Pela liberdade de ensinar e existir: ciências humanas contra a “ideologia de gênero”
Achar que há uma pauta oculta por trás de pesquisas científicas tão relevantes, usar tais acusações infundadas para promover o medo entre famílias ou mesmo atacar profissionais em sua legitimidade é um procedimento de desespero a uma dimensão inegável, e inegociável, dos processos sociais humanos: a descoberta das múltiplas potencialidades de realização dos nossos corpos e afetos, para além dos limites que nos impusemos por nossas instituições.
O que fundamenta a crítica à suposta “ideologia de gênero”? A ideia de que pilares básicos da “ordem” (família, tradição, propriedade) não devem ser questionados e problematizados em suas contradições. A expectativa de que as meninas sejam dóceis, caseiras, maternais e submissas (belas, recatadas e do lar). E que os meninos sejam viris, objetivos, fortes e provedores. Que continuem ocupando o lugar que sempre lhes coube, ainda que à custa de alguma violência: o poder.
Esta mesma forma de pensar embasou o golpe de 2016, que destituiu a primeira presidenta mulher da história da república brasileira. Porque é, para muitos, insuportável conceber uma mulher (um/a negro/a, um/a índio/a) na posição mais alta da hierarquia de poder político do país. Ou mesmo uma pessoa que subverta, por sua própria (r)existência, as normas de gênero (para além do masculino e feminino), ou as expectativas de heterossexualidade.
A Associação Brasileira de Estudos Sociais das Ciências e das Tecnologias (ESOCITE.BR) nos convocou, como professoras/es e pesquisadoras/es atuantes no campo dos estudos de gênero e sexualidade, a contribuir para pensar esse cenário insólito no qual nos encontramos. E gostaríamos aqui, ressoando muitas/os colegas e intervenções que têm sido feitas, de dizer “não à ideologia de gênero”, e afirmar, pelo contrário, que a questão de “gênero” não é ideológica, e sim científica. Precisamos, para tanto, esclarecer dois equívocos.
O primeiro equívoco amplamente difundido é de que os estudos de gênero se baseiam na ideia de uma construção social (livre, espontânea, desincorporada) do sexo. Ou, simplificadamente, na ideia de que as pessoas podem escolher e construir sua própria identidade sexual independentemente dos seus corpos. Isso não é verdade.
Os estudos científicos de ponta na área de gênero e sexualidade se debruçam sobre as questões de intersexualidade e transexualidade. Essas pesquisas mostram como a questão do corpo (o “sexo biológico”) é fundamental para entender o gênero, e como nossos médicos e juristas têm dificuldade de lidar com as questões da intersexualidade e da transexualidade ao partir do pressuposto que embasa nossas concepções sobre esses corpos: de que seriam ou corpos de “homens”, ou de “mulheres”. Em outras palavras, na chave do “binarismo” de gênero.
Para as pessoas que vivem esse cotidiano (pais com filhos que nascem com condições ligadas à intersexualidade, pessoas que crescem não se identificando com o sexo biológico atribuído no nascimento), a questão do corpo é crucial, e nossos limites “ideológicos”, que classificam os corpos na norma (estatisticamente mais significante) de “ou masculino”, “ou feminino”, causam intenso sofrimento, angústia e muita violência.
Esses estudos mostram, portanto, que a “construção social” não é um processo que independe dos corpos, ou do sexo biológico, mas que se produz a partir da forma como nossa sociedade os compreende e constitui. E isso tem a ver com a história da ciência, da biologia, com os discursos sobre a diferença sexual entre homens e mulheres como sendo algo ancorado em seus corpos. Mas relacionam-se também com hormônios como a pílula anticoncepcional, as academias de ginástica, os salões de beleza, as clínicas de estética, as lojas de roupas, com o silicone, os medicamentos como o Viagra e a própria pornografia. Se homens e mulheres fossem corpos e categorias estáveis, se as pessoas fossem todas “cis” e heterossexuais, “gênero” e “sexualidade” não teriam se tornado questões tão subversivas e já quase clandestinas. O problema é achar que a ciência e a escola inventaram esse problema. E que defender a necessidade de sua discussão é um recurso ideológico.
Várias/os pesquisadoras/es argumentam que a ideia de que homens e mulheres são diferentes por causa de seus corpos foi um investimento político importante na afirmação de projetos sociais que ocorreram a partir da matriz euro-americana entre os séculos XVIII-XIX. Esses projetos estavam preocupados com a limitação e controle das ações das mulheres (e outras frações minoritárias politicamente da população, como negros/as e índios/as no caso brasileiro, por exemplo). Pesquisas situam isso no âmbito de um projeto colonial (e patriarcal), que se baseia na exploração da terra e desses corpos à exaustão. Projeto este que perdura no Brasil, atualizado no presente golpe. E que incide, ideologicamente, sobre gênero, raça, classe e sexualidade.
O segundo equívoco que gostaríamos de esclarecer diz respeito ao caráter anticientífico da questão de gênero e a defesa de que o conhecimento produzido por pesquisadores e cientistas, e ensinado por educadores nas escolas, a respeito de gênero e sexualidade é “ideológico”.
A acepção mais geral do termo ideologia trata do “conjunto de crenças ou certezas culturais e políticas de um indivíduo ou grupo em determinado momento histórico”. Certamente, isso pouco tem a ver com o empenho de profissionais, cientistas e pesquisadoras/es de várias áreas do conhecimento que têm se dedicado a produzir análises das situações concretas e promover possibilidades de intervenção na direção do acolhimento da diversidade humana.
Relevantes pesquisas quantitativas feitas por cientistas sociais, e baseadas no conceito de gênero, vêm levantando dados quantitativos alarmantes sobre assassinatos e violências pautadas pelas questões de gênero e sexualidade: crimes de feminicídio e agressões e homicídios ligados à homofobia, transfobia, lesbofobia dentre tantas outras formas de violência, como a criminalização do aborto. Isso sem entrar nos dados, também científicos, produzidos sobre racismo (inclusive ambiental) e sobre as diversas formas atuais de perpetuar desigualdades sociais. Esses importantes estudos mapeiam os processos sociais que decidem, dia a dia, “quem merece viver” e “quem deve morrer”.
Os estudos de gênero e sexualidade são parte importante dos programas de pesquisa científica presentes em universidades do mundo todo, empreendidos com grande rigor e submetidos a avaliações constantes por pares. Esse campo de pesquisas vem trazendo diversos avanços para nossa compreensão sobre como nos constituímos como pessoas humanas e também como nossos processos sociais produzem desigualdades, exclusão e violência.
Em todo o mundo, essas pesquisas sobre gênero e sexualidade auxiliam a formulação e aprimoramento de políticas públicas voltadas a mulheres e homens, além de grupos específicos de cidadãos como transexuais, travestis, adolescentes e portadores de doenças sexualmente transmissíveis. A discussão sobre gênero e sexualidade não se restringe a grupos ou questões minoritárias: trata de pensar como devemos lidar com a gravidez, com a saúde ou mesmo com o aumento da sífilis e da AIDS em populações as mais diversas (incluindo heterossexuais).
Partindo do pressuposto de que as ciências não precisam, e não devem, estar desvinculadas dos valores éticos e morais de defesa da saúde, da diversidade humana e da liberdade, entendemos que esses dados científicos contribuem para a evidente e intransigente defesa do direito à vida de todos. E, portanto, de uma sociedade plural e democrática.
Achar que há uma pauta oculta por trás de pesquisas científicas tão relevantes, usar tais acusações infundadas para promover o medo entre famílias ou mesmo atacar profissionais em sua legitimidade é um procedimento de desespero a uma dimensão inegável, e inegociável, dos processos sociais humanos: a descoberta das múltiplas potencialidades de realização dos nossos corpos e afetos, para além dos limites que nos impusemos por nossas instituições.
Queimar bruxas de papel, como feito recentemente com a imagem da filósofa Judith Butler, evoca sim a Idade Média, como foi comentado em diversas reações ao fato. Trata-se de ato promovido de uma maneira patética e lamentável pelo desrespeito à sofisticação dos seus argumentos, e ao investimento (diverso, plural e histórico) feito em todo o processo científico (e não ideológico) de construção do conhecimento sobre a existência humana. Em contrapartida, essa manifestação vergonhosa e anacrônica, de quem evidentemente está se vendo ameaçado em suas convicções, contribui como nunca para a divulgação e visibilidade das pesquisas científicas dos estudos de gênero e sexualidade, e de filosofia política de maneira geral.
Não estamos mais na Idade Média. E agora matar e calar é um pouco mais difícil. Entendemos que os atuais cortes ao financiamento da ciência no Brasil tendem – como efeito previsto e desejado – a contribuir para o projeto ideológico de silenciamento do conhecimento científico que vem a serviço da democracia, da liberdade e da vida em sua diversidade, pluralidade e criatividade. Sabemos que é grave que isso tenha se tornado possível com uma manobra violenta que atende(u) a diversos e difusos interesses, e que para se sustentar depende da continuidade desse projeto de destruição nos próximos meses, e anos. Ou seja, à luz da ação política sem ética que se instaurou no Estado Brasileiro desde 2016, da manutenção de um rompimento irresponsável com a Constituição e com os diversos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil no âmbito dos direitos humanos.
Mas acreditamos no conhecimento produzido nas ciências e nas humanidades, no conhecimento situado e corporificado presente nas pesquisas das últimas décadas, produzidas (também!) por mulheres, negras, indígenas, homossexuais, transexuais. Aquelas/es que os projetos de sufocamento financeiro e de perseguição política e ideológica pretendem logo excluir. E confiamos nas possibilidades de articulação política de resistência, democracia e liberdade para as quais as ciências humanas, como conhecimento não-ideológico mas politicamente situado, podem sim contribuir.
Daniela Manica é professora adjunta no Departamento de Antropologia Cultural do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ). Possui graduação em Ciências Sociais (2001), mestrado (2003) e doutorado (2009) em Antropologia Social pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH/Unicamp).
Marko Monteiro é professor no Departamento de Política Científica e Tecnológica da UNICAMP, e líder do Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciência e Tecnologia (GEICT). Possui graduação em Antropologia (1997), mestrado em Antropologia Social (2000) e doutorado em Ciências Sociais (2005), todos pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Realizou também estágio de pós-doutorado na University of Texas at Austin, junto ao programa de Ciência, Tecnologia e Sociedade (2006 a 2008), e no Departamento de Política Científica e Tecnológica da UNICAMP (2009 a 2010).
Fabíola Rohden é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Catarina (1992), mestre e doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2000). Atualmente é professora adjunta do Departamento de Antropologia e coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Antropologia do Corpo e da Saúde (NUPACS) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, além de pesquisadora associada do Centro Latino Americano em Sexualidade e Direitos Humanos.