as Forças Armadas e as polícias militares para conter revoltas.
Essa família, como não poderia deixar de ser em uma trama que se afaste da chave do maniqueísmo, está contaminada pelas contradições desse sistema de opressão. Há afeto, mas há muita violência em sua constituição. Como eu disse: há muitas camadas. Um professor de literatura da UFRGS disse um tempo atrás que é uma história que demanda incontornável mediação, reflexão. Acho que a assertiva faz sentido.
Nessa perspectiva, penso, que se trata de um romance de perguntas, não é romance que trará conforto à alma, ao coração.
Nesse sentido, um dos momentos mais especiais nesses cinco anos foi uma conversa que tive com uma senhora negra depois de uma palestra que dei. Ela veio e me agradeceu pelo final ser aquele. Disse que foi um final respeitoso com a caminhada das pessoas negras que sabem que não há solução mágica para o racismo brasileiro.
E, de fato, nosso racismo não é doença que se possa tratar e curar por meio da simples administração de um remédio; nosso racismo é muito maior e mais complexo do que a lógica que se propõe no administrar um remédio.
Nosso problema crônico é que o Estado brasileiro (e a cartilha de seus Três Poderes) não querem a extinção desse nosso modo desumano de funcionar.
Não é nada trivial.
O escritor Paulo Lins disse que há tempo esperava um livro como Marrom e Amarelo. Entre as obras publicadas no Brasil nos últimos anos, qual título te causou a mesma sensação?
Depois que Paulo Lins escreveu o texto de orelha para O Marrom e Amarelo, conversamos com calma e ele me disse que, de fato, ainda não havia em nossa literatura contemporânea um romance que tratasse da hierarquia cromática reinante no Brasil como esse romance tratou: o lugar do negro de pele retinta e o lugar do negro de pele parda em um universo bastante pautado pela opressão da masculinidade. A temática do pardo é uma das mais atingidas pelo tabu prevalente em nosso país quando o assunto é o nosso racismo.
Há muitos espaços ocupados pela ótima literatura contemporânea que vem sendo produzida no Brasil nesses últimos cinco anos. E são muitas as obras que se encaixariam nessa sua pergunta. Penso que tenho aprendido muito com as dicções e protagonismos femininos e de pessoas trans.
Há ciclos que nos trazem ótimas surpresas, ótimas revelações, vozes que deslocam a órbita terrestre e correspondem a todo tipo de espera exigente. Os últimos dez anos têm oferecido um volume impressionante de obras assim.
Aliás, você é um escritor bastante atento ao que está sendo produzido pela literatura brasileira. Quais autores e autoras têm chamado a sua atenção na atualidade?
Quando me fazem essa pergunta, penso imediatamente na poesia. E, avançando no que respondi acima, penso que as obras mais revolucionárias têm vindo das vozes femininas e trans. Não citarei nomes porque a lista é grande e tenho medo de esquecer o nome de alguém que considero relevante e indispensável.
Em suas obras, tanto na prosa quanto na poesia, você apresenta um trabalho cuidadoso em relação à linguagem. Ainda que existam diferenças profundas entre seus livros, sua voz aparece em todos eles de forma bastante autêntica. Para você, a linguagem é tão importante quanto o enredo?
A linguagem me constitui. Sou poeta, sou leitor de poesia. É isso. No entanto, meu compromisso maior é com o tentar contar boas histórias – venho de uma família de forte oralidade, de ótimas contadoras e contadores de histórias (sinto-me compromissado com essa tradição). A singularidade de minha linguagem – isso de, mesmo à distância, meus textos, inconfundíveis, poderem ser reconhecidos como sendo meus – é, na verdade, a minha única maneira de saber fazer. Não tem muita virtude nisso: faço o que sei fazer. Pode não parecer óbvio, mas meu objetivo sempre se direciona ao enredo – e algumas vezes tenho de simplificar a linguagem que construí para não sufocar o que busco contar, mostrar.
Em diversas entrevistas, você enfatizou a importância da leitura em sua vida, inclusive na infância, quando era um menino muito tímido. Qual livro despertou em você a vontade de ser escritor?
Sou resultado de muitas leituras. E continuo sendo. O livro que me fez sonhar ser escritor de prosa foi A náusea, do Sartre, que li quando tinha quinze anos. A poesia já fazia parte da minha vida (escrevo desde os doze), em relação a ela nunca pensei no que estava fazendo, simplesmente fazia. Com a prosa foi diferente.
Anos depois, dois livros nacionais, pela loucura inspiradora que carregam, foram os que me fizeram sonhar ser autor publicado de prosa: o Eles eram muitos cavalos, do Luiz Ruffato, e o Não há nada lá, do Joca Reiners Terron. Na poesia, um autor nacional que me fez querer ser poeta declarado e perder certa vergonha que eu tinha de me aceitar poeta foi o Paulo Leminski. Quando vi ele falar, pensei: quero ser como este cara, louco e intenso como este cara.
Qual foi o melhor conselho que você já recebeu no meio literário? E o pior?
O melhor de todos os conselhos, sobretudo pelo modo e no momento em que foi dado, veio do escritor Marçal Aquino. Ele disse: quando estiver se sentindo injustiçado pelo destino que rege o mundo literário, não perca seu tempo lamentando, volte para a frente do computador ou do caderno e escreva, simplesmente escreva. Foi em 2004, eu era um dos três finalistas de um importante prêmio literário e acabei não ganhando. Na real, eu nem estava mal com aquilo, já me sentia um baita sortudo por ser finalista. Mas ele, que estava ao meu lado no minuto em que eu soube do resultado, insistiu me dizendo que nos dias que se sucederiam, em algum momento, eu iria me sentir injustiçado por não ter ganhado, porque Ainda orangotangos era um livro de contos muito bom etc. Aquele conselho colou em mim e, até hoje, me dá o rumo do que realmente importa nessa minha escolha de ser escritor e não um turista.
O pior conselho? Complicado. Não sei ao certo, talvez porque não tenha importância. Acho que foi: não largue a vida de advogado, tente conciliar os dois mundos. Como se sabe, não segui o conselho, não optei pela conciliação. Não conseguiria. Não me arrependo.
Bruno Inácio é jornalista, mestre em comunicação e autor de “Desprazeres existenciais em colapso” (Patuá), “Desemprego e outras heresias” (Sabiá Livros) e “De repente nenhum som” (Sabiá Livros). É colaborador do Jornal Rascunho e da São Paulo Review e tem textos publicados em veículos como Le Monde Diplomatique, Rolling Stone Brasil e Estado de Minas.