Nós, os brasileiros, somos como Robinsons: estamos sempre à espera do navio que nos venha buscar da ilha a que um naufrágio nos atirou. [i]
2018: eleição de Jair Messias Bolsonaro, cuja antiga filiação partidária saltou no mesmo ano de um para 51 deputados federais na Câmara e de nenhum senador para quatro senadores. 2020: os únicos debates para as eleições municipais do Rio de Janeiro perdem em importância nacional para o debate entre os presidenciáveis estadunidenses. Noutros termos, personalismo e baixa instrução política: as duas endemias que se retroalimentam. Destacam-se, dentre as múltiplas causas, o sistema eleitoral proporcional, plurinominal e de lista aberta. Como condicionantes socioeconômicas e culturais, ressaltam-se as desigualdades e as heterogeneidades.
Sem dúvidas, o Brasil apresenta uma heterogeneidade incontrastável com as nações desenvolvidas. No plano macro-sociológico, constata-se uma multiplicidade de classes, o que gera uma multiplicidade de demandas. No plano macroeconômico, o país enfrenta conflitos distributivos abissais. Já macropoliticamente,[ii] há padrões de comportamento contrastantes entre si; seja pelo nível qualitativo, variando de associações por afetos a associações por princípios, além dos típicos clientelismos, ou seja, por interesses;[iii] seja por ideologia, desde conservadores tradicionais à trotskistas. Logo, o governante brasileiro possui uma margem de manobra muito pequena, o que exige uma capacidade de negociação hercúlea.
Daí, entende-se a presença reiterada de líderes autoritários, personalistas e/ou paternalistas na história institucional brasileira, já que estes não jogam com ideologias, princípios ou valores, mas sobretudo com afetos e interesses. Desde Vargas, que ao agregar autoritarismo e paternalismo, se alimentou do medo e da insegurança, passando por Lula, que flertou com paternalismo, até desembocar nos necrófilos dias atuais com o Bolsonaro, que canalizou e canaliza o ressentimento e as frustrações, o personalismo imperial é rememorado pelos três. Usa-se reiteradamente de um atalho para não incorrer nos debates estruturais problemáticos.
Nessa esteira, com a Constituição cidadã, as competências legislativas restaram atrofiadas na União. Incoerentemente, concedemos o poder residual à União e ao mesmo tempo lhe atribuímos quase a totalidade das competências legislativas. Desse modo, o plano decisório se apartou do povo, vez que é muito mais dificultoso obter accountability – traduzido à grosso modo: prestação de contas – com Brasília, do que com os estados, bem como estes não detêm tanta autonomia para cumprir grandes metas. Mas o pior disso não é a ingovernabilidade: como já há um grande leque de divergências, as dúvidas sobre quais e por quem estão se implementando políticas são temerárias. Jargões como “chega de politicagem” são extremamente nocivos e perigosos, advindos em parte da falta de ligação entre representante e representados. Logo, o nosso sistema federalista não conduz consensos simultaneamente ao aprendizado empírico do cidadão, ou seja, o cidadão não forma sua opinião a partir do que presencia no campo regional pois sua visão está embaçada.
Chegamos, então, ao ponto terminal: o sistema eleitoral. Constituído por três componentes básicos – magnitude do distrito eleitoral, estrutura do voto e a fórmula eleitoral, os efeitos do sistema eleitoral são frutos desse conjunto de elementos. Para ilustrar, nas eleições municipais brasileiras o distrito é o próprio munícipio, enquanto nas eleições estaduais, o estado. A magnitude eleitoral, então, decide a quantidade de cadeiras por distrito. No nosso caso, todas disponíveis ficam alocadas em um distrito, no município do Rio, p. ex., são 50 vereadores. Já a estrutura do voto decide “como o eleitor pode expressar seu voto”[iv], podendo ser alternativo – o eleitor ordena os candidatos em uma ordem de preferências – ou categórico – o eleitor apenas escolhe um nome para cada cargo, como estamos habituados.
Por último, há a fórmula eleitoral, que nas eleições legislativas brasileiras é a proporcional, ou seja, os eleitos compõem a lista dos partidos, que é constituída pelos votos nos candidatos e na legenda, para depois ser dividida pelo quociente eleitoral – quantidade de votos válidos dividida pela quantidade de cadeiras – e definir-se o número de cadeiras por partido, as quais serão ocupadas – no sistema de lista aberta – pelo candidatos mais votados do partido. Diferentemente, o sistema majoritário é o utilizado nas eleições para o Executivo, elegendo-se apenas o candidato mais votado. Alega-se que este fomenta a governabilidade, ao mitigar a fragmentação institucional em múltiplos partidos, enquanto aquele representaria as minorias. Assim, o sistema eleitoral é um dos instrumentos com grande potencial para determinar o modo pelo qual os candidatos e eleitores se comportam.
No entanto, o nosso sistema atual é disfuncional e contraproducente. No intuito de ser democrático, acabou ocorrendo o multipartidarismo devido à fórmula proporcional e à magnitude plurinominal. Consequência: as pessoas esquecem em quem votaram nas eleições legislativas, não acompanham seu candidato, e não exercem sua cidadania: afinal há como fiscalizar 50 vereadores?
Assim, as eleições executivas são maculadas pelo personalismo, já que os cidadãos não aprenderam a exercitar a accountability. Para piorar, as eleições legislativas são de lista aberta, isto é, os candidatos ocupam as vagas conquistadas pelo seu partido medida na medida em que foram os mais votados no partido, e não os selecionados pelo próprio partido, como ocorre no sistema de lista fechada. Com isso, diminui-se o conhecimento do eleitor sobre os partidos, e consequentemente se fomentam votos por afeto ou interesse, em vez de por ideologia.
Sob uma dimensão global, esse sistema eleitoral também fomenta o presidencialismo de coalização. O governo de coalização, por excelência, deveria ser o parlamentarismo; quando o presidencialismo assume esse caráter ocorre seu desgaste, sua natureza institucional é erodida, perdendo a legitimidade social. Haja vista que, se no parlamentarismo sabe-se de antemão que o primeiro-ministro virá de coalizões parlamentares, logo, os cidadãos se atém às eleições legislativas; no presidencialismo, essa lógica é inversa: os cidadãos elegem o presidente esperando a concretização dos “projetos” anunciados, mas isso não se dá devido à necessidade de coalização com os múltiplos grupos legislativos. Gera-se, portanto, uma frustração das expectativas e um anteparo à accountability, visto que os cidadãos não detêm poder sobre a natureza do projeto que será formado, e os governantes podem usar, como subterfúgio, a impossibilidade de se governar.[v] Qual seria, então, o caminho alternativo?
Em primeiro plano, as eleições legislativas poderiam ocorrer em distritos uninominais – seriam, pois, majoritárias –, o que demandaria o redelineamento imparcial e demograficamente equânime dos distritos. Para tanto, seria preciso um órgão independente e capaz institucionalmente, podendo ser o Tribunal Superior Eleitoral.[vi] Nessa linha, com o sistema de distritos majoritários, a accountability será incentivada, já que muito mais facilmente os eleitores se lembrarão para quem votaram, pois se tratará apenas de um vereador, deputado estadual ou deputado federal para o distrito, cujo o tamanho aumentará respectivamente ao cargo. Ainda, o número de candidatos por eleitor também reduzirá significativamente, vez que cada partido só poderá lançar um nome por distrito, o que aperfeiçoará os detalhes do multipartidarismo, sem proibi-lo.
Saliente-se que esse sistema não contribuiria para o clientelismo, mas, do contrário, dada a accountability, os eleitos que não correspondessem ao esperado, não seriam reeleitos. Além disso, sistema ainda produzirá governabilidade ao mitigar o multipartidarismo. Consequentemente, com uma unidade política maior será mais fácil para o eleitor identificar o responsável pelo fracasso ou sucesso das políticas públicas incrementadas.[vii]
Sobre a estrutura do voto, convém adotar o voto alternativo, isto é, o eleitor votará em todos os candidatos de seu distrito em ordem de preferência, sob pena de anulabilidade. Isto levará a duas consequências positivas: incentivará a busca de informações sobre todos os candidatos do distrito e repelirá os candidatos radicais,[viii] já que estes terão alta rejeição em outros segmentos, se constituindo poucas vezes como segunda opção – esse ponto poderia valer também para as eleições do Executivo.
De fato, a crise da representatividade das democracias é um fenômeno global por força justamente da globalização. No entanto, como explanado, há vícios específicos que, para serem combatidos, hão de ser criados mecanismos institucionais igualmente específicos. Um sistema eleitoral single member plurality, com voto alternativo pode ou não começar a incutir na mente dos brasileiros que não há navios a nos resgatar. De sorte que esse seria um dos possíveis remédios para a falta de representatividade brasileira sem se alterar o sistema de governo – resta saber se é um remédio paliativo ou corretivo, e se contém efeitos colaterais maiores do que seus benefícios. Fato é que do jeito que está não pode ficar.
Luan Fernandes Machado é graduando de direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, membro do grupo de pesquisas “CineCerco – Controle Estatal, Racismo e Colonialidade” e do “LETACI – Laboratório de Estudos Institucionais”.
[i] Lima Barreto, Transatlantismo, Careta (1922). Citado em: SCHWARCZ, L. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
[ii] ABRANCHES, S. Presidencialismo de Coalizão: o dilema institucional brasileiro. Revista de Ciências Sociais; Rio de Janeiro, vol. 31, n. 1, 1988. Pg. 5.
[iii] DALLARI, D. Elementos de Teoria Geral do Estado. 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 1998. Pg. 59. Tóp. 85: em que ele versa sobre os tipos de facção formulados por David Hume.
[iv] NICOLAU, J. Sistemas Eleitorais. 6ª ed., Rio de Janeiro: FGV, 2012. Pg. 12.
[v] ABRANCHES, S. Presidencialismo de Coalizão: o dilema institucional brasileiro. Revista de Ciências Sociais; Rio de Janeiro, vol. 31, n. 1, 1988. Pg. 19.
[vi] NICOLAU, J. Sistemas Eleitorais, 6ª ed., Rio de Janeiro: FGV, 2012. Pg. 25.
[vii] NICOLAU, J. Sistemas Eleitorais, 6ª ed., Rio de Janeiro: FGV, 2012. Pg. 29.
[viii]NICOLAU, J. Sistemas Eleitorais, 6ª ed., Rio de Janeiro: FGV, 2012. Pg. 38.