Poesia da Terra: a palavra escrita de Bárbara Kariri
Ao criar imagens que valorizam sua cultura e ancestralidade, a autora desempenha um papel fundamental na visibilização e na resistência indígena, evidenciando que suas línguas foram silenciadas e suas culturas marginalizadas
Bárbara Matias ou Bárbara Kariri é indígena do povo Kariri, nascida na comunidade do Marreco (Aldeias Marrecas), Quitaius, Lavra da Mangabeira, no Ceará. A multiartista e pesquisadora, que se define curiosa, move-se entre as artes da cena, o audiovisual e a escrita. Na escrita, traz autoria de dramaturgias, de roteiros e de produções acadêmicas. Poesia da Terra, publicado pela editora Feminas, é seu livro de estreia como poeta, embora já partilhe suas palavras nas redes sociais.
A escolha do título evidencia o olhar da poeta ao evocar a terra como elemento cósmico fundante da vida e da existência humana, que conecta o humano ao divino. Os poemas exploram a beleza, a força, a fragilidade e a complexidade de ser com a natureza para seus ancestrais indígenas. A terra como matriz da criação é o lugar de onde tudo emerge e se sustenta.
A riqueza de imagens e metáforas que a autora utiliza na construção de seu universo poético, em que as descrições da natureza são vívidas e sensoriais, transporta quem lê para um mundo que é tão desafiador quanto mágico, exuberante e brutal. Na leitura dos mais de cinquenta poemas, podemos identificar alguns eixos temáticos e estéticos que se entrelaçam, evidenciando o forte caráter político da obra, mas a escritora sabe bem construir sua expressão poética distinguindo realidade e linguagem literária.
A poética de Bárbara Kariri se revela não apenas em seus temas e imagens, mas também na habilidade com que manipula a linguagem, utilizando diversos recursos estilísticos para criar efeitos de sentido e construir um universo poético próprio. A ancestralidade como pilar fundamental na poética da autora surge logo no poema “Sertão”, que abre o livro:
Eu sou um recado vivo da vó
Da minha avó
Eu sou uma semente germinando
No sertão.
A imagem da semente germinando, presente no primeiro poema, nos estimula a pensar sobre a continuidade da vida e na transmissão de valores e conhecimentos ao longo das gerações entre os seus. Essa conexão profunda com as raízes se manifesta de diversas formas nos poemas seguintes, como na imagem do pé de manga que alimenta gerações ou na relação entre os cabelos da avó e os fios de cabelo da poeta.
A ancestralidade, nesse sentido, não é apenas uma referência ao passado, mas uma força vital que tece a identidade presente e futura do eu lírico.
A natureza, a ancestralidade e a identidade se entrelaçam de forma inseparável na poesia contemporânea de autores e autoras indígenas, constituindo um tripé fundamental para a construção da poética que reverbera potentes vozes engajadas. Em Poesia da Terra, a ancestralidade é evocada como a força que forja a identidade e a visão de mundo da poeta, conectando-a às gerações passadas e às tradições de seu povo. Essa conexão ancestral se manifesta tanto na linguagem poética, marcada por expressões e metáforas oriundas de seus idiomas e cosmovisões, quanto nos temas abordados, que giram em torno da terra e dos elementos naturais, sem se tornar repetitiva, mas sempre reafirmando que essa identidade é construída dessa relação dialética entre a natureza e a ancestralidade, resultando em poemas que celebram a resistência às formas de opressão e colonialidades, como no poema a seguir:
A força do jabuti é saber ser calmo para vencer. Tempo não está no relógio, esse é o controle. Tempo está na respiração que dança entre o
Pulso e a terra.
Ao ressignificar a linguagem e os símbolos tradicionais, contribui para a descolonização da literatura e para a afirmação de sua voz e identidade também como escritora. A poesia de Bárbara kariri, com suas raízes profundas no Cariri cearense, estabelece um diálogo crucial com a história de apagamento dos povos indígenas kariris. Ao criar imagens que valorizam elementos da cultura e sua ancestralidade, a autora desempenha um papel fundamental na visibilização e na resistência indígena, evidenciando que suas línguas foram silenciadas e suas culturas marginalizadas.
A poesia de Bárbara surge como um ato de resistência contra esse apagamento histórico, contribuindo para a construção de uma narrativa contra-hegemônica que desafia os discursos oficiais de extermínio e as visões eurocêntricas que persistem. É espaço de ressignificação da história, com linguagem poética marcada por uma riqueza lexical que mescla termos indígenas e africanos ao português usual. Essa hibridização linguística reflete a complexidade da identidade brasileira e a urgência de se publicar obras literárias que expressem as experiências de povos marginalizados.
Para além do conteúdo e de seus significados, os poemas trazem imagens e metáforas ricas e evocativas, compondo uma obra marcada por poemas com grande variedade de estrutura, o que demonstra a versatilidade da autora em explorar diferentes formas de expressão poética. Os elementos estruturais que se repetem contribuem para a construção de um estilo próprio. A maioria dos poemas apresenta versos livres, escolha que dá à autora liberdade para explorar a sonoridade das palavras e criar imagens poéticas fluidas, como no fragmento do poema a seguir:
DEUSA
Quando ninguém está me vendo, eu sou uma Deusa.
Meus cílios abanam os becos escuros, minhas unhas
Acariciam a bunda do oceano.
Quando ninguém está me vendo, eu sou deusa.
Eu avooo por ai, por entre rios e céus.
Eu sou uma deusa lambendo as nuvens, eu sou uma
língua endeusada em tuas montanhas, umedecendo
tuas curvas.
Um dia um menino me chamou de feiosa, logo eu, com
Meus brincos de palha de coqueiro, com meus búzios
Nascidos no mar.
O menino que me chamou de feiosa, não enxergava o
Mistério da minha voz contando as estrelas.
Eu não vou dizer para o menino que sou uma deusa.
Porque deusa não é dado. É um jeitinho de
Pisar na terra e exalar chuva. É mistério e nem todos
Enxergam.
(…)
Alguns poemas são construídos a partir de fragmentos curtos que se conectam de forma não linear, criando um efeito de quebra e de reconstrução de sentido, oferecendo agradável surpresa na leitura. A musicalidade de seus versos é uma combinação de diferentes elementos sonoros, como a aliteração e a assonância, criando um ritmo que, aliado à escolha de algumas palavras, criam uma sonoridade que fortalece o caráter expressivo.
Ao longo da obra, algumas palavras se repetem nos poemas, revelando aspectos importantes de sua poética. Palavras como terra, água, árvore, rio e floresta são frequentes, evidenciando a importância da natureza para a autora; assim como corpo, pele, sangue e alma, utilizadas para expressar a experiência corporal e a identidade. A presença em vários poemas das palavras tempo, ancestral, memória e história indicam não só a passagem do tempo, mas a conexão com gerações passadas. Palavras como luta, força, resistência e liberdade servem à postura crítica da autora. Sendo múltipla, não radicalmente encaixotada em uma forma ou tema, pode também ser leve e profunda, ainda que concisa, como em:
Enquanto eu viver, vive o mistério que poucos sabem ler
Ou no poema existencial cujos dois versos escritos em letras maiúsculas vermelhas – contrastando com a cor ocre/terra do papel – distribuídos no espaço de duas páginas, materializando o silêncio, se encontram pela ação de quem lê:
SE EU NÃO RESPONDI AO SEU CHAMADO
É PORQUE ESTAVA ME PARINDO.
O projeto gráfico de Poesia da Terra interage com o texto, contribuindo para tornar ainda mais ampla a força simbólica do dizer poético da autora. A utilização de elementos gráficos, como espaçamentos e quebras de linhas, cadenciam o ritmo da leitura e a combinação de elementos visuais, como a ilustração e a variação de tamanhos de letras, ampliam a experiência de leitura de modo inseparável do texto. Tudo é texto.
Por meio da linguagem poética, a autora cria um espaço de resistência e de afirmação em que o eu lírico reafirma sua identidade como indígena e como mulher sertaneja e valoriza sua própria percepção de si. Seu universo inspira e mobiliza a querer viver em plenitude de direitos, nada menos que isso. A poesia de Bárbara Kariri é um ato político, mas sua intenção é poética.
Goreth Albuquerque é gestora cultural. Foi gerente de Conhecimento e Formação, Livro e Leitura do Centro Cultural do Cariri Sérvulo Esmeraldo, coordenadora do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas da Secult/CE e coordenadora e co-curadora da XIII Bienal Internacional do Livro do Ceará (2019). É curadora de acervo para bibliotecas, parecerista em editais para Literatura e mediadora de clubes de leitura literária. Graduada em Pedagogia, tem formação em Teoria e Prática de Formação de Leitores (UERGS) e é graduanda em Artes Visuais(UECE).