Pokemon, uma paixão infantil
O sucesso do Pokemon é orquestrado por um marketing abusivo e por sub-produtos a cada dia mais numerosos, com o objetivo de propor às crianças um produto não acabado: uma espécie de kit a ser construído por elasSerge Tisseron
O jogo game-boy, lançado pela Nintendo em 1999, foi um estrondoso sucesso: 51 milhões de cartuchos já foram vendidos em todo o mundo. Aos quais se somam baralhos de cartas e um filme. E o número de Pokemons que cada jogador tem que memorizar não pára de crescer: duzentos e cinqüenta e um, por enquanto! Porém todas essas criaturas não têm por única finalidade tornar o jogo mais complicado. Há alguns meses, vêm criando uma nova cultura que desorienta completamente os adultos.
Esse sucesso é orquestrado por um marketing abusivo e por sub-produtos a cada dia mais numerosos, com a idéia de propor às crianças um produto não acabado: uma espécie de kit a ser construído por elas, evolutivo e interativo. As crianças são convidadas a representar seus desejos e suas angústias através de criaturas virtuais interpostas, proporcionando-lhes soluções seguras.
O jogador constrói o jogo
Essa opção-kit já tinha enriquecido os famosos “ovos Kinder”: cada vez que os comprava, o consumidor encontrava um brinquedinho diferente, desmontado, com peças para encaixar. Os Pokemons seguem essa lógica. Porém, os Poke-bola — uma espécie de super-ovos mágicos — guardam muito mais que um simples jogo no kit. Contêm animaizinhos através dos quais a criança é convidada a escolher uma imagem de si própria, assim como um mascote para acompanhá-la a construir uma coleção, que cresce com figurinhas interpostas, de acordo com uma iniciação, confrontando-se com uma fraternidade simbólica até, finalmente, se familiarizar com as tecnologias do amanhã… Quanto à versão em cartas, ela segue uma tradição bastante conhecida dos adolescentes, a das cartas Magic.
Essas cartas existem há dez anos e servem para colecionar, jogar e mesmo vender — há um lado financeiro. Em Magic, há cinco elementos, cada um associado a uma cor e a uma psicologia (fogo, água, natureza, pureza, trevas). As figuras representam os heróis, com seus talentos e poderes. E a magia tem um papel muito importante. Existem também cartas de sentimentos (como o medo), de qualidades morais (como a retidão), de ações (como atacar, recuar, desertar, curar), de obstáculos naturais (como o nevoeiro ou o arame farpado) etc. O jogador constrói o jogo segundo o seu desejo. [1]
Um “jogador do mundo”
Mas Pokemon é um jogo muito mais atraente do que Magic, tanto por seu grafismo infantil, quanto por seu humor (especialmente os nomes das criaturas) e pela simplicidade de suas regras. Cada jogador é convidado a escolher um, ou mais de um, Pokemon, o qual (ou os quais) deverá fazer evoluir. Ora, há, nesse universo, criaturas para todos os gostos.
Elas evocam, principalmente, mitologias tradicionais (greco-latina, sul-americana, celta, eslava, oriental, africana etc.), ainda que todas sejam “moldadas” por um único sistema gráfico. Logicamente, um produto que tem por objetivo conquistar o planeta deve ter essa diversidade. Porém erramos se subestimarmos uma conseqüência: se não tem a consciência de ser um “cidadão” do mundo, pelo menos o jogador tem a consciência de ser um “jogador do mundo”.
Treinador de monstros
Além disso, cada Pokemon mantém uma relação privilegiada com um dos quatro elementos (o ar, o fogo, a terra e a água) e as energias a eles relacionadas. Essas categorias são quase sempre abstrações para os adultos urbanos que somos, mas são aspectos concretos do mundo com o qual cada criança convive desde a nascença e dos quais continua próxima: a água do universo amniótico; o ar a que se deve expor para respirar, e depois, falar; o solo de onde se deve levantar para começar a andar, e o fogo, rigorosamente proibido de ser tocado.
Através do universo que incorpora, cada Pokemon é, portanto, suscetível de comunicar uma imagem inconsciente do corpo na qual a criança se pode identificar. São as formas aéreas de uma certa criatura, a habilidade aquática ou subterrânea de uma outra, ou ainda a voracidade predatória de uma terceira, que motivam seu desejo de possuir essa imagem ou torná-la seu mascote.
Enfim, cada Pokemon tem suas facetas particulares que remetem exatamente à maneira pela qual a criança percebe conscientemente sua aparência… ou sonha com o desejo de ser: gorducho ou esbelto, lerdo ou ágil, forte ou astuto. A qualquer hora, a criança pode optar por se identificar com uma imagem com a qual crê parecer-se (certo ou errado, pouco importa) ou que representa o que ela desejaria ser. Sonha, então, possuir, dependendo do caso, a força, a agilidade ou astúcia de sua criatura preferida. As “combinações” não são proibidas, uma vez que o jogador é conduzido, ao longo da partida, a treinar diversos monstros.
Uma criatura emblemática
Todavia escolhendo para si uma (ou mais de uma) criatura-espelho, a criança não se petrifica numa forma de si próprio. Os Pokemons, na verdade, metamorfoseiam-se, ao longo das provas por que passam, das situações que enfrentam, passando de um aspecto de “criancinha” para o de um “adolescente”, para, finalmente, atingir o de uma criatura adulta. Há, no entanto, uma exceção: Pikachu. Essa criatura, emblemática do jogo, é para muitas crianças — principalmente os mais jovens — um mascote que preferem não deixar evoluir. Sem dúvida, para eles, é uma maneira de preservar uma imagem de sua infância, e também de se sentirem ligados através dela a todas as outras crianças que a ele se ligam e recusam que ele “cresça”…
O jogador é convidado a encarnar um menino de dez anos (Sacha, [2] na tradução francesa), cujo objetivo é tornar-se o melhor treinador de Pokemon. Seu sucesso depende da capacidade de encontrar seu caminho num labirinto e de sua aptidão em educar seus monstros. Para conseguir, primeiramente é necessário que memorize os espaços e tenha em mente diversas estratégias. Deve, principalmente, dirigir a palavra a todas as pessoas que encontra em seu caminho, fazer perguntas e guardar suas respostas para a seqüência do jogo.
Desenvolvendo poderes
O professor Chen [3] encarna uma figura bondosa do poder dos adultos que olham por ele. Ele envia ao jogador seu primeiro Pokemon. “Escolha aquele que quiser, o resto depende de você”, diz ele. Depois, regularmente, incentiva o jogador, aconselha-o e avalia sua evolução, como numa iniciação, ou seja, uma aprendizagem em contato com um mestre que não ensina um ofício, mas uma maneira de se comportar na vida para ser bem sucedido. Assim, a criança é convidada a procurar periodicamente o professor Chen, para verificar o progresso de suas capacidades.
Enfim, ao longo da iniciação, os poderes do iniciado aumentam em habilidade, em força ou em inteligência. Esses poderes crescentes são representados pelas diferentes categorias de caixas de Pokemons: Super, Hiper, Master… Hoje, ao contrário de antigamente, as crianças não têm mais o manual do que devem fazer. O futuro tornou-se indefinido e elas percebem, com razão, seus pais perdidos e desamparados diante das mudanças do mundo. Nesse jogo, ao contrário, são chamadas a identificarem-se com um herói de sua idade, que tem um mundo. Compreende-se a felicidade delas.
Uma versão moderna das fadas
O herói que o jogador encarna deve enfrentar várias categorias de adversários, cada uma com suas particularidades. Os Pokemons selvagens representam as próprias tendências perigosas da criança que ela deve aprender a superar. A “Equipe Rocket”, que prepara os Pokemons para fazer deles monstros temíveis, representa a tentação de empregar sua força e competência a serviço do mal, mais que do bem. O jogador deve enfrentá-la quando cruza seu caminho. Finalmente, os outros guias de Pokemon que o jogador deve enfrentar nos jogos representam irmãos e irmãs simbólicos. Na iniciação, como na vida, a rivalidade fraternal é essencial. Em todos os casos, o jogador deve ser honesto. Não se pode roubar: “Roubar é o mal. ”
Nesse ponto, o jogo é uma versão moderna dos contos de fadas. Retoma três de suas idéias essenciais: a necessidade da criança encontrar “seu caminho pessoal”, a representação de sua ambivalência e, finalmente, a ajuda bondosa de um adulto para ter sucesso. Talvez esta aproximação possa parecer estranha: na verdade, o conto de fadas parece inseparável da relação estabelecida entre a criança, um dos pais que conta a história, e a sociabilidade que essa situação permite. Porém, pensar que o Pokemon leve a criança a voltar-se para dentro, é ter uma péssima idéia desse jogo.
Inventando regras
De uma maneira geral, todos os videogames, contrariamente ao que muitas vezes se imagina, incentivam formas de sociabilidade. [4] No momento do jogo, o jogador está quase sempre só, porém os problemas que enfrenta são tão difíceis que ele tem necessidade de falar com os colegas — e, muitas vezes, também com os vendedores — para poder resolvê-los. Se os pais não se interessam, azar deles! Mas, principalmente, para poderem ter o maior número possível de criaturas, o jogo obriga as crianças a trocá-las, através de um cabo conectado a dois game-boy. A socialização, com os Pokemons, é prevista pelo construtor: é impossível progredir no jogo sem “conectar” as máquinas entre si!
Há duas formas do jogo: o cartucho que se coloca no game-boy e as cartas (cards) impressas. As regras de jogo dessas últimas pareceram tão complicadas às crianças que elas inventaram outras mais simples, o que contribuiu para desorientar ainda mais os adultos! Esse duplo desvio obedece a uma lógica do mercado: nem todas as crianças podem possuir um game-boy, mas todas podem ganhar um jogo de cartas de baralho. Mais uma vez, incorreríamos em erro se reduzíssemos as conseqüências dessa lógica a considerações de marketing. A versão em papel e a versão em tela dos Pokemons não correspondem à variante “pobre” e à variante “rica” do mesmo produto. Em primeiro lugar, as cartas são caras, e principalmente, as imagens fixas e as imagens animadas mobilizam dinâmicas psicológicas diferentes.
A lógica do espelho
As imagens fixas, inicialmente, colocam sempre seu espectador mais ou menos na situação de olhar para si próprio num espelho. Esse aspecto é particularmente acentuado quando representam uma silhueta ou um rosto visto de frente, como é o caso das cartas. A imagem animada, ao contrário, lida com a duração. Enquanto as imagens fixas são um espelho para quem as olha, as imagens animadas contam uma história na qual o espectador é levado a entrar para compreender sua construção e conseguir seguir seu fio condutor. Enquanto a imagem fixa convida o espectador a entrar no jogo através da sua própria imagem, a imagem animada o incita pelas transformações que ele opera na imagem. Essa complementaridade dos mecanismos de ação da tela e do papel é incontestavelmente uma das chaves do sucesso dos Pokemons.
Diante da imagem animada, a criança identifica-se com o destino do treinador e senhor das criaturas, enquanto que na troca de cartas impressas ele identifica-se, na imaginação, com as características da cada uma delas, através da lógica do espelho. As imagens fixas sugerem ao jogador: “Eis o que eu gostaria de ser”, enquanto as imagens animadas sugerem: “Eis o que eu gostaria de viver”.
Propondo novos desafios
A partir do próprio jogo, evidentemente, os desafios de poder típicos de qualquer coletividade podem se estabelecer entre as crianças. Quando uma moda toma conta de um grupo, ninguém que pretenda fazer parte dele quer ficar de fora. E quando um produto é muito cobiçado, a enganação, a ameaça e a chantagem podem surgir. “Tornar-se o melhor treinador de Pokemons” ultrapassa, em alguns casos, o âmbito do jogo para levar a confrontos reais ou à aquisição de criaturas em leilões, via Internet. Porém essas práticas permanecem marginais e, se não fosse pelo sucesso dos Pokemons, seriam o equivalente a qualquer outra espécie de coleção (selos, figurinhas ou histórias em quadrinhos). Na contramão, educadores astutos sempre souberam utilizar o interesse espontâneo das crianças para ensiná-los a ler, a fazer contas ou a raciocinar. Então, por que não com os Pokemons?
No entanto, os Pokemons propõem novos desafios, que explicam, sem dúvida, a inquietação que toma conta de muitos pais. Ao dar uma boneca ou um álbum de figurinhas a seus filhos, eles sabiam, sempre, como eles os utilizariam e não conseguiam deixar de sentir uma certa condescendência, ao vê-los brincar.
Tensões psíquicas
Com os Pokemons, a criança faz coisas que os pais não compreendem e, além disso, num campo em que o adulto sente perfeitamente que está ultrapassado — o das novas tecnologias e das fantasias que as acompanham. Tradicionalmente, os brinquedos preparavam as crianças para o mundo dos adultos, que os pais conheciam bem, já que o viviam no dia-a-dia. Os jogos interativos os preparam para o mundo das máquinas inteligentes, das quais os adultos ignoram tudo.
Essa não é uma razão para os a