Pesquisando um novo cérebro
No Japão, os pesquisadores do Instituto Riken, o sol nascente da neurobiologia, estão totalmente mobilizados em torno de três objetivos centrais: compreender, proteger e fabricar o cérebro. Pretendem fazê-lo nos próximos vinte anosMariano Sigman
Em 1963, Sydney Brenner, que associado a Francis Crick já havia descoberto o código genético, enviou uma carta resumindo o estado da ciência das últimas décadas1 a Max Perutz, pioneiro da cristalografia, ciência que havia permitido ao citado Crick decifrar a estrutura em hélice dupla da molécula de ácido desoxiribonucléico, o ADN2 . Brenner e Crick trabalhavam para o célebre laboratório de biologia molecular de Cambridge, dirigido por Max Perutz. Em sua carta, Brenner comunicava seu desânimo e afirmava que a biologia molecular havia acabado. Propunha, como nova etapa fundamental, o estudo das neurociências.
E não estava enganado. Os problemas fundamentais da biologia molecular haviam sido resolvidos por Jérôme Monod e François Jacob, na França, e por James D. Watson, Francis Crick e Sydney Brenner, na Inglaterra. A biologia molecular estava a ponto de ser industrializada e os pesquisadores queriam lançar-se à conquista de novas fronteiras. Hoje, a biologia molecular foi efetivamente industrializada e os fantasmas que ela provoca são suscitados mais por sua industrialização do que por sua inovação conceitual. A experiência de Ian Wilmut, na Escócia, com a clonagem da ovelha Dolly3, provocou um intenso debate na mídia. No entanto, a clonagem não é algo novo. Há 50 anos, John Gurdon (que hoje trabalha em Cambridge) já clonava sapos com a mesma técnica utilizada por Ian Wilmut para clonar vacas, ovelhas, cabras e camundongos, e que poderá amanhã ser utilizada para clonar seres humanos4.
A revolução da neurobiologia
A clonagem de “Dolly” por Ian Wilmut não tem nada de novo. Há 50 anos, John Gurdon já clonava sapos com a mesma técnica utilizada por Wilmut
Embora o fato não seja muito conhecido, o Japão também fez um esforço de pesquisa considerável na área da clonagem e tornou-se imbatível em um setor no qual a técnica é mais importante que a inovação conceitual. Os japoneses, na realidade, conseguiram desenvolver uma formidável tecnologia, produzindo poucas idéias originais no domínio da ciência pura. Prova disso é que eles só conseguiram cinco prêmios Nobel de ciência, contra 191 dos Estados Unidos e 152 da Grã-Bretanha, Alemanha e França. No entanto, em matéria de clonagem, os pesquisadores japoneses duplicaram bezerros5, camundongos6 e, no começo do ano 2000, pela primeira vez conseguiram clonar um touro, que, por sua vez, já tinha sido clonado… O clone do clone. O objetivo era entender de que forma um clone envelhece quando já nasceu de um organismo idoso7.
Mas, como se disse, a prática da clonagem é antiga. O setor da ciência que anuncia uma grande revolução é o da neurobiologia, que estuda o funcionamento do cérebro, dos processos mentais, da consciência, da memória, do pensamento, da imaginação e dos sonhos. Brenner, em sua célebre carta, já o havia anunciado. Mas também havia previsto o principal obstáculo ao progresso da neurobiologia: “Parece-me que uma das maiores dificuldades é a incapacidade de identificar uma linha de pensamento unitário para um processo específico.”
O Instituto do Cérebro Riken
No começo do ano 2000, os japoneses conseguiram, pela primeira vez, clonar um touro que, por sua vez, já tinha sido clonado… O clone do clone
A biologia molecular progrediu na análise dos mecanismos genéticos desde que os geneticistas criaram o conceito de “um gene = uma enzima” e porque as expressões compiladas dos genes ? em termos de cor dos olhos, comprimento das asas etc. ? puderam se reduzir a unidades simples, facilmente analisáveis. O fato de não haver unidade de pensamento em um grupo de indivíduos diferentes ainda impede a neurobiologia de dar um grande salto. Mesmo assim, é possível que esse grande progresso esteja ao alcance da humanidade. A última década, que foi chamada “década do cérebro”, não correspondeu inteiramente às expectativas, ainda que as neurociências tenham se mantido prolíficas, não em novas idéias, mas em dados e técnicas.
Hoje, a neurobiologia se encontra no patamar em que estava a biologia molecular no fim da década de 50, ou a física no início do século XX, ou seja, no estágio da pesquisa fundamental. A grande novidade é que, desta vez, o Japão se lançou na corrida com um programa enormemente ambicioso. O esforço nipônico tem um nome: é o Instituto do Cérebro Riken, criado em 1917 como instituição privada. Nos últimos 50 anos, seu financiamento tem vindo também de fundos públicos. Segundo seu presidente, Shun-ichi Kobayashi, sua principal característica é ter um objetivo, um programa de pesquisa e uma gigantesca ambição. “Assim como um homem sem ambição na vida é como um barco à deriva, um programa de pesquisa sem grandes objetivos se afogará na tempestade e nas ondas do progresso incessante da ciência.8”
Objetivos para vinte anos
Para cada um de seus objetivos ? compreender, proteger e criar o cérebro ?, o Riken fez projeções de resultados para os próximos 5, 10, 15 e 20 anos
O instituto fica em Wako, a meia hora de trem de Tóquio e, curiosamente, ao lado de uma base militar norte-americana… Esse edifício imponente, de estética austera, é inteiramente voltado para o estudo das neurociências. Todos os pesquisadores do Riken, o sol nascente da neurobiologia, estão totalmente mobilizados em torno de três objetivos centrais: compreender, proteger e criar o cérebro.
Para alcançá-los, as estruturas necessárias foram realizadas: ligação quase imediata com o MIT (Massachusets Institute of Technology, nos Estados Unidos), visando a antecipar-se ao resto do mundo; desenvolvimento de um centro de tecnologia que colabore como os pesquisadores para atualizar as técnicas necessárias; e criação de um centro de informação encarregado de gerenciar os dados produzidos no mundo inteiro. Para cada um desses objetivos ? compreender, proteger e criar o cérebro ?, o Riken projetou perspectivas de resultado para os próximos 5, 10, 15 e 20 anos9.
Fim das doenças psiquiátricas
Os mecanismos da atenção e do pensamento, assim como a aquisição da linguagem, deverão ser desvendados nos próximos 15 anos
No que se refere ao primeiro objetivo ? conhecer o cérebro ? os pesquisadores japoneses esperam, daqui a cinco anos, desvendar os mecanismos da memória e da aprendizagem e descobrir a representação da linguagem. Daqui a dez anos, esperam decifrar os mecanismos que produzem as sensações, as emoções e a diversidade dos comportamentos, assim como os ritmos biológicos, a percepção do tempo e a forma como se codificam as palavras que constituem a linguagem. A ambição do programa é de que, cinco anos depois, os mecanismos da atenção e do pensamento, assim como a aquisição da linguagem, não ofereçam mais qualquer segredo. Finalmente, em apenas 20 anos (o que não é nada, em termos de tempo), eles acreditam poder decifrar os mecanismos da consciência, social e individual.
O segundo projeto do Riken ? proteger o cérebro ? avança igualmente a passos de gigante. Em cinco anos, deveremos conhecer os genes que participam do desenvolvimento do cérebro e os mecanismos das doenças psiquiátricas. Em dez anos, deveremos saber como regular o desenvolvimento normal do cérebro de um animal, controlar o envelhecimento dos neurônios em cultura e realizar transplantes de tecido nervoso. Por volta de 2015, os métodos para garantir um desenvolvimento normal do cérebro deverão ser aplicados ao ser humano, o envelhecimento do cérebro deverá ser perfeitamente conhecido e a terapia genética no tratamento das doenças psiquiátricas e neurológicas deverá estar consideravelmente avançada. Em 20 anos, o domínio do processo de envelhecimento humano, o desenvolvimento dos tecidos artificiais (nervosos e musculares) e a erradicação das doenças psiquiátricas e neurológicas deverão ser uma realidade.
Robôs que dançam balé
Em 20 anos, o domínio do processo de envelhecimento humano e a erradicação das doenças psiquiátricas e neurológicas deverão ser uma realidade
O último ponto ? a fabricação do cérebro ? é o mais impressionante. Os cinco primeiros anos deveriam ser suficientes para o desenvolvimento de chips eletrônicos capazes de reconhecer objetos e sistemas de memória, réplicas do funcionamento cerebral. Em torno de 2010 deverão ser elaboradas estruturas possuidoras da habilidade de pensar (note-se que esse fato precederá o conhecimento do pensamento) e será possível fabricar máquinas dotadas de memória, sem terem que ser programadas, e dotadas também de pensamentos intuitivos e raciocínio lógico. Em 15 anos, será possível criar computadores providos de capacidade intelectual e emocional, capazes de experimentar sentimentos como o desejo. Em 20 anos, terão sido concebidos supercomputadores que tecerão laços de amizade com a sociedade humana. Na verdade, os pesquisadores terão criado uma relação simbiótica entre os seres humanos e os computadores. Também existirão robôs capazes de participar da vida intelectual humana.
Com a formidável conjunção de talentos abrigada pelo Instituto Riken, imaginar como será o mundo daqui a 20 anos é assustador. E talvez aterrorizante. Aqui, a ciência parece sobrepor-se à ficção científica. Se os objetivos do Riken se realizarem, e se essas pesquisas realmente antecipam o futuro, em 2020 teremos penetrado os mistérios do cérebro (e do espírito). Teremos tornado o cérebro imortal e fabricado para ele um suporte técnico alternativo graças ao qual ele poderá continuar se expressando e existindo. Os japoneses o farão, e isso porque os responsáveis pelo projeto investiram nos setores da informática e da eletrônica, que dominam num nível acima do resto do mundo. Atualmente, são os únicos a dominarem os robôs de Kawato, que dançam balés folclóricos de Okinawa com uma incrível humanidade10.
Os avanços científicos que os pesquisadores japoneses imaginam para os próximos 20 anos talvez não sejam apenas